Decisão do STF cria dúvidas sobre prévia indenização na retomada de serviço de saneamento
31 de agosto de 2024, 7h02
Em um município paulista, uma empresa privada foi contratada para fazer os investimentos necessários e a operação das atividades dos serviços públicos de esgotamento sanitário. Contudo, o valor das tarifas que recebeu foi menor do que o devido, para que se ajustasse à capacidade de pagamento dos usuários. Com isso, ao final do prazo do contrato, não foi possível para a concessionária recuperar todo o montante que investiu, permanecendo uma considerável quantia de indenização a ser pago pelo município. A questão que surgiu no Judiciário foi: pode o município retomar os serviços sem realizar o prévio pagamento de indenização à concessionária?

O tema foi alvo de debates na reforma do Marco do Saneamento Básico, e o que ficou decidido é que não poderá haver retomada dos serviços sem prévio pagamento de indenização. Eis o texto da norma publicada: “A transferência de serviços de um prestador para outro será condicionada, em qualquer hipótese, à indenização dos investimentos vinculados a bens reversíveis ainda não amortizados ou depreciados, nos termos da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, facultado ao titular atribuir ao prestador que assumirá o serviço a responsabilidade por seu pagamento” (artigo 42, § 5º, da Lei nº 11.445, de 2007).
Acreditou-se que, finalmente, haveria segurança jurídica para os investimentos em saneamento básico. É importante lembrar que os investimentos nesses serviços, segundo a doutrina econômica, são classificados como sunk costs (“investimentos enterrados”). Investir em infraestruturas de saneamento possui riscos, pois não é possível para a concessionária, ao final do contrato, levar consigo, por exemplo, as tubulações que instalou ou a estação de tratamento de esgotos que construiu.
Garantia de indenização e segurança jurídica
Além disso, para enfrentar o grande déficit nos serviços, é necessário realizar os investimentos imediatamente, no início dos contratos, e, em razão da capacidade de pagamento do poder público e dos usuários, o concessionário só recupera o valor investido a longo prazo. Ou seja, para a concessão dar certo, o concessionário tem que acreditar que pode investir no presente porque o contrato assegura que ele será ressarcido no futuro. Mas e se o contrato terminar antes desse ressarcimento? A garantia é que a concessionária somente será retirada dos serviços, e da arrecadação das receitas tarifárias, após ter sido devidamente indenizada.

Em outras palavras: sem a segurança jurídica de que haverá a recuperação dos valores investidos, não haverá como viabilizar o elevado valor de investimentos necessário para universalizar o saneamento básico. Por isso, a mudança no Marco do Saneamento, ao prever que “a transferência de serviços de um prestador para outro será condicionada, em qualquer hipótese, à indenização dos investimentos”, é crucial para determinar se os brasileiros e brasileiras, finalmente, terão acesso universal ao saneamento básico.
Norma da ANA e a posição do STF
Nesse mesmo sentido, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), ao editar a Norma de Referência sobre indenização ao final dos contratos (NR 3/ANA), prevê que “a reversão dos bens será efetivada somente quando do pagamento da indenização dos ativos não amortizados ou depreciados” (artigo 38, § 4º).
Porém, na Reclamação Constitucional nº 64.128-SP, em curso no STF, que trata do caso mencionado no início deste artigo, de retomada dos serviços sem prévio pagamento de indenização, o ministro relator decidiu em sentido contrário. Afirmou que “não é possível depreender desse conjunto de normas — e tampouco do julgado indicado como paradigma — que a ocupação deve ser necessariamente precedida de indenização”.
O que até agora os contratos, os investidores e todo o setor de saneamento entendiam — inclusive os reguladores, como se vê pelo teor da norma de referência acima mencionada — é que toda e qualquer transferência de ativos deve ser precedida do pagamento da indenização. Ou seja, eliminava-se o risco do “calote”.
Releia-se a norma: “A transferência de serviços de um prestador para outro será condicionada, em qualquer hipótese, à indenização dos investimentos vinculados a bens reversíveis ainda não amortizados ou depreciados, nos termos da Lei nº 8.987”. Ou seja, o pagamento é prévio, mas a forma do cálculo deve atender ao previsto na Lei 8.987/1995 – em resumo: a lei antiga é aplicável desde que não contrarie o texto da lei nova, que previu o pagamento prévio da indenização.
Entretanto, na decisão monocrática, afirmou-se, mesmo que em obiter dictum, que seria aplicável a Lei 8.987 também no que se refere ao momento do pagamento da indenização. Com o devido respeito, essa compreensão esvazia a lei nova, pois retira a única novidade que trouxe.
Rastro de insegurança
É verdade que a decisão não conheceu do recurso e que esse aspecto do momento da indenização foi analisado apenas en passant. Mas as palavras de ministros do STF possuem elevado valor e autoridade e, mesmo não sendo uma referência válida como jurisprudência, o veiculado em obiter dictum pode repercutir fortemente na forma como os tribunais interpretam o direito.
Completa o quadro o fato de que o recurso de agravo regimental interposto contra a decisão monocrática foi rejeitado, em razão de fundamentos processuais e outros aspectos alheios ao tema deste artigo. A demanda foi resolvida, talvez até com acerto, porém deixou-se um enorme rastro de insegurança jurídica para os investimentos em saneamento básico.
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