É justo que o dinheiro apreendido de investigado fique sem correção após devolução?
25 de agosto de 2024, 7h07
Imagine depositar R$ 100 mil em um produto de renda fixa e, após nove anos, esse dinheiro ter rendido apenas 1%? De R$ 100 foi para R$ 101, enquanto o poder de compra é corroído, sem dó, pela inflação. Péssima escolha de investimento, não é mesmo?

Agora, imagine o seguinte cenário: o investigado A é alvo de busca e apreensão por parte da Polícia Federal em razão de inquérito policial que apura possível prática de crime de estelionato contra União. Na residência do investigado A, é apreendido o montante X de dinheiro em espécie. Após nove anos de investigação, o Ministério Público pede o arquivamento da investigação por entender que não havia elementos para se iniciar um processo criminal, enquanto o juiz, diante da conclusão da Procuradoria, determina a devolução do valor apreendido ao investigado A, após quase uma década de apreensão. Quando este dinheiro é finalmente devolvido, a surpresa: o valor apreendido rendeu incríveis 1% ao longo de todo período, tendo como base a taxa referencial (TR).
O cenário incomoda bastante. Trata-se de clara violação ao direito de propriedade assegurado constitucionalmente (artigo 5º, inciso XXII), especialmente porque o então investigado A não depositou o valor voluntariamente, mas sim foi obrigado a fazê-lo em razão de uma suspeita que, posteriormente, não restou comprovada.
Aqui, devemos partir de uma premissa fundamental: não há nenhuma legislação que trate especificamente sobre “o que fazer quando o dinheiro apreendido de investigado é, posteriormente, devolvido ao proprietário em razão do arquivamento da investigação ou de sua absolvição em processo criminal”. Ou seja, qual é o índice de correção a ser aplicado ao valor apreendido? Incidem juros legais e remuneratórios?
Contudo, há legislação que trata superficialmente sobre o assunto, isto é, sem adentrar ao contexto de uma investigação criminal. A Lei nº 9.289,1996, que na realidade dispõe sobre “custas devidas à União, na Justiça Federal de primeiro e segundo graus”, prevê em seu artigo 11, § 1º que “os depósitos de pedras e metais preciosos e de quantias em dinheiro e a amortização ou liquidação de dívida ativa serão recolhidos, sob responsabilidade da parte, diretamente na Caixa Econômica Federal, ou, na sua inexistência no local, em outro banco oficial”, sendo que “os depósitos efetuados em dinheiro observarão as mesmas regras das cadernetas de poupança, no que se refere à remuneração básica e ao prazo”.
Por sua vez, o artigo 7º, da Lei nº 8.660/1993, prevê que “os depósitos de poupança têm como remuneração básica a taxa referencial (TR) relativa à respectiva data de aniversário”, ao passo que a Lei nº 8.177/1991, que trata das “regras para a desindexação da economia”, estabelece que “em cada período de rendimento, os depósitos de poupança serão remunerados como remuneração básica, por taxa correspondente à acumulação das TRD, no período transcorrido entre o dia do último crédito de rendimento, inclusive” (artigo 12, inciso I).
A necessidade de se interpretar, conjuntamente, vários artigos de leis diferentes apenas reforça a lacuna que há sobre a hipótese específica tratada neste artigo: o que fazer quando o dinheiro apreendido de investigado é, posteriormente, devolvido ao proprietário em razão do arquivamento da investigação ou de sua absolvição em processo criminal.
Correção de valor precisa recompor poder de compra
Assim, justamente por se tratar de uma lacuna específica é que a omissão precisa ser, licença pela redundância, especificamente regulamentada pelo legislador. Até porque, de uma década para cá, são recorrentes as investigações criminais, algumas delas de conhecimento público, em que os investigados têm seu patrimônio apreendido ou bloqueado, seja o valor em espécie ou escriturado no sistema bancário.
E não são raras as investigações que, ao final de todo trabalho policial, são arquivadas a pedido do Ministério Público e nas ações penais, os réus são absolvidos pelo juiz. Logo, é justo que o valor apreendido, ao longo de anos, seja corrigido por um índice que, nem de longe, recompõe o poder de compra daquele montante à época da apreensão? Aliás, não haveria eventual enriquecimento sem causa por parte da instituição financeira que manteve esse valor depositado durante a apreensão, ainda que a instituição estivesse apenas cumprindo prévia ordem judicial?

No mais, à falta de lei específica que disponha sobre o tema, não há nenhuma vedação legal para que os tribunais interpretem as normas em vigência em conformidade com o direito de propriedade previsto na Constituição, podendo ser entendido, por exemplo, que na hipótese de restituição do dinheiro apreendido, deverão incidir os juros legais (atualmente a taxa Selic), nos termos do artigo 406 do Código Civil.
Seria uma solução mais adequada e proporcional. Infelizmente, essa interpretação que mais prestigia o direito de propriedade não tem encontrado aderência nos tribunais (vide Recurso Especial nº 1.993.327/RS, ministro relator João Otávio de Noronha, e Mandado de Segurança n.º 5023933-28.2019.4.03.0000, TRF – 3ª Região, desembargador Relator José Lunardelli).
Ao Estado é conferida a prerrogativa de investigar as suspeitas de práticas criminosas, podendo dispor dos meios e procedimentos legais e necessários ao desenvolvimento das investigações. Aos cidadãos, incluindo aqui, claro, os investigados em casos criminais, são asseguradas proteções contra abusos do Estado, devendo os danos comprovados serem objeto de indenização. Aniquilar o poder de compra de uma pessoa é um verdadeiro golpe no direito de propriedade.
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