Opinião

Pejotização: Congresso tem em mãos instrumento positivo para o artista

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  • é advogado mestre em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) professor escritor especialista em Direito e Processo do Trabalho e presidente da Comissão de Direitos Autorais Imateriais e Entretenimento da OAB/DF.

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30 de agosto de 2024, 20h44

A desigualdade das relações de trabalho é fato notório dentro do estudo das relações trabalhistas. O poder econômico do empregador por si já é fator preponderante na diminuição do poder de negociação e de imposição dos empregados. Não é à toa que as normas trabalhistas, por ordem principiológica, são regidas pela proteção, irrenunciabilidade de direitos, inalterabilidade contratual lesiva, continuidade, intangibilidade salarial e primazia da realidade.

Não suficientemente em situação precária, o trabalhador brasileiro ainda aprendeu a conviver com o fenômeno da “pejotização”, que conforme explica Oliveira [1]:

“…uso da pessoa jurídica para encobrir uma verdadeira relação de emprego, fazendo transparecer formalmente uma situação jurídica de natureza civil. A denominação é fruto da sigla da pessoa jurídica, isto é, PJ = pejotização, a “transformação” do empregado (sempre pessoa física) em PJ (pessoa jurídica).”

Por conseguinte, a prática trouxe diversos prejuízos para a classe trabalhadora que vão além da simples expressão precarização, tendo em vista que, por serem rotulados como “empresas” ou empresários, perderam a capacidade de serem orientados ou abarcados pelas instituições sindicais e demais federações.

No ambiente artístico, esse movimento foi ainda mais brusco, tendo em vista que os profissionais contemplados na legislação trabalhista, que possuíam os vínculos de pessoalidade, habitualidade, onerosidade e subordinação, foram obrigados a se constituir como “empreendedores” e/ou “empresários de si mesmos”. Essa conversão, visando a manter sua colocação e chamada para o trabalho, ainda também servia como benefício aos empregadores na área de recolhimento tributário. A prática permanentemente os afastou dos trabalhadores regidos pela CLT, sendo agora denominados apenas como “prestadores de serviço”.

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A presente situação ainda foi azo para o oferecimento de uma denúncia para o Cade, que resultou na abertura de um procedimento administrativo pelo contra o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado de São Paulo (Sated-SP), determinando que o sindicato deixasse de elaborar e divulgar tabelas com valores mínimos de remuneração em convenções coletivas de trabalho para serem seguidas pelos atores em dublagem da região.

Nessa esteira, foi apresentado na Câmara dos Deputados o PL 152/22, [2] de autoria de Alexandre Padilha (PT-SP), apresentando a seguinte ementa:

Altera a lei nº 6.533/78 que “dispõe sobre a regulamentação das profissões de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões, e dá outras providências” para garantir o reconhecimento e representação sindical dos trabalhadores e trabalhadoras, artistas e técnicos.

Pejotização cria insegurança jurídica

O projeto atualmente está na Comissão de Trabalho (CTRAB) do Congresso, aguardando votação para seguir com a sua tramitação. O deputado [3] autor reitera a insegurança que a “pejotização” continuará causando, caso o seu projeto não seja aprovado:

“Uma enorme insegurança jurídica surge do não acolhimento dessa realidade na lei que hoje regulamenta a profissão de artistas e técnicos, gerando brechas para ações deliberadas de poderosos setores econômicos contra os sindicatos de trabalhadores”

Nesta linha, tendo em vista a problematização que a “pejotização” representa e o referido projeto em tramitação, se faz necessária uma análise jurídica sobre a importância do referido texto, bem como sua pertinência e legalidade, as quais deverão ser objeto de apreciação em momento oportuno na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

Conforme se extrai dos ensinamentos de Leite [4] para caracterizar uma relação de emprego, é necessário que o empregado e o empregador estejam qualificados conforme os artigos 2º e 3º da CLT, os quais apontam as características fundamentais de pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade.

Spacca

Qualquer relação de trabalho que careça de um desses institutos não se qualifica como uma relação geradora de vínculo empregatício. Observadas tais qualificadoras, vemos então a existência das relações de trabalho para as relações de emprego. Como bem difere a doutrina, a relação de trabalho se refere ao gênero e a relação de emprego a uma de suas espécies, como pontua Leite [5].

Tendo em vista tal realidade jurídica, há quem assevere que a pejotização se trata de uma fraude, como é o caso de Espinelli e Calcini, [6] que defendem que a mesma é uma fraude com o objetivo de obrigar os empregados a constituírem uma pessoa jurídica com o fim de ocultar uma relação de trabalho que seria considerada como típica.

Conforme já mencionado anteriormente, o fato de os trabalhadores das artes estarem afastados das proteções típicas de um vínculo de trabalho celetista, é palco de vários prejuízos, principalmente na questão da falta de benefícios oriundos dos acordos coletivos. Lembrando também que, por serem empresários de si mesmos e rotulados como prestadores de serviços, não possuem direitos trabalhistas, como FGTS, férias, 13º salário, horas extras. E no caso de dispensa do trabalhador, a demissão gera o direito ao pagamento do aviso prévio, multa rescisória no montante de 40% sobre o FGTS, saldo de salário e o pagamento das demais verbas proporcionais [7].

Do outro lado da relação, o empregador, ora tomador do serviço, não apenas goza de “alívios” tributários, como também se abstém-se de toda carga burocrática da contratação nas normas da CLT, o registro, exame admissional e demissional, custos adicionais na aplicação de treinamentos, cursos preparatórios para funcionários novos e atualização aos que já laboram [8].

Alívio a quem foi levado à pejotização

Posto que ficou claro que o instituto da pejotização é uma prática que impõe malefícios somente aos trabalhadores, é necessário avançar ao mérito do que se discute atualmente no PL 152/22. Como primeira observação, o PL não deseja alçar os pejotizados ao patamar dos celetistas, mas somente deseja que a representação sindicação possa alcançar os referidos trabalhadores da classe artística. Isto por si já traria um determinado alívio aos trabalhadores que foram empurrados para a pejotização, tudo feito de maneira que não ofenderia os princípios constitucionais.

Vejamos o artigo 8º, III da Constituição, [9] que fala sobre as associações profissionais ou sindicais:

Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
III – ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;

Repare-se no texto constitucional que cabe ao sindicato a defesa dos direitos e interesses da categoria, como um todo, sem que sejam feitas ressalvas ou impedimentos. O fenômeno da pejotização trouxe uma espécie de anomalia, que se tratam das categorias pejotizadas, como é o caso dos artistas em questão. Ainda hoje existem trabalhadores da classe artística que laboram sob o regime celetista, mas reconhecidamente há os pejotizados. Tal situação não os desqualifica como artistas, logo persistem como categoria. Se persistem como categoria, devem continuar tendo o direito de serem protegidos pelos respectivos sindicatos.

Logo, desse pensamento retirado direto do texto constitucional, os profissionais liberais, mesmo que obrigados a aturarem como pessoas jurídicas, têm direito à representação sindical conforme os incisos III e V do Artigo 8º[10], que prevê que:

Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
V – Ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato.

A Constituição não faz uma distinção explícita entre a representação de trabalhadores individuais e de pessoas jurídicas pelos sindicatos, muito embora a CLT de forma geral aborda a representação de trabalhadores individuais. No entanto, também é omissa quanto aos demais de modo que o PL 152/22 não constitui frontalmente uma ofensa aos princípios constitucionais e nem ao texto positivado. Pelo contrário, ainda que seja uma medida relativamente desafiadora, nada mais é do que respeitar os direitos e princípios básicos do trabalho, os quais foram afastados por um revestimento aparente de empresariado, como é o caso da pejotização.

Então finalmente, o PL 152/22 respeita o texto constitucional quando reverbera a representação sindical como protetora dos direitos e garantias individuais e coletivas das categorias, estas que não deixam de ser somente por existirem como pessoas jurídicas e não como pessoas físicas. Logo, para uma vida saudável dos trabalhadores das artes, é de bom tom que o PL 152/22 encontre sua aprovação no Congresso.

 


[1] OLIVEIRA, L.M. Pejotização e a precarização das relações de emprego. Rev Jus Navigandi, v,18 n.3501, 2013.

[2] Câmara Legislativa do Brasil – Projeto de Lei 152/22 – Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2314131

[3] Agência Câmara de Notícias – Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/855328-PROJETO-AMPLIA-DIREITOS-SINDICAIS-DE-ARTISTAS-E-TECNICOS-EM-ESPETACULOS

[4] LEITE, C.H.B. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2020.

[5] LEITE, C.H.B. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2020.

[6]ESPINELLI, A.R.; CALCINI, R. A pejotização nas relações detrabalho. Migalhas, 2020.

[7] MARTINEZ, L. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

[8] CARVALHO, Fernando Ribeiro da Silva. DIAS, Marcos Rogério Pianca. Ciências Jurídicas, v.23, n.2, 2022, p.132-138.

[9] Constituição da República Federativa do Brasil, art. 8º. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[10] Constituição da República Federativa do Brasil, art. 8º. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

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  • é advogado, mestre em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), professor, escritor, especialista em Direito e Processo do Trabalho e presidente da Comissão de Direitos Autorais, Imateriais e Entretenimento da OAB/DF.

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