De quem é o direito do autista?
25 de agosto de 2024, 9h23
Em 2015, o Brasil deu um importante passo na promoção do direito da pessoa autista ao sancionar a Lei 13.146, mais conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência. Amplamente inspirada pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, adotada em Nova York, em 2007, esta legislação estabeleceu um marco legal para garantir a inclusão social, a acessibilidade e a plena cidadania das pessoas com deficiência no País, alinhando o ordenamento jurídico brasileiro aos compromissos internacionais de proteção e promoção dos direitos humanos.

O aspecto mais impactante foi a mudança no regime de incapacidade civil. Rompendo com as tradições normativas das Ordenações Filipinas e dos Códigos Civis de 1916 e 2002, a nova legislação deixou de categorizar as pessoas com “transtornos mentais”, nas suas diversas nomenclaturas, como incapazes, com o objetivo de resguardar seus direitos, sobretudo a autonomia individual, que era tolhida pelo sistema antecedente.
Embora a curatela perpétua tenha sido abolida em 2015, ainda persistem os resquícios de um regime jurídico e social que relegava as pessoas com deficiência à condição de eternas crianças, perpetuando estigmas e limitando sua autonomia e capacidade de decisão.
Os “anjos azuis”, uma representação idealizada, são frequentemente mencionados em legislações sobre o autismo no Brasil. Essa projeção romântica, que evoca a inocência e as características supostamente típicas de autistas na infância, ofusca a complexa realidade de muitos indivíduos: os autistas, tal como qualquer pessoa, crescem e amadurecem. Ao atingirem a fase adulta, esses indivíduos enfrentam uma miríade de desafios frequentemente ignorados, em virtude da imagem simplificada perpetuada por aqueles que se autodenominam seus defensores.
Dados divulgados pelo IBGE indicam que o desemprego entre autistas adultos ultrapassa 80%, um percentual alarmante quando comparado à média nacional de desemprego, que gira em torno de 8%. A eficácia na fiscalização da Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência (Lei nº 8.213/91) revela-se insuficiente, levando a situações em que as empresas preferem pagar multas a modificar seus processos de recrutamento.
Políticas insustentáveis
A persistência de políticas empresariais insustentáveis contribui para a exclusão de indivíduos autistas do mercado de trabalho, especialmente quando exigem a presença física no ambiente corporativo, sem considerar as dificuldades impostas por fatores como iluminação intensa, paletas de cores estimulantes, códigos de vestimenta confusos e métodos de seleção baseados em entrevistas presenciais constrangedoras, que apenas agravam essa exclusão.

No âmbito mercadológico, o autista é mina de ouro à sua revelia. Há uma proliferação de cursos fáceis de seguir, soluções supostamente milagrosas e remédios duvidosos. O aparato judiciário enfrenta uma carga excessiva de pedidos por tratamentos terapêuticos intensivos, chegando ao ponto em que decisões preliminares estipulam frequentemente 40 horas ou mais de terapia por semana.
Geralmente, a única razão oficial para tais medidas é a primazia do ato médico, avançando o escopo clínico e invadindo a área da psicologia, em um evidente excesso de competência. A Súmula 102 do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), frequentemente evocada em casos de cobertura de determinados tratamentos, estabelece que, “havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS”.
Nessas circunstâncias, a pessoa que é objeto da intervenção muitas vezes não tem voz no processo; sua autonomia é posta em dúvida, seu ponto de vista ignorado, e somente os desejos dos pais e dos proprietários das clínicas, presumivelmente bem-intencionados, são considerados nos processos.
Assim, quase uma década após a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, ainda enfrentamos um longo percurso para garantir que a existência autista seja não apenas observada, mas verdadeiramente escutada. A realidade atual revela indivíduos cujas vozes são ofuscadas pela idealização da infância, vista como um estado imaculado a ser protegido sob o manto de uma parentalidade onipresente. Essa visão distorcida permeia as interações dos autistas em múltiplos contextos, perpetuando a exclusão e a falta de reconhecimento de sua plena autonomia.
Com frequência, as figuras parentais são substituídas por parceiros, educadores, magistrados, legisladores, psicólogos e por todos aqueles que, julgando possuir boas intenções, acreditam estar aptos a decidir o que é melhor para a pessoa autista.
A Lei Brasileira de Inclusão aboliu a concepção de que a deficiência enseja, de forma automática, a incapacidade civil, excetuando-se apenas as situações raras e devidamente justificadas. Este marco legal consagra o princípio, já amplamente reconhecido, de que as pessoas com deficiência detêm plena autonomia e capacidade para manifestar suas vontades sem a interferência de terceiros. No entanto, tal dispositivo legal, embora fundamentado no modelo social da deficiência e pautado pelos direitos humanos, revela uma insuficiente capilaridade normativa. Essa limitação compromete sua eficácia na permeação e influência em diversos estratos da sociedade civil e na sensibilização do Poder Judiciário, restringindo o alcance de seus objetivos e a plena promoção da justiça.
Compete ao operador do direito munir-se das informações necessárias para garantir a efetivação dos predicados constitucionais e dos direitos humanos, que constituem garantias fundamentais das pessoas autistas. Conforme estabelecido na Constituição, os direitos humanos colocam o indivíduo no centro, reconhecendo a dignidade inerente a cada ser humano como fundamento primordial.
Esses direitos, universais e indivisíveis, são inalienáveis e se sobrepõem a qualquer forma de discriminação ou tratamento desigual, reafirmando a centralidade da pessoa no ordenamento jurídico. Tais direitos são de caráter personalíssimo e não podem ser delegados ou assumidos por outrem com base em vínculos parentais ou em autoridade profissional, refletindo a necessidade de proteção contínua e intransigente da autonomia individual e da dignidade humana, elementos que constituem o alicerce do estado democrático de direito.
O indivíduo autista é o protagonista dessa dinâmica, detendo direitos inalienáveis por força de sua humanidade. É essencial que a pessoa autista possua o direito de expressar suas necessidades, de ser respeitada em seu bem-estar físico e mental, na maneira como escolhe utilizar seu tempo e nas decisões que influenciam sua vida. Como protagonistas de suas próprias histórias, os instantes de suas vidas têm relevância exclusiva para eles, sendo imperativo que o direito assegure sua plena autonomia, em vez de perpetuar um estado de dependência.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!