Opinião

STF extrapolou sua função ao decidir sobre porte de maconha

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  • é doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra (Portugal) mestre em Direito Constitucional pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) e membro da International Association of Constitutional Law (IACL) e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC).

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22 de agosto de 2024, 11h22

A Constituição de 1988 é inovadora em diversos aspectos jurídicos, dentre os quais se destaca a de atribuir ao Supremo Tribunal Federal a função precípua de “guarda da Constituição” (artigo 102, caput, CF/1988), ou seja, conferiu à Corte Suprema o papel de proteger os valores constantes na Carta Magna, bem como zelar pela sua fiel observância pelos demais órgãos e instituições.

Paulo Pinto/Agência Brasil

Todavia, a atribuição de “guarda da Constituição” não é ilimitada, visto que o parâmetro é o próprio texto constitucional, quer dizer, trata-se de um dever judicante subordinado aos postulados constantes na própria Lei Fundamental, não podendo o intérprete exceder ou afastar-se das balizas constitucionais. Nesse caso, os julgadores limitam-se ao que a Carta Magna dispõe sobre o tema jurídico analisado, atentando-se ao espírito da norma e ao bem jurídico salvaguardado.

Além disso, a atuação do STF na “guarda da Constituição” deve observar o princípio da separação de poderes ou da tripartição de funções estatais, conforme estabelece o artigo 2º da Carta Magna, haja vista que os poderes são independentes, mas também harmônicos entre si. Assente-se que a “independência” resulta da autonomia decisória de cada esfera de poder relativamente naquilo que seja de sua competência — o que abrange a liberdade de conformação realizada pelo Poder Legislativo na elaboração das leis (atividade legislativa), bem como na formulação de política pública promovida pelo Poder Executivo (atividade executiva).

Por sua vez, o Judiciário exerce o poder de jurisdição constitucional, designadamente a capacidade de julgar se o ato emanado de autoridade pública é compatível com a Carta Magna, mas tal função deve ser exercida com parcimônia, uma vez que cabe-lhe respeitar a liberdade legislativa inerente dos Poderes Políticos, além do plano governamental traçado pelo Chefe do Poder Executivo.

Extrapolação

Com efeito, em 26 de junho de 2024, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659/SP, o Supremo desatendeu aos pressupostos básicos supramencionados, extrapolando a sua função original de “guarda da Constituição”. Isso por vários motivos. Primeiro: o texto constitucional é categórico ao declarar que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”, nos termos do artigo 5º, inciso XLIII, CF/1988.

Conforme se verifica, a Constituição repugna as drogas, inclusive equipara o tráfico ilícito de substâncias com o delito de tortura, o terrorismo e os crimes hediondos no tocante à insuscetibilidade de o agente ser beneficiado com a graça ou anistia. Nesse caso, a Constituição impõe um mandado de criminalização ao Poder Legislativo, a quem compete dispor sobre a matéria, ou seja, cabe ao órgão legiferante utilizar-se da sua liberdade de conformação para disciplinar a temática, inclusive tipificar a conduta e a respectiva sanção.

Spacca

Além disso, também no artigo 5º, inciso LI, da CF de 1988, o texto constitucional reprime as drogas na medida em que declara que “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”. Nesse caso, ante a reprovabilidade da conduta, a Carta Magna admite a extradição de brasileiro naturalizado caso esteja envolvido com o tráfico ilícito de drogas, nos termos dispostos pela lei. Aqui, novamente a Constituição delegou ao Congresso Nacional disciplinar a matéria através da lei ordinária.

No capítulo alusivo à família, à criança, ao adolescente, ao jovem e ao idoso, a Constituição da República declara que o Estado deve promover programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, inclusive colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Dentre as medidas, o direito à proteção especial abrange os “programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins” (artigo 227, § 3º, inciso VII, da CF/1988). Como se vê, a Constituição determina a obrigatoriedade de as crianças, os adolescentes e os jovens serem protegidos contra o uso de drogas.

Ainda no tocante aos direitos e garantias fundamentais, a Constituição de 1988 consagrou o princípio da legalidade, dispondo que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, conforme redação expressa do artigo 5º, inciso XXXIX, da CF/1988. Desse modo, a Carta Magna delegou ao Poder Legislativo a caracterização da conduta considerado como crime, ou seja, a definição da ação típica, antijurídica e culpável. Assim, compete ao Congresso — por meio da Câmara dos Deputados e do Senado — a criação de figuras típicas e a previsão das respectivas penas, sendo uma atividade de natureza política que reproduz os valores sociais da comunidade brasileira.

Nesse sentido, a Lei Federal nº 11.343 de 23 de agosto de 2006 trata do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, além de definir os delitos correlatos. Ainda de acordo com a referida lei, “denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998” (artigo 66, Lei nº 11.343/2006).

Desse modo, cabe a órgão do Ministério da Saúde, nomeadamente a Anvisa (Agência Nacional da Vigilância Sanitária), a conceituação das substâncias consideradas como drogas para fins penais. Isso porque nos tipos penais em branco — como ocorre nos delitos previstos na Lei nº 11.343/2006 — a complementação normativa é realizada por órgãos técnicos, e no tocante à definição das drogas, a atividade é feita pela Anvisa, que é órgão do Poder Executivo.

Ou seja, o disciplinamento da matéria relativa à definição do que seja crime e a previsão da respectiva pena é de competência do Poder Legislativo, que se materializa na elaboração de lei e complementarmente pelo Poder Executivo no detalhamento de normas técnicas. Assim, não cabe ao Poder Judiciário imiscuir-se nessa matéria, visto que lhe falece competência para tanto.

Planta proibida

Não obstante a isso, no julgamento do RE nº 635.659/SP, o Supremo fixou a tese de que “não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa” [1]. A um só tempo, o Pretório Excelso adentrou o mérito da conduta de utilizar a substância cannabis sativa, além de não a considerar como infração penal, a despeito de a própria Anvisa listá-la como planta proibida pela capacidade de originar substância entorpecente e/ou psicotrópica (Resolução da Diretoria Colegiada Anvisa nº 877, de 28 de maio de 2024, lista E, item “1”).

Dada a sua natureza, a respectiva portaria proíbe a importação, exportação, o comércio, a manipulação e o uso da respectiva substância [2]. Com efeito, ao julgar a demanda, o STF findou por substituir a competência técnica da Anvisa, porquanto decidiu sobre a inocorrência de infração penal no caso de consumo da cannabis sativa. Diante disso, é de se indagar: em que se baseou a decisão do Supremo Tribunal Federal para afastar a delito ante o agente levar consigo tal substância para consumo pessoal? A referida decisão foi baseada em estudo feito por perícia técnica ou no entendimento pessoal dos próprios ministros? Qual foi o critério adotado para descriminalizar o consumo da cannabis sativa? E o uso de outras substâncias entorpecentes, também poderá ser descriminalizado no futuro pelo STF? Como se vê, existem várias indagações.

Ademais, conforme descrito na ementa da tese no caso RE 635.659/SP, a decisão do STF fundou-se no confronto do porte de drogas para consumo pessoal em face do princípio constitucional da intimidade e da vida privada (artigo 5º, inciso X, da CF/1988). Entretanto, o direito à intimidade e a vida privada não pode ser manejado como pretexto para a prática de toda e qualquer conduta, sob pena dessa garantia constitucional transmudar-se em salvo conduto para o cometimento de crimes — o que logicamente não é a finalidade da previsão de tão nobre direito pela Carta Magna.

Ressalta-se ainda que nenhum direito é absoluto, e a própria Constituição de 1988 autoriza o ingresso de autoridade pública na casa do morador, mesmo sem o seu consentimento, na hipótese excepcional de flagrante delito, nos termos do artigo 5º, inciso XI, da CF/1988. Ou seja, a intimidade e a vida privada, mesmo no interior de compartimento habitado, não transforma o respectivo ambiente em local propício para a prática de quaisquer condutas, tampouco impede a atuação estatal no caso de flagrante delito.

Igualmente, a autodeterminação não é um direito ilimitado, tampouco autoriza a aquisição, a guarda, a posse ou o transporte de drogas para consumo pessoal, já que tal conduta resta vedada pelo artigo 28 da Lei nº 11.343/2006. Como qualquer direito, a autodeterminação afigura-se legítima apenas se exercida dentro da moldura normativa, isto é, desde que respeitadas as normas legais, a exemplo da legitimidade da obrigatoriedade do uso de cinto de segurança pelo motorista de veículo automotor — que tem por objetivo principal proteger a vida do próprio condutor (RE 76.447 e REsp 1.335.428/PR).

Também há que se mencionar a legitimidade de o Estado determinar que os cidadãos se submetam compulsoriamente à vacinação contra a Covid-19, sendo um limite válido ao direito autodeterminação, conforme decidiu o STF (ADI 6.586 e ARE 1.267.879). Assim, o consumo de drogas não constitui um direito ou uma escolha do próprio indivíduo, ao contrário, a conduta resta vedada, conforme dispõe expressamente a Lei nº 11.343/2006.

Conduta tipificada e efeitos do consumo

Vale dizer, a posse e o uso de drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal não é uma liberdade individual, não recaindo o fato sobre a livre escolha do agente. Isso porque tal conduta é tipificada pela legislação extravagante, tratando-se de uma proibição legal a qual todos estão obrigados a respeitar, nos termos do artigo 5º, inciso II, da Constituição de 1988, que dispõe: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Portanto, se houver lei proibindo algo, todos são juridicamente obrigados a deixar de proceder à referida conduta.

Além disso, a utilização de entorpecente não constitui um ato lesivo que se restringe à esfera pessoal do usuário, pois os efeitos causados pelo uso da substância espraiam-se sobre as pessoas que estão à sua volta, especialmente os que convivem com ele, sejam nas suas relações familiares, laborais ou sociais. Os efeitos deletérios pelo uso de drogas são diluídos na sociedade, que sofre pelas escolhas do usuário, a exemplo dos crimes contra o patrimônio cometidos com o intuito de o agente auferir dinheiro para consumir mais drogas, notadamente o furto de telefones celulares, roubo à mão armada, latrocínio [3] etc. Há que se ressaltar ainda a relação entre o consumo de drogas e o aumento do risco da prática de violência contra outrem, além da propensão a incorrer em acidentes rodoviários, conforme dados da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares [4]. Ou seja, o consumo de drogas constitui fator de risco à sociedade, não se limitando à esfera pessoal do indivíduo que faz uso da respectiva substância.

Mencione-se também que o tratamento contra a dependência do uso de drogas onera as receitas do Estado, isto é, a escolha individual de utilizar substância entorpecente exige que os entes federados destinem recursos dos seus orçamentos, além da criação de uma rede de serviços de saúde pública – que deverão operacionalizar-se para oferecer adequado tratamento médico e psicológico –, de modo que o uso de drogas não é um ato lesivo restrito à esfera pessoal dos usuários, como afirmado na decisão do STF.

Conclusão

Desse modo, o STF não pode ingerir na definição de qual substância deva ser considerada como droga – se cannabis sativa ou outra — cabendo ao órgão técnico do governo proceder a tal análise; tampouco descriminalizar conduta que foi expressamente proibida por deliberação do Poder Legislativo através de lei federal.

Por fim, cabe ao Supremo voltar-se à sua função originária de “guarda da Constituição” (protetor dos preceitos ali estampados), ao invés de assumir o papel de “redator da Carta Magna” (reescrevê-la através da sua interpretação), pois esta atividade é exclusiva do poder constituinte, isto é, dos representantes legitimamente eleitos pelo povo. Além disso, cabe à Corte Suprema maior deferência aos atos legislativos elaborados pelo Congresso, designadamente ao disposto na Lei nº 11.343/2006 — pois é fruto da liberdade de conformação do legislador —, bem como às normas técnicas da Anvisa, em atenção ao princípio da separação e da harmonia entre os poderes.

 


[1] STF. Supremo Tribunal Federal. RE nº 635.659/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes. Julgamento finalizado em 26-06-2024. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4034145&numeroProcesso=635659&classeProcesso=RE&numeroTema=506

[2] ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada Anvisa nº 877, de 28 de maio de 2024. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/medicamentos/controlados/arquivos/RDC877.pdf

[3]  TORRES, Marco Aurélio Ferreira; LOPES, Mariana Ferreira; FIORINI, Bernado Henrique Maciel. O uso de drogas como fator determinante para os crimes de furto e roubo. Revista Libertas Direito. Belo Horizonte, v. 4. N. 1, jan/jul. 2023, p. 23-24.

[4] BRASIL. Ministério da Educação. Dependência química é doença e tem tratamento. Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. Disponível em: https://www.gov.br/ebserh/pt-br/comunicacao/noticias/dependencia-quimica-e-doenca-e-tem-tratamento

Autores

  • é doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra (Portugal), mestre em Direito Constitucional pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) e em Política Criminal pela Universidad de Salamanca (Espanha), membro da International Association of Constitutional Law (IACL) e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC) e advogado.

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