O filme El Patrón e o acesso dos vulneráveis à Justiça
25 de agosto de 2024, 14h00
O ingresso dos menos favorecidos na Justiça passou a ser uma preocupação mais forte no mundo ocidental, a partir de quando Mauro Cappelletti e Bryan Garth escreveram a histórica obra “Acesso à Justiça”¹, expondo o problema com sensibilidade e mostrando que o acesso não pode ser apenas formal, pois precisa ser efetivo.
Nunca tive dúvidas sobre a diferença entre os bem defendidos, os mal defendidos e os que nem sequer eram defendidos. Na verdade, pude perceber isso com mais profundidade nos 10 anos de promotor de Justiça e confirmar depois, em 26 anos de magistrado federal. É possível afirmar que os mal defendidos entram em flagrante desvantagem na luta por seus direitos. Mas isto não é privilégio do Direito, pois é o que sucede em outras áreas, como a saúde e a educação.
O filme El Patrón: Radiografía de un Crimen
O único emprego que consegue é em um açougue, em que o dono usa dos piores métodos possíveis para enriquecer, inclusive a venda de carnes estragadas, e que, além disto, humilha seu empregado e sonega-lhe os direitos trabalhistas. Um dia ele se enfurece e mata o patrão, sendo por isso preso. Ingênuo, tudo confessa. A Defensoria não lhe dá atenção. Por influência da piedosa diretora de secretaria da Vara, um advogado passa a defendê-lo. A perspectiva é de prisão perpétua. O final não é, aqui, o que importa.
Os vulneráveis na Justiça brasileira
O Brasil utiliza o sistema duplo para a assistência jurídica aos que não dispõem de recursos para contratar um advogado para a defesa de seus interesses. As Defensorias Públicas, órgãos do estado, e os chamados advogados dativos. Estes são pessoas que se dispõem a prestar tal serviço em troca de remuneração a ser paga, caso a caso.
Além disso, muitas faculdades de Direito mantêm setores de atendimento aos necessitados, valendo-se de seus alunos, sob a orientação de um professor. Esta é uma parcela de contribuição importante, porém menos significativa.
A base normativa da gratuidade de justiça, que poderá resultar na ação da DP ou dos dativos, está nos artigos 134 e 5º, inciso LXXIV da Constituição, Código de Processo Civil, artigo 99, §§ 2º e 3º, Código de Processo Penal, artigo 396-A, § 2º, Lei Complementar nº 80, de 1994, que trata da Defensoria Pública da União, Distrito Federal e Territórios e Leis Complementares editadas por cada estado da federação, por exemplo, a Lei Complementar n° 136, de 2011, que regula a Defensoria Pública do Estado do Paraná.
Remuneração e desafios dos defensores públicos e dos dativos
Defensores públicos submetem-se a rigorosos concursos e recebem bons vencimentos, ainda que isto possa variar entre as unidades da federação. É a carreira ideal para aqueles que têm acentuada preocupação com a desigualdade social e as suas consequências. Por outro lado, devem estar bem-preparados psicologicamente. Como são, na sua maioria, oriundos de famílias com recursos, poderão afetar-se com as agruras expostas por aqueles que não têm mais a quem recorrer.
Com relação ao advogado dativo, o valor a ser pago aos que defendem os carentes varia em cada estado. O Paraná possui tabela de fácil visibilidade, variando a quantia conforme o tipo de ação. Por exemplo, uma defesa na esfera criminal, até o trânsito em julgado, pode ir de R$ 1.500,00 a R$ 1.650,00². A mesma defesa, em Santa Catarina, será remunerada com R$ 530,01 a R$ 1.072,03³ e na Justiça Federal com R$ 212,49 a R$ 536,83⁴. Pouco ou muito, ajuda no sustento de muitos profissionais.
Os que exercem tais atividades, na defensoria ou na advocacia, devem estar preparados para uma sucessão de dificuldades. Não raramente, terão que lidar com pessoas que não sabem expressar-se, que não possuem documentos, que têm dificuldades de acesso ao Fórum e outras situações semelhantes.
Imagine-se, por exemplo, a situação dos que perderam suas moradias em razão das enchentes no Rio Grande do Sul.
Mas, por outro lado, terão uma excelente oportunidade de demonstrar solidariedade e ajudar um ser humano, de aprender muito sobre a sociedade em que vivem, de ter noções práticas de psicologia e aumentar seus conhecimentos na área jurídica.
Finalmente, os advogados dativos nunca devem esquecer que estão expondo seus nomes à observação de outros atores. A defesa negligente, a ausência de apelação para a ação transitar em julgado e poder receber rapidamente os honorários, e outras práticas semelhantes, estarão colaborando para a criação de uma má imagem, com reflexos futuros.
O drama de distinguir quem necessita do benefício
O aumento da pobreza nas últimas décadas, agravado pelos efeitos da Covid-19, faz com que muitos peçam em Juízo os benefícios da gratuidade de justiça.
Na esfera criminal isto não chega a ser um problema, pois basta não indicar um advogado para ter direito à nomeação de um profissional habilitado, mas na esfera cível a situação é mais complexa. Como saberá o juiz se aquela pessoa não procura valer-se do benefício não só para ver-se isento das custas, mas também dos honorários advocatícios em caso de insucesso?
Não se olvide que, na visão do STF (RE 249.003/RS, rel. min. Edson Fachin, j. 9-12-2015), a pobreza suspende a execução do pagamento até que sua situação econômica melhore.
A lei não fixa limite máximo para o deferimento da gratuidade. A jurisprudência é hesitante, vai desde a dispensa de comprovação diante da afirmação de necessidade (STJ, Ag. Inst no REsp nº 1836136/PR, Rel. ministro Gurgel de Faria, 1ª. Turma, j. 04.04 2022) até o indeferimento se não houver prova da impossibilidade do pagamento.
A situação pode mudar com o tempo, sobrevindo ou terminando a insolvência. Em tais casos é possível alterar-se o que já foi decidido, pois, “segundo a jurisprudência do STJ, não há falar em preclusão para a parte renovar o pleito de gratuidade de justiça” (STJ, AgInt nos EDcl. nº 1785252/SP, rel. ministro Antônio Carlos Ferreira, j. 21.03.2022).
Deve merecer o benefício quem recebe remuneração bem acima da média do mercado de trabalho? Em princípio não, mas, eventualmente, sim. Se circunstâncias demonstrarem que a pessoa tem bons rendimentos, mas tem despesas de vulto inevitáveis, como doença pessoal ou na família, o benefício deve ser concedido.
Na busca de padronizar o reconhecimento, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná estabelece o direito ao benefício aos que recebem menos de três salários-mínimos (TJ-PR, Ag. Inst. nº 0067557-17.2022.8.16.0000, relator Des. Subst. Vasconcelos Pedroso, j. 22.10.2022).
No Tribunal Regional Federal da 4ª Região, reconhece-se o direito à gratuidade de justiça ao litigante cujo rendimento mensal não ultrapasse o valor do maior benefício do Regime Geral de Previdência Social, ou seja, R$ 7.786,02. Tais decisões são importantes para a segurança jurídica, mas elas não vedam a concessão do benefício em determinadas circunstâncias especiais.
Porém, em sentido inverso, não deverá ser aquinhoado aquele que deu causa à má situação econômica. Por exemplo, o servidor público que não soube frear seus instintos e, por isso, tem três ou quatro ofícios de diferentes Varas de Família na seção de pagamento para descontos de pensão.
Se ele deu causa à própria insolvência, não será razoável que venha disto beneficiar-se com isenção de custas. Ainda, cabe lembrar que no foro extrajudicial poderá haver isenção em registro decorrente de sentença (v.g., divórcio) ou em caso de lei especial (e.g., nas compras pelo programa Minha Casa, Minha vida).
Conclusões
De todo o exposto é possível concluir que:
a) A Justiça brasileira, tal qual a retratada no filme argentino, tende a ser mais severa contra os vulneráveis;
b) É preciso procurar aperfeiçoar o sistema, por meio de práticas que não premiem a pessoa bem situada economicamente, mas que decidam com razoabilidade os requerimentos de gratuidade de justiça;
c) No exame dos pedidos e na interpretação da aplicação ao caso concreto, os juízes deverão valer-se da rega prevista no art. 8º do C.P.C., que recomenda ao juiz que atenda aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência;
d) Finalmente, os juízes, ao aplicar a lei, devem agir com misericórdia, seguindo preceito bíblico (Mateus 23:23 ), sem que com isto percam a imparcialidade.
Referências
¹CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Porto Alegre: S, Fabris, 1988.
²ESTADO DO PARANÁ. Resolução Conjunta nº 015/2019, PGE/SEFA. Disponível em: https://advocaciadativa.oabpr.org.br/wp-content/uploads/2019/11/Tabela_dativos2019_2020.pdf. Acesso em 23 ago. 2024.
³AJG. Tabela de honorários AJE/PJSC. Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/documents/27439/5984985/Tabela+de+honor%C3%A1rios+completa+%28PDF%29.pdf/06680247-d6e9-8fc1-3a7e-67e69c82ec5b?t=1617722780041. Acesso em: 23 ago. 2024.
⁴Conselho da Justiça Federal. Resolução nº 775, de 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-775-cjf-de-28-de-junho-de-2022-411394456. Acesso em; 23 ago. 2024.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!