Estado chantagista de direito: Legislativo sem freios ou contrapesos
28 de agosto de 2024, 6h02
No Brasil, o conceito de Estado democrático de Direito constitui a base fundamental sobre a qual se sustenta toda a estrutura do ordenamento jurídico [1]. Conforme estabelecido no artigo 1º da Constituição de 1988, esse conceito abrange a soberania popular, a existência de uma Constituição que exprime a vontade coletiva, eleições livres e periódicas, bem como um sistema robusto de garantias dos direitos fundamentais. Em suma, é aquele Estado em que todos os poderes se equilibram, a soberania popular é respeitada e a Constituição atua como o farol que guia as decisões políticas e sociais.
Outro pilar essencial desse modelo é a divisão dos Poderes, que devem ser independentes e harmônicos entre si [2]. Essa ideia, derivada da Teoria da Separação dos Poderes, foi desenvolvida por Montesquieu e introduzida através do conceito de freios e contrapesos [3].
Esse sistema visa evitar a concentração de poder em uma única esfera estatal, garantindo que os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário possam se controlar mutuamente. Montesquieu acreditava que apenas o poder poderia conter o poder, e, portanto, a separação e a autonomia dos poderes são fundamentais para a manutenção do equilíbrio institucional e a preservação de um Estado verdadeiramente democrático [4].
Nova separação de poderes
Sobre o tema, Ackerman propõe, no contexto estadunidense, uma nova forma de separação de Poderes (New Separation of Powers) [5]. O professor de Yale sugere a criação do chamado “parlamentarismo limitado”, propondo uma mudança clara de abordagem: retira-se a ideia de Poderes com a inserção da divisão em funções. Com isso, pretende acabar a visão estática de monopólios do poder e flexibilizar o escopo de atuação equilibrada de cada instituição no cenário político da estrutura governamental.
Todavia, no atual estágio das relações entre as instituições democráticas brasileiras, observamos uma preocupante distorção desse equilíbrio. Em vez de funcionar como um sistema em que “só o poder controla o poder”, como postulou Montesquieu, parece que agora o poder busca se autorregular, ajustando as regras conforme as conveniências momentâneas. O Legislativo, em particular, tem demonstrado uma notável capacidade de contornar os contrapesos que o Judiciário impõe, o que nos leva a questionar a real independência entre os poderes atualmente [6].
Retaliação do Congresso à AGU
Um exemplo emblemático dessa dinâmica é a retaliação do Parlamento ao ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias. Em 3 de junho de 2024, durante o seminário “Meio Ambiente Global, na Amazônia e no DF”, Messias criticou severamente o Congresso pelas leis aprovadas na área ambiental, classificando-as como uma ameaça à humanidade. Ele ainda afirmou que o modelo tradicional de enfrentamento a essas legislações, limitado ao recurso ao STF, estava esgotado, mencionando que marcos institucionais essenciais foram fragilizados, o que impediu o Estado brasileiro de atuar de forma adequada na fiscalização ambiental [7].
A resposta do Congresso foi rápida e contundente. No dia seguinte, 4 de junho de 2024, a oposição solicitou ao presidente da Câmara, Arthur Lira, que retomasse, em regime de urgência, a tramitação de um projeto de lei de 2019 que propunha o fim dos honorários de sucumbência pagos pela parte vencida da ação aos advogados públicos.
Messias, ao perceber a articulação, entrou em contato com Lira para tentar impedir a votação do projeto. Além disso, a oposição fez duas exigências: a cessação de processos contra deputados por críticas ao governo e a extinção da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, criada pela AGU para combater fake news [8].
Lira contra o STF
Outro emblemático episódio ocorreu em 16 de agosto de 2024, quando Arthur Lira iniciou uma série de manobras legislativas visando a limitar o papel de controle do Poder Judiciário, especialmente do STF. O ponto de partida desse embate foi uma decisão monocrática do ministro Flávio Dino, que suspendeu a execução das chamadas “emendas Pix” — emendas parlamentares impositivas que têm sido alvo de críticas devido à falta de transparência na destinação dos recursos.
Essas emendas são verbas públicas que os parlamentares direcionam para projetos em suas bases eleitorais. Embora sejam uma ferramenta legítima de política pública, sua execução tem sido frequentemente questionada pelo uso político e pela opacidade que as cerca. Flávio Dino, em sua decisão, determinou que fossem estabelecidos critérios mais rígidos para garantir a transparência e rastreabilidade desses recursos, submetendo-os assim ao escrutínio público.
A reação do Congresso, sob a liderança de Lira, foi tanto imediata quanto agressiva. Lira rapidamente desengavetou a PEC 08/2021, enviando-a à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), com o objetivo de limitar as decisões monocráticas dos ministros do STF e de outros tribunais superiores. Essa PEC, se aprovada, impediria que um único ministro pudesse suspender a eficácia de leis aprovadas pelo Congresso, como foi o caso das emendas Pix.
Além disso, Lira encaminhou à CCJ a PEC 28/2024, que permitiria ao Congresso Nacional anular decisões do STF que fossem consideradas como excedendo a “função jurisdicional” da corte. Para tal anulação, seria necessário o voto de dois terços dos membros de ambas as Casas Legislativas [9]. Em outras palavras, se os parlamentares julgarem que uma decisão do STF extrapolou os limites de sua competência, ela poderia ser derrubada por uma votação no Congresso.
Emendas como moeda e a tentativa de silenciar o Judiciário
Esses movimentos levantam uma questão crucial: por que o Congresso está tão determinado a manter a destinação das emendas Pix sob sigilo? Se tais emendas são verdadeiramente destinadas a projetos e serviços essenciais para a população, por que tamanha resistência à transparência? A resposta, embora não explicitada, parece estar ligada ao desejo de preservar a autonomia política e a capacidade de barganha dos parlamentares, que utilizam essas emendas como moeda de troca no jogo político.
A exigência de transparência, como defendida pelo STF, exporia os reais interesses por trás dessas destinações, que, embora públicas, são frequentemente tratadas como ferramentas de poder privado.
Essas propostas, se aprovadas, representam uma tentativa clara de enfraquecer o poder de fiscalização do Judiciário sobre as ações do Legislativo. A mensagem implícita é que o Congresso não está disposto a renunciar a sua autonomia, mesmo que isso signifique sacrificar a transparência na gestão de recursos públicos. Ao invés de acatar as recomendações do STF e aprimorar os mecanismos de transparência, o Legislativo parece preferir silenciar a voz do Judiciário, criando um ambiente em que o controle externo das ações parlamentares é minimizado.
Estado chantagista de direito
Em última análise, o que estamos testemunhando é uma distorção do sistema de freios e contrapesos que deveria garantir o equilíbrio entre os poderes. Esse sistema está sendo subvertido por uma lógica de poder que prioriza a autopreservação política em detrimento dos princípios constitucionais. O “Estado chantagista de direito” não é apenas uma figura de linguagem irônica, mas uma realidade preocupante, onde as regras do jogo democrático são moldadas conforme as conveniências políticas.
Se essas PECs forem aprovadas, o Brasil poderá estar caminhando para um cenário em que o equilíbrio entre os Poderes é substituído por um domínio absoluto do Legislativo, esvaziando a função do Judiciário e comprometendo seriamente a qualidade da democracia no país. O Estado democrático de Direito, que deveria ser uma garantia de justiça e transparência, corre o risco de se transformar em uma fachada para práticas autoritárias e antidemocráticas.
Com a aprovação dessas propostas, o Legislativo brasileiro pavimentará o caminho para um “Estado chantagista de direito”, no qual as regras do jogo mudam conforme a conveniência política. Montesquieu certamente estaria revirando em seu túmulo ao observar sua teoria dos freios e contrapesos ser desmontada peça por peça.
O que resta ao povo brasileiro? Assistir de camarote enquanto os legisladores, eleitos para defender o interesse público, jogam o jogo da chantagem política, redefinindo o conceito de Estado democrático de Direito para algo muito mais conveniente para os que detêm o poder. E que o poder seja assim, cada vez mais autônomo, cada vez menos fiscalizado e, claro, cada vez mais irônico em sua própria essência.
[1] No Brasil, onde já se viveu sob a égide de constituições totalitárias e absolutistas, o atual conceito de “Estado Democrático de Direito” conferido pela CF/88, é, por sua própria natureza constitutiva, uma evolução dos direitos reivindicados desde a carta constitucional imperialista de 1824.
[2] O princípio da Separação dos Poderes, previsto no art. 2º da CF/88, tem força de cláusula pétrea constitucional (art. 60, § 4º, III, da CF/88), e retrata a independência e a harmonia entre os Poderes como base inafastável do Estado democrático de direito.
[3] MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
[4] A revisitação do princípio da independência dos poderes é brilhantemente realizada por Pasquale Pasquino em: FEREJOHN, John e PASQUINO, Pasquale (2003). Rule of democracy and rule of law. In: Maravall, José María e Przeworski, Adam (ed.). Democracy and the rule of law; Cambridge University Press.
[5] ACKERMAN, Bruce. A nova separação dos poderes. Trad. Isabelle Maria C. Vasconcelos e Eliana Valadares Santos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
[6] https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e entrevistas/artigos/2018/consideracoes-sobre-a-teoria-dos-freios-e-contrapesos-checks-and-balances-system-juiza-oriana-piske
[7] https://www.metropoles.com/colunas/paulo-cappelli/chefe-da-agu-diz-que-congresso-aprova-leis-que-ameacam-a-humanidade
[8] https://www.metropoles.com/colunas/igor-gadelha/ministro-da-agu-busca-lira-e-oposicao-para-tentar-brecar-projeto
[9] https://www.metropoles.com/colunas/igor-gadelha/lira-reage-stf-pec
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