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'Ninho de mafagafos' dos tipos penais: consolidação normativa urgente

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23 de agosto de 2024, 10h19

Talvez você não saiba que o artigo 1º da Lei 7641/87 proíbe “a pesca, ou qualquer forma de molestamento intencional, de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras”, punindo com a pena de dois a cinco anos de reclusão e multa (artigo 2º) (confira aqui). Aos que não se recordam das aulas de biologia, dispensando a procura no Google, classificam-se como pertencentes à entidade/classe “cetáceos”: baleias, golfinhos, botos, orcas, cachalotes e toninhas (animais aquáticos pulmonares).

Spacca

O tipo penal foi criado em face de evento específico, no qual uma baleia encalhada foi “molestada” por um transeunte. Embora a dignidade do bem jurídico, diante da existência de regras penais protetivas ao meio ambiente, é injustificável a existência de lei específica aos “cetáceos”. Mas se você apostou que a lei nunca foi aplicada, errou.

No julgamento dos embargos infringentes na Apelação Criminal 5035703-95.2014.4.04.7200, o Tribunal Regional da 4ª Região, analisou a conduta do acusado que “teria, no dia 15/09/2011, dentro da Unidade de Conservação Federal da APA da Baleia Franca, na localidade da Guarda do Embaú, em Palhoça, molestado, de forma intencional, dois exemplares de baleia franca, animal que integra a Lista de Espécies Ameaçadas de Extinção no Brasil”.

Consta dos autos que o acusado “utilizando capacete com uma câmera filmadora, nadou, com auxílio de uma prancha de surfe, junto a duas baleias, tendo os animais permanecido nas proximidades do local em que ele se encontrava, por alguns minutos”. Após investigação, oferecimento de denúncia e instrução, o acusado foi absolvido em primeiro grau, seguido de apelação por parte do Ministério Público, com o provimento do recurso, por maioria, condenando-se o agente.

Nos embargos infringentes, o acusado foi absolvido pelo voto de desempate do presidente da Seção (4 a 3). Você pode assistir o vídeo e ler os votos aqui. Então, agora você já adquiriu conhecimentos sobre o crime de molestar cetáceos, tipo penal que talvez fosse desconhecido. Mas…

“Ninguém pode alegar o desconhecimento da lei.” Quantos outros tipos penais existem e não sabemos? Estima-se que existam cerca de 1.700 tipos penais em vigor no Brasil. Em consequência, salvo se você puder afirmar que conhece todos, por definição, conviveremos com o desconhecimento da lei. Embora o artigo 3º, da Lindb declare que “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece” e o art. 21 do Código Penal que o “desconhecimento da lei é inescusável”, o pleno domínio das normas penais é da ordem do imaginário, até porque não há repositório completo de todos os tipos penais.

Segue-se que a ficção do pleno conhecimento da lei é necessária para fazer funcionar o aparato normativo, porque seria inviável aceitar o descumprimento da lei por desconhecimento, ainda que ninguém conheça toda a legislação (noutras colunas falarei do “erro de tipo” e do “erro de proibição”, com funções específicas).

Além das normas penais, devemos acrescentar, dentre outras, as normas constitucionais, administrativas, processuais, ampliando o conjunto das normas desconhecidas, especialmente dos tipos penais em branco, com aponta Chiavelli Facenda Falavigno e Francisco Yukio Hayashi (aqui). Não bastasse o texto normativo, precisamos dominar os decretos, protocolos, resoluções, portarias, dentre outros tipos de normas complementares que se alteram freneticamente. Depois de conhecer ainda precisamos interpretar, espaço em que a ambiguidade e as controvérsias são imensas, contraditórias e inconsistentes. Inviável.

Desconhecer o material normativo não exclui a responsabilidade penal, nem a dos agentes penais, isto é, você será responsável civil, administrativa e penalmente por não dominar as normas técnicas inerentes à função que decidiu, voluntariamente, exercer. Associa-se à noção de “accountability” e de compliance processual penal. Precisaremos organizar minimamente a estrutura do conhecimento sobre o domínio do processo penal para o fim de melhorarmos o desempenho e evitarmos a responsabilização, embora o próprio estado brasileiro não tenha um banco de dados consolidado sequer dos tipos penais.

Solução já existe, mas Poderes dão de ombros

A Lei Complementar 95, de 26 de fevereiro de 1998, “Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona”. O texto já previa, há mais de 26 anos, em seu artigo 13, com a redação dada pela Lei Complementar 107, de 26/04/2001:

“DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS E OUTROS ATOS NORMATIVOS
Seção I
Da Consolidação das Leis
Art. 13. As leis federais serão reunidas em codificações e consolidações, integradas por volumes contendo matérias conexas ou afins, constituindo em seu todo a Consolidação da Legislação Federal.
1oA consolidação consistirá na integração de todas as leis pertinentes a determinada matéria num único diploma legal, revogando-se formalmente as leis incorporadas à consolidação, sem modificação do alcance nem interrupção da força normativa dos dispositivos consolidados”. (confira aqui)

Recentemente, o governo federal editou o Decreto 12202, de 22 de abril de 2024 (aqui), orientado a estabelecer normas para a elaboração, redação, alteração e consolidação de atos normativos no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, além de definir o fluxo de encaminhamento e análise de atos normativos de competência do presidente da República.

Dentre as diretrizes, o decreto aborda a consolidação da legislação federal, incluindo a definição de consolidação, as alterações admitidas e a competência para revisar e consolidar atos normativos inferiores a decreto, conforme o artigo 62: “Os atos normativos serão reunidos em codificações e consolidações, com as matérias conexas ou afins, de maneira a constituir a Consolidação da Legislação Federal”.

Se o princípio da reserva legal (estrita legalidade) impõe a descrição clara, precisa e verificável da conduta penal proibida, então, a dispersão de tipos penais em múltiplas leis impede sequer o conhecimento sobre a existência dos tipos penais (opacidade, diria Carlos Cárcova).

Se você viajar para Portugal, por exemplo, poderá consultar o Código Penal que consolidou a imensa maioria dos tipos penais em documento único (confira aqui a utilidade). Mas se um cidadão português vier para o Brasil, nada podemos oferecer, porque nem mesmo nós sabemos o conjunto de tipos penais em vigor no Brasil que, ao fim e ao cabo, é um “ninho de mafagafos”.

“Ninho de Mafagafos” representa na linguagem cotidiana uma grande confusão, situação ou contexto de difícil entendimento e/ou compreensão que serve de metáfora do que se passa no Direito e, em especial, no domínio dos tipos penais. Se você, todavia, acredita conhecer todos os tipos penais em vigor no Brasil, então, como cantavam os Mamonas Assassinas, é um “bom desmafagador legal”, ainda que ingênuo, iludido ou com excesso de confiança.

Logo, a consolidação é o primeiro passo para desfazer o atual “ninho de mafagafos” dos tipos penais brasileiros, embora não seja tarefa fácil, nem realizável sem o apoio de técnicos qualificados e alocados exclusivamente para essa finalidade (os instrumentos normativos estão disponíveis, além da experiência exitosa de outros países: não precisamos “reinventar a roda”, nem colocar “jabutis” na consolidação: consolidar é articular organicamente o que “já existe”, conforme as diretrizes da Lei Complementar 95). Enquanto isso, todo cuidado é pouco porque simplesmente não sabemos todas as condutas proibidas, ainda que mantenhamos a pose, afinal, “ninguém pode alegar desconhecimento da lei”.

Até porque, fale rapidamente:

Um ninho de mafagafos
Tinha sete mafagafinho
Quem desmafagafar o ninho de mafagafos
Bom desmafagafador será.

Todo cuidado é pouco para viver num país que não sabe os tipos penais em vigor. Boa sorte.

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