O que deve mudar no Estado-juiz a partir do Pacto de Transformação Ecológica
31 de agosto de 2024, 6h03
Do ‘juiz de danos’ ao ‘juiz de riscos’
Em decisão proferida pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), o ministro Herman Benjamin proferiu voto-relator que propõe um processo de conformação da atuação jurisdicional a partir da compreensão de elementos do ordenamento jurídico relacionados à governança ecológica, que melhor se adequem ao Estado de Direito Ambiental. Sua proposta, que se torna precedente a ser seguido pelo restante da jurisprudência, busca integrar na atuação do Estado-juiz as perspectivas e os conteúdos dos princípios da prevenção e da precaução presentes no ordenamento jurídico brasileiro (STJ, 2017), sobretudo como orientadoras de um amplo processo de garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, caput, da Constituição).
Essa proposta de conformação jurisdicional produzida pela materialidade de princípios consagrados na Constituição e na legislação ambiental tem o condão de reorientar a atuação do Estado-juiz, retirando-o da sua tradicional perspectiva liberal e reativa, que é denominada pelo ministro Herman como “juiz de danos”, ou seja, aquele que se propõe apenas “a olhar para trás”, interferindo no problema concreto como “gestor de perdas consumadas”.
A diferença, para o ministro, está no fato de que o Estado-juiz atualmente ao jurisdicionar precisa adotar a postura do “juiz de riscos” capaz de compreender as novas necessidades sociais e a possibilidade de ingerência na realidade, cuja atuação se propõe a evitar futuros danos, realizando uma “justiça preventiva e precautória” (STJ, 2017).
Avaliando esta decisão judicial, Sarlet e Fensterseifer (2023) caracterizam a atuação desse espaço-poder como uma governança judicial ecológica, imprimindo ao Poder Judiciário uma configuração ativa quanto aos problemas socioambientais, não mais uma atuação reativa. Por óbvio, isso não significa que o Estado-juiz atuará sem ser provocado, mas apenas que ao ser, não poderá mais ter seus olhos vendados diante de problemas reais da sociedade e do meio ambiente, precisando colaborar em sua governança.
Essa necessidade de uma nova postura da atuação jurisdicional frente a novos problemas, que fogem em muito da perspectiva individual das lides convencionais, no campo jus-filosófico decorre do surgimento de demandas judiciais que buscam resguardar direitos coletivos e difusos (STJ, 2021) e da inversão de valores e importâncias produzida dentro do ordenamento jurídico pelo novo constitucionalismo (Barroso, 2005, p.11-12) e pelo impacto da realidade concreta, frente a tamanhas mudanças pela qual passa a sociedade e planeta.
A partir destas inversões e mudanças, é fundamental se buscar na doutrina especializada a compreensão conceitual para se avaliar e adequar os processos de mudança às suas próprias relações sociojurídicas, sem perder a essência do Estado Constitucional de Direito. É nisto que Konrad Hesse (2012, p.63) colabora, ensinando que a interpretação não é mera causalidade, mas expressão e consequência da realidade, devendo forjar um postulado consciente da própria conduta de modo que possa ser respeitado, atendendo as condicionantes da realidade tratada. Por este motivo, a aplicação do direito, que envolve a interpretação, é ato de contínua adaptação dos textos legais, forjando normas que se adequam à realidade (Grau, 2002, p.201-203).
É fato que esse fenômeno que identifica o contexto social na qual se aplica o direito aparece no voto do ministro Herman Benjamin, o que fica evidente quando da justificativa da conversão de um “juiz de danos” em um “juiz de riscos”, visto que a não atuação preventiva e precautória “[…] dificultaria inclusive a possibilidade de o órgão administrativo, de maneira oportuna, corrigir vícios e alterar rumos ainda no curso do licenciamento, economizando tempo […]” (STJ, 2017).
Essa observação contida no próprio voto abre espaço para um segundo debate que oportuniza alinhavar os limites da governança ecológica judicial: a atuação jurisdicional avança de uma postura reativa para uma postura precautória quando apenas produz a paralisação de um determinado procedimento mesmo que aponte as irregularidades e ordene as modificações necessárias? E isso seria suficiente para garantir um processo de desenvolvimento equilibrado entre demandas sociais e econômicas, e a garantia de um meio ambiente saudável, ou seria necessário um passo adiante?
Atuação jurisdicional diante da Lindb, das mudanças climáticas e dos ODS
A partir destes questionamentos, observa-se algumas circunstâncias. Via de regra, a precaução produz interrupções diante de um fato que ainda não se sabe se será ou não danoso ao meio ambiente, mas que só pela sua incerteza já merece ser suspenso (Sarlet e Fensterseifer, 2023, p. 328). É claro que tais decisões ainda podem ordenar novos rumos a autoridade ou ao particular, mas isso não significa a condução do processo interrompido a uma solução definitiva, ou ao equilíbrio entre as necessidades sociais, econômicas e ambientais, a que estão dispostas a realidade concreta analisada pelo Estado-juiz, ainda que em sua particularidade.
Uma decisão judicial sem sua condução ou indicação de rumos pode simplesmente gerar a desistência da atuação por parte daquele que intentava licenciar uma determinada atividade que, em tese, poderia ser importante e necessária para a sociedade, principalmente quando intentada pela administração pública.
Essa averiguação de uma atuação mais “ativa” por parte do Estado-juiz vem expressa na Lei de Introdução do Direito Brasileiro (Lindb). Em seu artigo 21 há determinação de que a decisão judicial deva indicar de modo expresso as consequências jurídicas e administrativas quando ela decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa.
No parágrafo único do referido artigo há a determinação de que a decisão judicial deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.
As consequências jurídicas e a realidade de fato precisam ser exequíveis, sobretudo diante da Constituição. Quando as consequências da decisão judicial forem inconstitucionais, principalmente contrariando direitos fundamentais, elas não poderão ser proferidas (Mendonça, 2018, p.48). Avaliando, assim, direitos fundamentais como o direito ao meio ambiente equilibrado, o direito à cidade e o direito ao desenvolvimento sustentável, fica evidente que uma simples decisão sustentada no princípio da precaução proferida por um “juiz de danos” não é mais suficiente para resguardar e garantir a máxima efetividade da Constituição.
Essa nova identidade de um juiz mais preocupado com as consequências sociais de sua decisão complementa-se com o dispositivo do artigo 23 da Lindb, que avança para a necessidade de um regime de transição quando necessário para a cumprir novo dever ou condicionamento imposto pela decisão judicial. Essa perspectiva exige do Estado-juiz uma postura mais ativa, que pode envolver um entrelaçamento com outros poderes, apresentando uma governança específica como solução para o determinado problema.
Mesmo a presente análise não se adequando completamente à prescrição do artigo 23 da Lindb, o dispositivo deixa evidente que as decisões judiciais não devem mais apenas intentarem reparar danos ou mesmo apenas suspender riscos. Essas decisões precisam colaborar para que o processo de organização e execução de uma ação humana voltada para o desenvolvimento social e econômico seja realizado por completo quando legalmente possível e não simplesmente interrompido por uma ameaça de dano suposta em uma incerteza, salvo, é fato, a impossibilidade de uma decisão em contrário.
No caso de pura interrupção podem haver prejuízos que poderiam ser evitados se o Estado-juiz atuasse colaborando para o processo de desenvolvimento sustentável, que é muito mais um fazer, que um não fazer. Isso é fundamental para se garantir a funcionalidade social da atuação humana com a intenção de se alcançar um meio ambiente equilibrado e o direito à cidade.
Por tanto, partindo de um ordenamento constitucional aberto (Hesse, 1992, p. 23) que busca sentidos em uma necessária leitura da realidade, é fundamental que, para se alcançar o significado deste desenvolvimento sustentável, além de elementos jurídicos já existentes, haja uma leitura normativa preocupada com outros elementos externos ao ordenamento. É por isso que uma das formas de se buscar a compreensão do conteúdo necessário para um desenvolvimento sustentável ocorre em elementos pactuados politicamente, com relativa amplitude e aceitação, como ocorre com os Direito Humanos (Flores, 2009) e com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS, ONU, 2015).
Os Direito Humanos dispensam maiores explicações, já que além da sua realidade política, possuem formas de reconhecimento jurídico-normativo na própria Constituição da República (artigo 5º, §2º e §3º). Já os ODSs pactuados por todos os Estados membros das Nações Unidas, por meio da Resolução A/70/L.1, possuem qualidade de soft law, que, mesmo sem plena força normativa, garantem conteúdo necessário para os processos de interpretação (Guerreiro, 2023).
Assim, por mais que as circunstâncias socioambientais, no atual contexto de mudanças climáticas, possam demonstrar que a paralisação de uma determinada atuação humana seja melhor do que a sua continuidade, antes que o dano ao meio ambiente se realize, como quis demonstrar a decisão do STJ no Recurso Especial nº 1.616.027/SP, isso nem sempre é assim.
Do ‘juiz de riscos’ ao ‘juiz do desenvolvimento sustentável’
Não cabe mais ao Estado-juiz, em demandas de ordem coletiva e interesse social, compostas de circunstâncias complexas e de incertezas científicas, a mera interrupção das atuações humanas, como um “juiz de riscos”, relegando o fato a uma tramitação simplesmente processual, sobretudo quando efetivamente demonstrado que isso também não produzirá qualquer eficiência para o desenvolvimento sustentável.
O Pacto de Transformação Ecológica entre os três Poderes do Estado brasileiro, publicado no ultimo dia 22 de agosto de 2024, em seu anexo III, tópico 24, deixa isso evidente (Pacto pela Transformação Ecológica entre os Três Poderes do Estado Brasileiro, 2024).
Com isso, o desenvolvimento sustentável demanda a efetivação de processos de transformação da realidade, garantindo a implementação dos direitos fundamentais. Quando possível, o que já o é em diversas formas (audiências públicas, amicus curiae, estudos específicos, etc.), torna-se necessária a participação da sociedade de forma permanente e ativa, colaborando com o controle que estará sendo feito e monitorado a partir da decisão judicial, devendo o Estado-juiz atuar diferentemente dos procedimentos tradicionais, que garantem as liberdades fundamentais “(…) apenas parcialmente por meio de normas com construções de suporte fático e consequências jurídicas ‘prontas’ (…)” (Haberle, 2021, p.54).
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já vem atuando, tendo decisão que se torna paradigma, no julgamento da Ação de Descumprimento Fundamental (ADPF) 760 (STF, 2024).
Ao abordar a omissão estatal em relação à política de combate ao desmatamento, as falhas estruturais na atuação governamental na política de preservação do bioma amazônico, quanto às terras indígenas e a unidades de conservação, o Supremo Tribunal afirma que “não se pode afastar a possibilidade de escrutínio judicial acerca da suficiência do conjunto de ações e omissões que compõem a atuação estatal para a efetiva tutela de direito fundamental, sobretudo quando de feição transindividual – no caso até mesmo intergeracional […]” (STF, 2024).
Logo em seguida, na ementa da ADPF 760, o STF confirma que a esfera de discricionariedade do poder público deve ser reduzida em matéria ambiental “[…] pois há uma imposição de agir a fim de afastar a proteção estatal deficiente e a proibição do retrocesso. A inércia do administrador ou sua atuação insuficiente configura inconstitucionalidade, autorizando a intervenção judicial” (STF, 2024).
Neste acórdão, o STF além de uma decisão de “sim ou não”, quanto ao direito envolvido, conforma uma governança de atuação, baseado em um direito fundamental que está sendo violado, sobretudo relacionado ao meio ambiente equilibrado, abrangendo a atuação de outros atores. A partir disto, constitui tese do julgamento centrada na atuação do poder público que diante de sua postura omissiva, causa inconstitucionalidade (STF, 2024).
Avaliando os elementos do acórdão da ADPF 760 e a tese do julgamento, somado ao Pacto de Transição Ecológica dos três Poderes do Estado brasileiro, fica evidente que tal atuação estatal, não se deve resumir apenas àquela que ocorre por meio dos órgãos do Poder Executivo e Legislativo, mas também do próprio Poder Judiciário. Desta forma, o que se pode ler desta decisão do STF na ADPF 760, é a conformação de um Estado-juiz que vai além da perspectiva liberal-formalista, alcançando o problema como de forma ativa, junto com as partes, como um “juiz de desenvolvimento sustentável”, agregando, porém superando a postura de um “juiz de riscos”, como diagnosticado e proposto pelo STJ.
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