Regras e princípio da concentração de atos na matrícula
25 de agosto de 2024, 11h27
Como demonstrar que a Lei 13.097/15 não contém previsão expressa de um princípio da concentração de atos na matrícula; que os seus artigos dispõem sobre regras específicas, que se afastam de uma natureza principiológica; e que a origem de referido princípio estaria mais vinculada a uma análise sistemática do ordenamento jurídico do que simplesmente ao que propõe a referida lei.

Essa discussão importa por algumas razões. Uma delas surge da posição do professor Eduardo José Fonseca da Costa, de que os princípios não são normas e que o ordenamento jurídico seria formado exclusivamente por regras. Outra situação é a qualificação da discussão acerca de eventual conflito normativo com o instituto da fraude à execução, especialmente sobre o artigo 792, inciso IV, do Código de Processo Civil (CPC).
Apesar de já ser há muito discutido, o assunto foi retomado em razão da Lei 14.382/2022, conhecida como Lei do Serp, que, reformando a Lei 13.097/2015, deu reforço a dispositivos que tratam da concentração de atos. Essa lei, todavia, não atualizou o CPC, que também dispõe sobre o tema no seu artigo 792, o qual foi mantido.
Esse artigo, portanto, se propõe a analisar brevemente a Lei 13.097/2015 para fins de definição da natureza jurídica, seja princípio ou regra, de seus dispositivos. Para tanto, foram utilizados os critérios de distinção definidos pelo professor Humberto Ávila, principalmente aqueles expostos em seu livro “Teoria do Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos”.
Princípio e regra
Ávila [1] indica a existência de uma dificuldade de uniformização da nomenclatura das categorias jurídicas ao tratar do dever de proporcionalidade e sua nomeação como um princípio da proporcionalidade. Ele aponta que essa dificuldade ocorre porque as categorias jurídicas são instrumentos analíticos abstratos, em contraposição a objetos materiais, de percepção sensorial, esses últimos facilmente nomeados.
No mesmo tema, Virgílio Afonso da Silva [2] aponta que qualquer tentativa de uniformização terminológica é fadada ao insucesso em razão da forte carga semântica da palavra “princípio”. Por vezes, o termo é utilizado apenas com a finalidade de conferir maior importância a determinado conceito. Como exemplo, Silva destaca a preferência pela nomenclatura de princípio da anterioridade ou princípio da legalidade, concluindo que:
“Em vista disso, e em vista da própria plurivocidade do termo ‘princípio’, não há como esperar que tal termo seja usado somente como contraposto a regra jurídica.”
Em razão disso, para falar de uma definição de uma categoria jurídica, é necessária uma identificação prévia do critério distintivo empregado. No presente texto, foram utilizadas três definições apresentadas por Ávila, sendo duas vertentes majoritárias, às quais se opõe, e uma decorrente se seu próprio critério de distinção.
A primeira corrente deriva da doutrina clássica do direito público que, ao distinguir princípio de regra, tendo ambos como espécies do gênero norma jurídica, faz o que Ávila chama de “distinção fraca”, por basear-se no grau de indeterminação das espécies normativas. Ou seja, a distinção entre os termos seria que os princípios são mais indeterminados que as regras. O autor explica que:
“A primeira corrente sustenta que os princípios são normas de elevado grau de abstração (destinam-se a um número indeterminado de situações) e generalidade (dirigem-se a um número indeterminado de pessoas) e que, por isso, exigem uma aplicação influenciada por elevado grau de subjetividade do aplicador; contrariamente às regras, que denotam pouco ou nenhum grau de abstração […] e generalidade […], e que, por isso, demandam uma aplicação com pouca ou nenhuma influência de subjetividade do intérprete.” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios. 18. Ed. ver e atual. São Paulo: Malheiros, 2018. ISBN 978-85-392-0400-7, pag. 111)
Esse critério distintivo, todavia, merece críticas uma vez que “toda norma, porque veiculada por meio da linguagem, é, em alguma medida, indeterminada, com base em algo que é comum a todas elas — a indeterminação” [3].
A segunda corrente é iniciada pelos estudos de Dworkin e Alexy e realiza uma “distinção forte” entre os dois termos tomando por base suas estruturas normativas e, por consequência, seus métodos de aplicação. A estrutura normativa das regras seria de deveres definitivos e insuperáveis, e sua aplicação se daria pelo método da subsunção. Já os princípios proporiam deveres provisórios com aplicação pela ponderação. Sobre esse conflito, Ávila discorre que:
“(…) enquanto o conflito entre regras é abstrato (abstratamente concebível já no plano abstrato), necessário (é inevitável caso não seja aberta uma exceção) e situado no plano da validade (o conflito resolve-se com a decretação de invalidade de uma das regras envolvidas), a antinomia entre princípios é concreta (só ocorre diante de determinadas circunstâncias concretas), contingente (pode ou não ocorrer) e situado no plano de eficácia (ambos os princípios mantêm a validade após o conflito).” (Ávila, Humberto. Idem. p. 113)
Essa “distinção forte” é criticada por ter como critério distintivo propriedades contidas pelas duas espécies normativas: a ponderabilidade e a superabilidade. Ávila entende que toda norma jurídica é aplicada apenas após ponderação (no que parece remeter à estrutura de proposições da linguagem como representações figurativas da realidade de Wittgenstein) e é possível que o conflito de regras seja resolvido pelo critério de resolução proposto para princípios.
Dadas as críticas a esses critérios de distinção, o autor prefere propor sua própria definição de critério distintivo entre princípio e regra. A separação dos princípios e das regras se daria por três critérios de distinção de suas naturezas. São eles:
“Em primeiro lugar, as regras diferenciam-se dos princípios pela natureza da descrição normativa: enquanto as regras descrevem objetos determináveis (sujeitos, condutas, matérias, fontes, efeitos jurídicos, conteúdos), os princípios descrevem um estado ideal de coisas a ser promovido.
Em segundo lugar, as regras diferenciam-se dos princípios pela natureza da justificação que exigem para serem aplicadas: as regras exigem um exame de correspondência entre a descrição normativa e os atos praticados ou fatos ocorridos, ao passo que os princípios exigem uma avaliação da correlação positiva entre os efeitos da conduta adotada e o estado de coisas que deve ser promovido.
Em terceiro lugar, as regras distinguem-se dos princípios pela natureza da contribuição para a solução do problema: enquanto as regras têm pretensão de decidibilidade, pois visam a proporcionar uma solução provisória para um problema conhecido ou antecipável, os princípios têm pretensão de complementaridade, já que servem de razões a serem conjugadas com outras para a solução de um problema.” (Ávila, Humberto. Ibidem. p. 109)
A definição da norma nesse critério de distinção depende da verificação das três naturezas, a saber: descritiva, justificativa e contributiva.
A partir disso, passa-se a um exame das atuais redações dos artigos da Lei 13.097/2015 que tratam da concentração de atos, a fim de que seja verificado o seu enquadramento como regra ou princípio sob a ótica dos três critérios de distinção apresentados por Humberto Ávila.
Lei 13.097/2015
A concentração de atos na matrícula tem como fundamento jurídico os dispositivos dos artigos 54 a 58 da Lei 13.097/2015. O artigo 54 é o cerne do instituto, prevendo a segurança pretendida aos adquirentes e as ressalvas, dispondo sobre a inoponibilidade de atos não constantes na matrícula ao adquirente de boa-fé.

O caput e incisos do artigo 54 são claros em seu propósito. Há um comando normativo regrando a aplicação da máxima do prior in tempore potior in iure nos negócios jurídicos que envolvam direitos reais. O referido artigo se expande pelo racional do artigo 1.227 do Código Civil, sujeitando os direitos reais à publicização mediante registro ou averbação na matrícula do imóvel. Assim, tem prevalência de direito aquele que primeiro alcança o fólio real, seja o credor ou o adquirente.
Os parágrafos do artigo 54 continuam a tratar do conflito de interesses entre credores do alienante e o adquirente. Eles reforçam a prevalência do direito do adquirente contra direitos não constantes da matrícula, fixando um parâmetro de segurança do adquirente que realiza o simples exame da matrícula do imóvel e toma as cautelas devidas em relação às ressalvas do §1º. Nesse sentido:
“Em apertada síntese, o novo ordenamento jurídico afastou a necessidade da análise numerosa de certidões e documentos, ancorada na interpretação do regramento contido principalmente no Código Civil de 1916 e do Código de Processo Civil de 1973, visando à demonstração da boa-fé pelo adquirente para delimitar essa comprovação ao exame da certidão atualizada da matrícula, e ostentou a inovação jurídica para legitimar a alteração do viés de proteção do credor ao adquirente de boa-fé.
Acerca disso é importante mencionar a nova redação do art. 54 da Lei 13.097/2015 dada pela Lei 14.382/2022, que visa reforçar o conforto do adquirente de boa-fé pelo simples exame da matrícula do imóvel.” (VITALE, Olivar. Curso de direito imobiliário brasileiro. 2. Ed. ver., atual e ampl. São Paulo: Tomson Reuters Brasil, 2022. ISBN 978-65-260-0607-8, p. 199)
Já o artigo 55 cria regramento específico, também de proteção ao adquirente, para situações de incorporação imobiliária, parcelamento do solo ou condomínio edilício, afastando a hipótese de evicção ou decretação de ineficácia. Resguarda-se, porém, o direito de eventuais credores do alienante se sub-rogarem no preço do imóvel.
Em tais artigos também se encontra a definição de procedimento para a averbação do inciso IV do artigo 54, criada pela Lei nº 13.097/2015 para facilitar o acesso de direitos de credores à matrícula do imóvel. Em se tratando de inovação, o legislador optou por indicar o seu detalhamento nos artigos 56 e 57.
Já o artigo 58 afasta o quanto previsto nos artigos antecessores na hipótese em que o imóvel seja público, isto é, integre o patrimônio da União, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios e de suas fundações e autarquias.
Isso posto, denota-se que todos os dispositivos contêm a descrição de um objeto determinado, com sujeitos, conduta e efeitos jurídicos bem definidos. Isso, por si só, já é suficiente para definição da espécie normativa pelo critério de “distinção fraca”. Ora, se há baixo grau de indeterminação, devem eles ser considerados como regras.
Para fins da “distinção forte”, entende-se que os dispositivos também são construídos de forma que sua aplicação é feita pela verificação de subsunção ou não de uma situação de fato à norma, afastando-se da necessidade de ponderação dos efeitos da referida norma. O comando normativo denota um dever definitivo que, em conflito, seria superado apenas pela regra tudo ou nada, se afastando a validade de uma das normas conflitantes. Tais condições ensejariam a definição da norma também como regra.
Já pela Teoria dos Princípios, de Ávila, verifica-se a natureza da descrição normativa determinável; da justificação de correspondência entre a descrição normativa e os atos praticados ou fatos ocorridos; e da contribuição para solução do problema com pretensão de decidibilidade, parecendo ser o interesse do legislador solucionar um problema conhecido, o conflito de interesses entre credores e adquirentes. Assim, os três exames indicados por Ávila para a realização da distinção indicam se tratar de norma com natureza de regra.
Nesse contexto, os artigos 54 a 58 da Lei nº 13.097/2015 são comandos normativos que devem ser considerados como regra pelos três critérios de distinção discorridos neste trabalho, quais sejam, o da “distinção fraca”, o da “distinção forte” e o da Teoria dos Princípios, do professor Humberto Ávila.
Conflito normativo
Assim, parece claro que as normas incluídas pela Lei da Concentração de Atos na Matrícula, já com as modificações realizadas pela Lei do Serp, têm a natureza de regras. Questiona-se, então, qual seria o efeito prático desse entendimento para a aplicação da concentração de atos frente ao instituto da fraude à execução.
A doutrina da distinção fraca não parece seguir para qualquer modelo de solução de antinomia. A mera distinção por grau de abstração relega a distinção das duas espécies a grau inferior de importância. O que importa é serem normas.
Restaria, portanto, os critérios básicos de solução de antinomia: hierárquico, cronológico ou de especialidade. Na hipótese da aparente antinomia aqui discutida, a Lei de Concentração de Atos, após modificação da Lei do Serp, tem prevalência nos critérios cronológicos e de especialidade, havendo equivalência hierárquica.
Por outro lado, a doutrina de Dworkin e Alexy é mais descritiva com relação a solução de antinomia. O primeiro aponta a regra do all-or-nothing, o segundo solucionando o conflito pela colocação da regra dentro ou fora da ordem jurídica. Em resumo, entende-se que o conflito entre regras é uma incompatibilidade no campo abstrato, que exige a invalidação de umas das normas. Não há necessidade de conflito no caso concreto.
Assim, a inoponibilidade da concentração de atos invalidaria a previsão de fraude à execução por existência de ação capaz de reduzir o proprietário insolvência, ao menos em relação aos bens imóveis. Restaria ao credor afastar a presunção de boa-fé do adquirente, não podendo recorrer à emissão ou não de certidões na diligência prévia.
O professor Humberto Ávila critica essa posição de solução de conflitos como critério distintivo, demonstrando a existência de conflitos entre regras solucionados sem a invalidação de uma delas e indicando a existência de casos em que a aplicação da regra ocorre pela ponderação do julgador. Apesar da importância dessas exceções para a definição da natureza conceitual dos princípios e regras, elas parecem não ter maior relevância ao conflito em discussão.
Assim, parece correto entender que o conflito entre as regras da lei de concentração de atos e da fraude à execução devem ser solucionados pela invalidação do inciso IV, do artigo 792, do CPC, sempre que o bem alienado seja um imóvel.
Entendimento mais abrangente, com base no dever de coerência do legislador e no entendimento jurisprudencial, exige a compreensão de que a restrição do inciso IV é mais abrangente, estando vinculada a todo e qualquer bem registrável, dado o teor §2º do artigo 792 e a Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça.
Por fim, resta a discussão sobre a função do Princípio da Concentração dos Atos se desconsideradas as regras de inoponibilidade de atos não constantes do registro ao terceiro adquirente de boa-fé e da mitigação da due diligence
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[1] Conforme Humberto Bergmann Ávila, “A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade”, Revista de Direto Administrativo 215 (1999): 151-179.
[2] Conforme Virgílio Afonso da Silva, ” O proporcional e o razoável”, Revista dos Tribunais 798 (2002): 23-50.
[3] Ávila, Humberto. Idem. p. 112
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