Cultura de precedentes e o STJ, de André Macedo de Oliveira
25 de agosto de 2024, 8h00
O tema dos precedentes é central no Direito brasileiro contemporâneo. Vivemos uma revolução no sistema das fontes. O artigo 926 do Código de Processo Civil parece o ponto central nessa guinada coperniciana. Há muita bibliografia de qualidade nesses temas.
O ponto de partida é uma intervenção do ministro Teori Zavascky, que em palestra proferida em 2010 insistia que a crise do Judiciário deveria ser enfrentada menos com leis processuais e mais, muito mais, com uma mudança radical na cultura jurídica.
O saudoso ministro afirmava, segundo leio em André, “que o respeito dos procedentes tem que partir daqueles que criam os precedentes”. Nessa afirmação, o ponto central do livro de André: afinal, temos ou não temos um sistema de precedentes no Brasil?
O precedente, na cultura jurídica norte-americana, por exemplo, é um instituto espontâneo, que reflete um modo de se compreender a estabilização das relações. Entre nós, essa espontaneidade é inexistente. Cumprimos os precedentes porque somos obrigados a fazê-lo. Os idolatramos quando sufragam nossas teses. Os repudiamos quando nos contrariam.
O art. 926 do CPC é uma ordem, e não uma concordância histórica em torno de um arranjo institucional inquestionável. Problemas e incompreensões relativos ao tema dos precedentes, penso eu, também decorrem dessa tensão.
André, de algum modo, sistematiza o modelo atual, define sua construção histórica e fixa suas linhas gerais de funcionamento. Ao mesmo tempo em que é um livro de tese, é também um manual.
A crise do processo civil foi a justificativa para as mudanças ocorridas ainda no bojo do CPC de 1939. O Código de Alfredo Buzaid (1973) mostrava-se como fórmula natural de enfrentamento da crise, que nada mais era do que o reflexo das transformações que decorreram da migração do campo para a cidade.
Ao longo dos anos de 1990 o país percebe a explosão de uma litigância de massa. O Estado é o campeão dessas causas. A expansão da Justiça Federal (substancialmente concebida para a litigância contra o Estado) é um exemplo desse estado de coisas. A administração direta, bem como suas autarquias e fundações, são os mais frequentes atores nesse palco privilegiado. O INSS é o exemplo mais emblemático de litigância recorrente.
Para André, o processo civil precisava de uma racionalização. De outro modo, não estaria apto para resolver problemas muito complexos que decorriam da multiplicação de direitos difusos e coletivos. A Emenda Constitucional 45, percebe-se no livro de André, é um marco divisor de águas.
Fixadas as bases da narrativa, André equaciona, em espécie, os instrumentos da racionalização processual. Nesse contexto, explica ao leitor, com riqueza de pormenor (sobremodo histórico) a natureza, o escopo e a extensão desses instrumentos.
Explica, então, o funcionamento da repercussão geral, da súmula vinculante, da súmula impeditiva de recurso, das Turmas Nacionais de Uniformização dos Juizados Especiais, os recursos repetitivos, o incidente de resolução de demandas repetitivas e o tema complicadíssimo (na prática) do filtro de relevância. A análise da criação das súmulas sugere uma homenagem de André ao ministro Vítor Nunes Leal, para quem, segundo o autor, a súmula era uma ajuda para a falta de memória…
No caso dos repetitivos, André alcança o que reputa de “expressão máxima” da autoridade do STJ. Nesse sentido, avalia uma cultura interna da Corte que já não é mais tão incipiente.
Para André, o Judiciário é um prestador de serviços públicos. Essa percepção explica com coragem a impressão que todo cidadão deva ter da magistratura e de todos os protagonistas do sistema da Justiça. Incluindo-se na lista nós próprios, advogados.
O livro pretende (e consegue muito satisfatoriamente) uma amarra do tema dos precedentes com a natureza própria do STJ. Do ponto de vista historiográfico, parece-me, a trajetória histórica do STJ aparenta ser o ponto mais aliciante do livro.
André retroage a uma mesa redonda realizada na Fundação Getulio Vargas, ocorrida em meados dos anos de 1960. Levy Carneiro (nome central na criação da Ordem dos Advogados do Brasil), Frederico Marques, Miguel Seabra Fagundes, Gilberto de Ulhoa Canto, Caio Mário da Silva Pereira, Caio Tácito, Miguel Reale e Themístocles Brandão Cavalcanti estavam entre os debatedores. José Afonso em intervenções posteriores também defendia, segundo André, um tribunal que solucionasse questões de legislação federal, e não necessariamente de ordem constitucional.
Passando pelo Projeto Afonso Arinos e pelos debates na Constituinte, André percorre um longo caminho até construção do artigo 27 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que é a certidão de nascimento do STJ. Bem entendido, o STJ não substitui o Tribunal Federal de Recursos, como pensam alguns, e como outros pretendem nos impor como postulado indiscutível. O TFR se transformou em cinco Tribunais Regionais Federais, aos quais se acrescentou um sexto, com sede em Belo Horizonte.
A lição que tiro desse livro tão bem escrito é que o criador do precedente é quem mais precisa prestar deferência para com o precedente que gerou. Muita informação. Um livro preciso. A clareza é a gentileza do escritor; nesse quesito, o livro de André é claríssimo, o que revela o quão gentil ele é para com seus leitores.
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