Estado Socioambiental de Direito em perigo
31 de agosto de 2024, 8h00
Quanto menos democracia e menor a presença do Estado Socioambiental de Direito para regular as poluições, maiores serão os retrocessos ambientais, econômicos, sociais e políticos. Importante referir como exemplo o caso norte-americano e o errático governo Donald Trump, que eliminou e/ou abrandou quase cem regras e regulamentos administrativos federais (The New York Times, 2020) que visavam diminuir as poluições do ar, da água e da atmosfera.
Poluentes como a fuligem industrial e outros produtos químicos têm efeitos duradouros e nefastos para a saúde, especialmente nas comunidades minoritárias (negros, pardos, latinos, lgbts entre outros), onde vivem esses seres humanos em virtude do valor imobiliário mais baixo dos terrenos que são edificados em áreas de risco, inclusive com materiais inapropriados e pouco resistentes para suportar eventos climáticos extremos.
Enquanto a poluição por dióxido de carbono acumulou-se na atmosfera (e este é um gás poluente para o Direito, como fixado pela Suprema Corte, no caso EPA V. Massachussets) (LAZARUS, 2020, p. 99), o governo de direita referido garantiu volumosos benefícios fiscais e financiamentos polpudos para a indústria do petróleo e do carvão, expandindo a crise ambiental.
Para a ex- assessora do governo Obama e professora de Direito Ambiental da Universidade Harvard, Jody Freeman, esse cenário pode em parte ser revertido com base no fortalecimento da democracia, com efeito, “historicamente, há sempre um pêndulo oscilando entre as administrações democratas e republicanas em matéria de meio ambiente e, teoricamente, o meio ambiente pode se recuperar. Um governo democrata pode restaurar regulações para a limpeza do ar e da água, mas as alterações climáticas não funcionam assim” pelo fato de que os gases de efeito estufa, com emissões ampliadas pela desregulamentação trumpista, vão permanecer por décadas retendo o calor na atmosfera do Planeta (NYT, 2020).
Conservadorismo x meio ambiente
Governos negacionistas têm demonstrado fazer mal ao meio ambiente e ao cumprimento dos objetivos fixados pelo Acordo de Paris (United Nations Climate Change, 2015), assim como são bastante reticentes no cumprimento da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e os seus 17 ODS. Assim o conservadorismo, seja na vertente neoliberal, seja na sua feição ordoliberal, tem se mostrado como um perigoso e perverso inimigo do meio ambiente e da estabilidade climática. O problema, sim, passa a ter inegável caráter ético, político e ideológico.
Boa ilustração para este fato é que para além dos retrocessos nas políticas de corte de emissões do governo Trump, estas foram implementadas em um momento crítico, em um período em que o nível global de gases com efeito estufa na atmosfera ultrapassou um limiar de concentração atmosférica há muito temido (NYT, 2020). Neste ano de 2024 muitos dos efeitos catastróficos das alterações climáticas, como a subida do nível do mar, tempestades nunca antes vistas, calor, secas e incêndios florestais devastadores, demonstram serem irreversíveis. O próprio estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, sofreu uma enchente nunca antes vista e que chocou o mundo tal a sua violência e brutalidade.
Esses eventos também ameaçam as democracias, pois geram instabilidade política entre as nações, em virtude dos refugiados climáticos e, também, aumentam a crise social dentro dos países ao ampliar a espiral da desigualdade e da violência.
Herança maldita
Os efeitos nefastos da gestão Trump, que nomeou mais três Justices conservadores para a Suprema Corte (Scotus), impuseram uma grande dificuldade ao governo Biden para valer-se da autoridade de chefe do Poder Executivo e criar regras rígidas e duradouras de tutela ambiental e do sistema climático. Certamente, essa maioria conservadora de seis juízes na Scotus vai decidir de modo desfavorável à natureza cases que envolvem políticas de tutela ambiental e climática regulatórias nas próximas décadas, apenas podendo essa tendência ser revertida por um vigoroso debate público democrático, pelo avanço da ciência e pelas evidências crescentes e divulgação ampla da própria crise climática.
Obviamente que o Estado de Direito, ao estilo Rule of Law, vai precisar expandir significativamente a autoridade das agências federais para regular a indústria e as atividades poluidoras.
Mau exemplo
O negacionismo climático, ao contaminar os Estados Unidos, teve como resultado um impacto político adverso na comunidade internacional, pois serviu de mau exemplo de política externa, como quando retirou-se apressadamente do Acordo Climático de Paris de 2015. Essa ação política equivocada foi um desestímulo para os esforços internacionais que estavam ajustados entre as nações para reduzir as emissões e levou outros governos (como Brasil e Argentina), por espelhamento, a seguir a posição americana de enfraquecimento das regras de corte de emissões, embora felizmente não tenham desistido formalmente do ajustado na COP21.
Os cientistas, igualmente, há muito, alertam que se os gases com efeito estufa na atmosfera ultrapassassem a concentração de 400 partes por milhão, impedir um aquecimento de 1,5 graus Celsius no ano de 2100 seria impossível, e esse patamar de concentração, como se sabe, foi ultrapassado há oito anos. O Acordo Climático de Paris, com base na ciência, englobou essa meta para evitar a subida do nível dos oceanos, o aumento das tempestades, das secas generalizadas, das ondas de calor, e da extinção em massa dos recifes de coral.
Os níveis de dióxido de carbono na atmosfera atingiram pela primeira vez 400 partes por milhão em 2016, ano em que Trump foi eleito. Mas o ex-presidente colocou o crescimento econômico acima das metas de emissões, argumentando que o clima e outras regulamentações ambientais estavam a prejudicar a criação de emprego.
Referida política contraria o conteúdo do relatório de 1,5 C do IPCC (2018), que concluiu que as economias mundiais precisam reduzir as emissões em 45% em relação aos níveis de 2010 até 2030. No mesmo sentido, as políticas públicas para que essa meta seja alcançada devem ser implementadas rapidamente e com maior ambição climática.
Os Estados Unidos, que ainda são a maior economia do mundo, perderam muito tempo com um governo com alto déficit democrático no que se refere a uma política climática. Como observa Richard Newell, presidente da Resources for the Future, “perdemos um tempo muito importante com as alterações climáticas, algo que não podemos permitir. Há danos graves causados por ignorar o clima durante quatro anos que não podem ser precificados. É um problema enorme que precisa ser enfrentado com uma visão de longo prazo” (NYT, 2020).
De acordo com o grupo Rhodium, uma organização de pesquisa apartidária, por sua vez, se os cinco maiores retrocessos regulatórios de Trump no controle climático fossem mantidos por Biden, mais de 1,8 bilhões de toneladas métricas de gases com efeito estufa seriam adicionados à atmosfera até 2035. Esse número equivale a um valor superior das emissões de gases de efeito estufa da Alemanha, Grã-Bretanha e Canadá no período de um ano (NYT, 2020).
Reforma cívica
Como referido, a nomeação dos Justices conservadores Neil M. Gorsuch, Brett M. Kavanaugh e Amy Coney Barrett por Trump, de outro lado, é um ponto negativo que vai engessar casos de litigância climática e ambiental na Suprema Corte do país e, por certo, enfraquecerá princípios estruturantes da democracia, que precisa ser reformada afastando também as distorções do colégio eleitoral, do gerrymandering e do filibuster.
É preciso mais democracia na América, e não menos, e uma reforma no espírito cívico é necessária, em especial nos estados mais ao sul. Como referem Levitsky e Ziblat em sua nova obra:
“Reformar a democracia americana exige um acerto de contas com nosso passado não muito democrático. Se estamos verdadeiramente comprometidos com a democracia, precisamos lidar não só com suas conquistas, mas também com seus fracassos. Reformadores ao longo da história americana admiraram nossa Constituição ao mesmo tempo que reconheceram seus defeitos e trabalharam para corrigi-los. Eles amaram seu país, mas não deixaram de se esforçar para torná-lo melhor, mais justo e mais democrático” (2023, p.230-231).
E, de fato, enquanto eu pesquisava na Columbia University, nos anos de 2015-2016, como aluno do professor Jeffrey Sachs, foi possível acompanhar de modo privilegiado os debates que culminaram na elaboração da Agenda 2030 da para o Desenvolvimento Sustentável da ONU. Quando os ODS foram adotados na América, os Estados membros tinham identificado três categorias críticas de catástrofes ambientais induzidas pelo homem: as alterações climáticas (aquecimento global); a destruição da biodiversidade e dos habitats; e a poluição do ar, dos mares e da águas, por diversas atividades industriais(Wedy, 2018, p. 45). Com o início da pandemia de Covid-19 em 2020, uma quarta categoria — doenças zoonóticas emergentes — foi sabiamente acrescentada a esta lista.
Por conseguinte, os ODS abordam as ameaças ambientais que o planeta enfrenta principalmente nos seguintes domínios: – Práticas agrícolas sustentáveis (ODS 2); – Prevenção e supressão de doenças zoonóticas emergentes (ODS 3); – Gestão sustentável da água (ODS 6); – Cidades e outros assentamentos humanos sustentáveis (ODS 11) (Sachs; Sorondo; Thorson, 2022, p. 322-323). E, também: – Consumo e produção sustentáveis (ODS 12); – Conter as alterações climáticas induzidas pelo homem (ODS 13); – Proteger os ecossistemas marinhos e a biodiversidade da Terra (ODS 14); – Proteger os ecossistemas terrestres e a biodiversidade da Terra (ODS 15) (Sachs; Sorondo; Thorson, 2022, p. 322-323).
Em geral, esses objetivos devem ser atingidos por meio de uma combinação: da introdução de novas tecnologias (como a transição dos combustíveis fósseis para as energias renováveis); da melhoria da vigilância global e dos sistemas de saúde pública (para frear as doenças emergentes); de mudança comportamentais (como dietas mais saudáveis que sejam também menos nocivas ao meio ambiente); da melhoria da regulamentação; e da aplicação da lei (com a concretização da das leis antipoluição) (Sachs; Sorondo; Thorson, 2022, p. 322-323).
O primado do dinheiro e o papel do Estado
É possível inferir que o Estado Socioambiental de Direito encontra-se ameaçado por governos que inibem o debate público como prática democrática e governam com as elites que visam dar primazia aos valores ligados apenas ao crescimento econômico e a consolidação da propriedade privada, desconsiderando a função socioambiental da mesma e os próprios princípios da dignidade da pessoa humana e da fraternidade. Importante observar que o princípio da dignidade da pessoa humana caminha junto com o princípio constitucional da fraternidade. Em boa hora, refere Fonseca, que
“…as experiências históricas de realização da igualdade à custa da liberdade (totalitarismo) ou do sacrifício da igualdade (de oportunidades, inclusive) em nome da liberdade (sentido especialmente econômico: mercado) revelam o desastre de uma tentativa de transformação social não alicerçada na fraternidade. Na verdade, a fraternidade não exclui o direito e vice-versa, mesmo porque a fraternidade enquanto valor vem sendo proclamada por diversas Constituições modernas” (2019, p. 167).
O arcabouço do Estado, como refere Zippelius, por sua vez, é necessário para a garantia da segurança pessoal e da justiça social, no cumprimento das tarefas culturais, e da proteção do meio ambiente natural, da conservação dos recursos limitados e da prevenção contra riscos que representam uma ameaça para a vida(2017, p. 541) em uma concepção ampla e holística.
O Estado Socioambiental de Direito, também, deve buscar a prática democrática para além dos seus limites políticos territoriais. Como assinala Teixeira, “a democracia transnacional, no seu rumo para se afirmar como uma continuidade liberal em escala global, oferece diversos canais, estruturas e instâncias decisórias em condições de promover a integração entre povos, países, culturas e indivíduos (2011, p. 136 )”. Em sendo a tão vilipendiada democracia consequência dos diversos processos de globalização, “o seu maior desafio não é de ordem técnica, comunicativa ou procedimental, mas é sim impedir que se reproduza no seu interior a mesma hegemonia das grandes potencias ocidentais atualmente existente nas relações internacionais” (2011, p. 137).
Enfim, a prática democrática retroalimenta a estrutura do Estado Socioambiental de Direito na sua organização interna e também nas suas relações políticas e jurídicas com as outras nações e órgãos internacionais de direito público no âmbito externo e é de importância crucial no combate às poluições e ao aquecimento global.
Referências bibliográficas:
FONSECA, Reynaldo Soares da. O princípio constitucional da fraternidade: seu resgate no sistema de justiça. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019.
IPCCC. Global Warming of 1.5 ºC. Disponível em: https://www.ipcc.ch/sr15/. Acesso em: 20.04.2024.
LAZARUS, Richard J. The Rule of Five: Making Climate History of Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 2020.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Steven. Tyranny of the Minority: Why American Democracy Reached the Breaking Point. New York: Crown, 2023.
SACHS, Jeffrey ; SORONDO, Sánchez Marcelo; THORSON, Jesse. Ethics in Action for Sustainable Development. New York: Columbia University Press, 2022.
TEIXEIRA, Anderson V. Democracia transnacional: as novas esferas transversais de decisão política(p. 123-137). In: FREITAS, Juarez; TEIXEIRA, Anderson V(Org). Direito à democracia: ensaios transdisciplinares. São Paulo: Editora Conceito Editorial, 2011.
THE NEW YORK TIMES. The Trump Administration Rolled Back More Than 100 Environmental Rules. Here’s the Full List.Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2020/climate/trump-environment-rollbacks-list.html. Acesso em: 28.04.2024.
THE NEW YORK TIMES. The U.S. Left the Paris Climate Pact. Allies and Rivals Are Pressing Ahead.
Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/11/04/climate/paris-agreement-us-election.html. Acesso em: 20.04.2024.
UNITED NATIONS CLIMATE CHANGE. The Paris Agreement. What is the Paris Agreement?
Disponivel em: https://unfccc.int/process-and-meetings/the-paris-agreement. Acesso em: 28.04.2024.
WEDY, Gabriel. Desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.
ZIPPELIUS, Reinhold. Allgemeine Staatslehre (Politikwissenschaft). Munich : C.H.Bech, 2017.
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