Controvérsias Jurídicas

Processo inquisitivo para defesa da democracia: quando meios destroem fins

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

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26 de agosto de 2024, 10h18

Breve histórico

No final do século 18, durante o período da Ilustração, também conhecido como Iluminismo, as ideias de filósofos como Rousseau, Diderot, Voltaire e Montesquieu forneceram o combustível necessário para a Revolução Francesa (1789-1793), provocando o fim do Absolutismo Monárquico.

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Em 1762, Rousseau publica O Contrato Social, disseminando o conceito da origem popular do poder, mediante o enunciado de que todo poder emana do povo. Segundo Rousseau, as pessoas se reúnem por meio de um pacto social, com deveres e direitos recíprocos. Para obterem a proteção do Estado, renunciam à liberdade sem limites que teriam se vivessem isoladamente, e submetem-se a regras cogentes. Há, no entanto, um núcleo irredutível de direitos, dos quais ninguém jamais poderá abrir mão, tais como, o direito a um julgamento justo por um juiz imparcial.

Não faria sentido o cidadão buscar proteção em um Estado que não respeita direitos e garantias individuais, nem se importa com sua segurança jurídica. O respeito às leis se sobrepõe à vontade dos juízes que as aplicam. O governo das leis prefere ao dos homens. Antes de Rousseau, em 1748, o barão de Montesquieu já escrevia O Espírito das Leis, difundindo o conceito de separação e equilíbrio entre os poderes, mediante um sistema de pesos e contrapesos.

O poder tem origem no povo e é exercido por agentes delegatários incumbidos da função de legislar, administrar e julgar. Tais representantes são apenas comodatários que ocupam temporariamente espaços na administração pública e subordinam-se à legalidade estrita, só podendo fazer o que a lei determina.

A separação de poderes visa a evitar sua concentração nas mãos de uma única pessoa e com isso, assegurar proteção contra abusos. Dizia Montesquieu que todo aquele que detém poder sem controle, tende a abusar desse poder. Com a divisão de funções, o Poder Legislativo se incumbe de fazer leis para o futuro, enquanto o Executivo administra os problemas do presente e o Judiciário julga fatos cometidos no passado.

Outra contribuição importante foi a obra Dos Delitos e Das Penas de 1764, de Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, que criticava as atrocidades do sistema absolutista e propugnava seu fim. Todo esse ambiente jurídico e filosófico, somado ao caos econômico da França, provocado pela maior crise agrária do século e o déficit fiscal decorrente das despesas com a Guerra dos Sete Anos e do apoio bélico à independência americana, ocasionou o fim da dinastia Bourbon, marcada pelo exercício do poder ilimitado e sintetizada na famosa frase de Luís 14 (1638/1715): L´Etat c´est moi (O Estado sou eu). O último rei da fila, Luís 16, acabou decapitado em 1793.

Na Inglaterra, um século antes, ocorria a Revolução Gloriosa de 1688, que levou à deposição do rei Jaime 2º e sua substituição por Guilherme de Orange, com poderes limitados e submisso ao parlamento britânico. John Locke, filósofo empirista do liberalismo, propagou que os exercentes de poder não são donos de seus cargos e não podem sobrepor seus desejos ao ordenamento legal. Suas ideias foram determinantes para o fim da monarquia absoluta na Inglaterra.

No alvorecer do século 19, consolidava-se a ideia do Estado de Direito, com relevantes repercussões na esfera jurídico-penal. O barão de Feuerbach redescobre no artigo 39 da Magna Charta Libertatum de 1215, o princípio da legalidade, segundo o qual não há crime sem uma lei anterior que o defina. Começava o período dogmático do Direito Penal, com o desenvolvimento das teorias científicas sobre a estrutura analítica do crime e a concepção do tipo penal (Tatbestand), como pressuposto de proteção contra as investidas autoritárias do Estado.

Paralelamente, a Revolução Industrial e a ascensão da nova classe burguesa, enriquecida e ávida por segurança jurídica, criaram o ambiente necessário para a contenção do poder punitivo estatal e a afirmação dos direitos humanos de primeira geração. Todo cidadão tem direito à proteção contra qualquer ação abusiva do Estado que ameace sua liberdade.

Nascia o Estado de Direito, no qual todos se submetem ao império da lei e não à vontade unipessoal de um ditador ou juiz. O positivismo jurídico de Augusto Comte contribuiu para a aplicação científica desse Estado de Direito, cristalizando a noção do juiz como escravo da lei, e não seu dono. A segurança trazida pela letra escrita de regras gerais, abstratas, objetivas, impessoais, públicas e iguais para todos suplanta qualquer inclinação tendenciosa do julgador.

A origem divina do poder preconizada por Jean Bodin ou o poder absoluto justificado por Hobbes, em seu Leviatã, como forma de controlar o caos, não mais encontram espaço na nova ordem. O poder absoluto não protege a democracia, antes a destrói. Não protege contra o caos, mas gera o próprio caos.

No século 20, regimes totalitários voltaram pelas mãos de marxistas sanguinários como Stalin e Mao Tse Tung, pelo fascismo de Mussolini e Franco, e o nazismo supremacista e totalitário de Hitler, para ficar em alguns exemplos. Em todos eles, o ditador dizia estar salvando o povo ou a nação.

A história da civilização se opera por ciclos que alternam avanços e retrocessos em ritmo dialético. Ainda hoje, em pleno século 21, há países ocidentais sofrendo com ditaduras mascaradas de democracias. Em geral, o ditador se justifica com a enganosa retórica da salvação nacional e tenta etiquetar seus alvos como perigosos e extremistas, a fim de tornar mais fácil a tarefa de violar seus direitos constitucionais.

O discurso da defesa social é comum dentre as ditaduras. O processo inquisitivo, no qual juízes cumulam a função de investigar, manipular a prova e julgar, faz terra arrasada do devido processo legal. As leis e a CF deixam de ter importância, quando o Poder Judiciário as abandona em seus julgamentos, gerando imprevisibilidade, com casos semelhantes decididos de modo diverso, de acordo com a conveniência do momento. Quando os fins justificam os meios, são os meios que destroem os fins e a democracia que tanto se queria defender, simplesmente deixa de existir.

Processo acusatório x processo inquisitivo

Nossa CF, aderiu ao modelo rousseauniano, ao estatuir que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido (artigo 1º, parágrafo único) e fixou a dignidade humana como vetor hermenêutico (artigo 1º, III). As garantias processuais estão inexoravelmente vinculadas ao Estado Democrático de Direito (CF, artigo 1º, caput), razão pela qual o Texto Constitucional adotou o sistema acusatório e repeliu o brutal modelo inquisitivo, mais afeito aos regimes repressivos e totalitários.

O processo por inquisição surgiu desde os primórdios da civilização, nos primeiros agrupamentos humanos da pré-história e, mais adiante, já no período da Antiguidade, na Mesopotâmia, com os sumérios, acádios, assírios e babilônicos (Código de Hamurabi), bem como no antigo direito hebreu (Números), antes do início da era cristã.

Após a queda do Império Romano do Ocidente em 476, o processo inquisitivo apareceu no direito bárbaro-germânico com as Ordálias, julgamentos calcados em critérios irracionais de pura superstição, os quais perduraram até 1215, quando foram abolidos pelo 4º Concílio de Latrão. Juízes obrigavam os suspeitos a caminhar sobre brasa ardente ou a boiar em rios caudalosos com pedras amarradas junto ao corpo. Se sobrevivessem, eram inocentados, pois ali se manifestava a vontade divina.

Posteriormente, foi instrumento da Santa Inquisição e seus Tribunais Eclesiásticos, com a punição dos hereges na fogueira. As características do processo inquisitivo são: (a) sigilo, pois a publicidade atrapalha os métodos do inquisidor; (b) a tortura, física ou psicológica, para extração da confissão; (c) prisão por tempo indeterminado; (d) desprezo ao contraditório e ampla defesa; (e) busca obstinada pela confissão ou delação, tidas como provas absolutas; (f) tribunais e juízes de exceção, designados especialmente para certos casos; (g) parcialidade do juiz; (h) reunião na mesma pessoa das funções de investigador, acusador, juiz e executor; (i) admissibilidade de provas ilícitas ou fabricadas fraudulentamente; (l) impossibilidade de recurso contra as decisões; (k) inexistência de parâmetros legais para os julgamentos. O modelo inquisitivo foi abolido das nações democráticas e civilizadas do mundo moderno.

O sistema acusatório é exatamente o oposto. O processo é público, amplamente fiscalizado para evitar abusos. Juízes não são escolhidos para julgar pessoas específicas, mas são sorteados de acordo com critérios legais preestabelecidos e não acumulam as funções de investigar, acusar e julgar.

A imparcialidade e a inércia do órgão jurisdicional são exigências de imparcialidade. Não são admitidas provas ilícitas, a prisão preventiva tem caráter instrumental e não pode ser desvirtuada para extrair confissões ou delações, e o acusado se presume inocente até que sua culpa seja provada. Estão presentes as garantias do contraditório e ampla defesa e existe responsabilização por abuso de autoridade.

Sistema acusatório no Brasil

O Brasil, por meio de sua Constituição, adotou o sistema acusatório, na linha das democracias que respeitam a liberdade individual. Como já salientado pelo STJ: Inexiste controvérsia acerca do modelo acusatório conferido ao sistema penal brasileiro, caracterizado pela separação das atividades desempenhadas pelos atores processuais, pela inércia da jurisdição e imparcialidade do julgador, tampouco de que a cabe ao Ministério Público, na forma do artigo 129 da Constituição, promover privativamente a ação penal pública” [1].

A opção pelo processo penal acusatório fica muito bem evidenciada na Constituição de 1988 ao prever como princípios garantidores e inerentes ao Estado democrático de Direito as garantias da inafastabilidade da tutela jurisdicional (CF, artigo 5º, XXXV), do devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV), do pleno acesso à Justiça (CF, artigo 5º, LXXXIV), do juiz e do promotor natural (CF, artigo 5º, XXXVII e LIII), do tratamento paritário e equidistante das partes (CF, artigo 5º, caput e I), da ampla defesa (artigo 5º, LV, LVI, LXII), da publicidade dos atos processuais e motivação dos atos decisórios (artigo 93, IX) e da presunção da inocência (CF, artigo 5º, LVII).

Outrossim, nosso CPP, em seu art. 3º-A, é explícito a esse respeito: “O processo penal terá estrutura acusatória, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. É inadmissível no modelo acusatório democrático, a figura do juiz justiceiro, que manipula a prova para ajustá-la à sua mente condenatória.

Reafirmando as garantias inerentes ao sistema acusatório, o STF, ao julgar o Habeas Corpus 202.557/SP [2], anulou a ação penal por intensa e indevida incursão do juiz na apuração da prova, com prejuízo a sua imparcialidade e inércia, o que fez confundir no mesmo órgão, a condição de acusador e julgador.

O Pacto de San José da Costa Rica garante o direito a imparcialidade em seu art. 8º, dispositivo “1”: Toda pessoa tem direito a ser ouvida por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei”. O desprezo manifesto às garantias do devido processo legal, faz desaparecer a figura do juiz.

Pretender defender a democracia violando-a sistematicamente faz com que essa missão se torne inútil, pois neste caso, invertendo a lógica maquiavélica, os meios se encarregaram de destruir os fins.

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[1] STJ — HC: 640518 SC 2021/0015845-2, relator: ministro JORGE MUSSI, Data de Publicação: DJ 22/01/2021.

[2] STF — HC: 202557 SP 0054793-62.2021.1.00.0000, relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 03/08/2021, Segunda Turma, Data de Publicação: 12/08/2021.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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