Os 18 anos da Lei Maria da Penha: um ponto de partida
21 de agosto de 2024, 9h19
Este ano, a Lei Maria da Penha atingiu sua maioridade. Em 7 de agosto de 2006, há exatos 18 anos, foi sancionada a Lei nº. 11.343/06, inspirada na Convenção de Belém do Pará, nas recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos — feitas ao Brasil ao responsabilizar o Estado brasileiro por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres —, nas recomendações do Comitê da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, da ONU, em legislações internacionais, dentre outras inspirações.
É certo que a elaboração da Lei Maria da Penha decorre de muitos anos de lutas sociais e do movimento de mulheres no Brasil, sendo considerada, atualmente, uma das legislações mais avançadas no mundo no que diz respeito à prevenção e repressão da violência doméstica e familiar contra as mulheres.
Representou, em 2006, uma verdadeira mudança de paradigma, ao ser implementada em um país dominado por uma cultura machista com raízes patriarcais no qual, de um lado, se ouvia que “quem ama não mata” e do outro ainda se bradava que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
Foi chamada de “sexista” pelos resistentes à quebra da tradição que há séculos sufocava e aprisionava mulheres vítimas de violência aos seus algozes e aos seus lares violentos. Houve quem clamou: “mas e a Lei João da Penha?” Ainda hoje, há.
Quem ousou apontar qualquer afronta ao princípio da isonomia pela promulgação da Lei Maria da Penha precisou encarar a realidade: a Lei 11.340/06 está fundamentada na própria Constituição e em diplomas internacionais e busca, justamente, igualar o desigual.
É uma lei que reconhece a existência de uma desigualdade sociocultural, histórica, e se legitima no fato de que a violência doméstica e familiar que atinge — e mata! — as mulheres brasileiras é uma forma de violência específica, com particularidades e especificidades que a distinguem de qualquer outro tipo de violência, como aquela sofrida pelos homens. Urgia a necessidade, portanto, da criação de um instrumento legal também específico para sua prevenção e repressão.
A Lei Maria da Penha veio para solidificar o fato de que a violência doméstica e familiar representa um tipo de violência que não é ocasional e ocorre, geralmente, em espaços privados, no ambiente doméstico, sendo praticada por pessoa conhecida da vítima, de seu relacionamento ou círculo familiar.
Desmistificou, ainda, a ideia de que violência é sinônimo de violência física. Nesse sentido, foi essencial para que a sociedade brasileira passasse a enxergar as demais formas de violência — psicológica, moral, sexual e patrimonial — como igualmente graves e, a partir daí, inspirou mudanças legislativas voltadas à criminalização de condutas que violam não apenas a integridade física, mas outros bens jurídicos igualmente relevantes.
Sistema multidisciplinar
A Lei 11.340/06 estabeleceu um sistema multidisciplinar integrado de proteção às mulheres, deixando claro que a violência contra as mulheres representa uma forma de violação de direitos humanos — foi preciso reafirmar o óbvio.
Criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher e implementou, como seu principal instrumento de proteção, as medidas protetivas de urgência, que buscam garantir os direitos fundamentais da vítima e refrear a violência no âmbito das relações domésticas e familiares.
De lá para cá, ao passo em que avançamos no entendimento acerca deste fenômeno complexo que é a violência baseada no gênero, a Lei Maria da Penha foi sendo alterada e aprimorada.
Mas por que, então, ouvimos — no aniversário de 18 anos da Lei — que “não há motivos para comemorar”?
Segundo as estatísticas oficiais da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), serviço atualmente prestado pela Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) — que além de ser um canal de encaminhamento e monitoramento de denúncias, também promove a disseminação de informações sobre direitos das mulheres —, foram recebidas, ao longo de 2023, um total de 568,6 mil ligações, o que representa uma média de 1.558 chamadas diárias. Ainda, o número de denúncias aumentou 23%, passando de 87,7 mil, em 2022, para 114,6 mil, em 2023. [1]
No mesmo sentido, estão os dados divulgados no mês passado no 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em comparação com o ano anterior, 2022, houve um significativo aumento das taxas de registro — calculadas a partir dos dados extraídos dos boletins de ocorrência — de diferentes crimes praticados contra mulheres fora e dentro do contexto doméstico e familiar. [2]
À título de exemplo, houve um crescimento de 9,8% das agressões praticadas em contexto de violência doméstica em relação à 2022, totalizando 258.941 vítimas mulheres. Os registros de ameaças cresceram 16,5%, de violência psicológica 33,8% e de perseguição 34,5%.
O crime de estupro, por sua vez, incluindo o estupro de vulnerável, cresceu 5,3% em 2023, chegando ao número de 72.454 mulheres e meninas violentadas.
Os dados nos trazem números alarmantes, mas, mais do que isso, a premência de enxergarmos estes números para além de estatísticas de direitos humanos violados. Como corpos. Como histórias. Como vidas.
Ser mulher no Brasil é ser uma vítima de violência em potencial. Todas as mulheres estão sujeitas. E o principal obstáculo que devemos enfrentar quanto ao problema da violência baseada no gênero no país – uma verdadeira endemia! — é sociocultural.
É preciso lutar, verdadeiramente, contra esta construção social de fundo cultural que naturaliza e legitima a violência a partir de crenças e comportamentos misóginos e sexistas. Estes comportamentos são inúmeros: vão desde a culpabilização da vítima, da objetificação da mulher, da descrença na palavra da vítima, aos vieses inconscientes que permeiam até mesmo o sistema de justiça criminal e seus atores.
A necessária mudança de cultura — essencial para que avancemos na proteção das meninas e mulheres brasileiras — esbarra nas tão aprofundadas raízes misóginas e patriarcais nas quais se estruturam os estereótipos de gênero que as colocam em um lugar passivo, subordinado e objetificado. Ou seja, um não-lugar.
É preciso que entendamos, de uma vez por todas, que a subordinação da mulher não decorre de um processo natural e que a violência baseada no gênero atua justamente como um mecanismo de manutenção desse sistema que perpetua a hierarquia entre homens e mulheres e legitima a violência.
É fundamental, assim, desconstruir o que foi construído. Desnaturalizar a misoginia e o machismo. Afastar pensamentos discriminatórios e a imposição de papéis de gênero. Repensar a masculinidade, incluindo os homens no processo de combate ao modelo patriarcal que é a raiz da violência de gênero.
As mulheres precisam ser informadas sobre os seus direitos. Os homens precisam ser reeducados.
A Lei Maria da Penha, sem sombra de dúvidas, trouxe imensas contribuições ao problema da violência contra as mulheres. Deve ser vista, no entanto, como um ponto de partida. E celebrada.
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[1] Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) — Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (www.gov.br)
[2] 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública: 2024 (forumseguranca.org.br)
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