É justificável folga na Justiça cearense no dia do aniversário
21 de agosto de 2024, 21h33
A sociedade precisa saber que, em breve, será julgado pelo plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o Pedido de Providências nº 0000380-13.2024.2.00.0000, por meio do qual se impugnou a Portaria nº 2.472/2023, do gabinete da Presidência do Tribunal de Justiça do Ceará (GabPresi), que “concede ponto facultativo a servidores e magistrados na data de seus aniversários”.
Infelizmente, os 60 dias de férias, recessos generosos etc. não estão sendo suficientes.
O nobre relator, conselheiro José Edivaldo Rocha Rotondano, julgou, monocraticamente, com impressionante rapidez, improcedente o pleito autoral, nos seguintes termos:
“Embora sejam louváveis os argumentos invocados pelo autor em sua peça vestibular, há que se reconhecer que as pretensões ali deduzidas não merecem guarida.
Com efeito, a instituição de pontos facultativos pelos Tribunais é matéria inserta na sua autonomia administrativa, assegurada pela Constituição Federal (art. 96, inciso I), de modo que a atuação deste Conselho deve ser restrita às situações de flagrante ilegalidade.
[…]
E, na hipótese vertente, além de o requerente não ter demonstrado (muito menos comprovado) qualquer prejuízo na prestação jurisdicional do TJ-CE ocasionado pela concessão do benefício, o ponto facultativo estabelecido na Portaria nº 2472/2023-GABPRESI possui motivação idônea.”
Foi interposto recurso administrativo, em face dessa decisão, pois, com a devida vênia, a fundamentação do nobre relator não procede.
Vantagem remuneratória
Pois bem, o benefício em questão tem, sim, cunho remuneratório, pois, no dia do aniversário o membro/servidor receberá a contraprestação pecuniária sem trabalho efetivo. Assim, faz-se necessária, sim, a edição de lei. “O administrador só pode efetuar o pagamento de aumento de remuneração e de vantagem pecuniária a servidor público se houver expressa previsão legal, em obediência ao princípio da legalidade estrita” (STJ – RMS: 20926 RS 2005/0183609-4, relator: ministro Felix Fischer, data de julgamento: 21/11/2006, T5 – 5ª Turma, data de publicação: DJ 18/12/2006 p. 412).
Receber sem trabalhar é sim uma vantagem remuneratória. Nesse sentido:
“DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Impugnação do artigo 68, caput, §§ 1º e 2º, da Lei Complementar nº 1.808/2013, do Município de Américo de Campos – Estatuto dos Servidores Públicos Municipais. Concessão de “abono natalício” aos servidores. Benefício que não atende ao interesse público, bem como às exigências do serviço. Ofensa aos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade. Concessão de vantagem pecuniária que camufla, na verdade, aumento de remuneração. Violação aos artigos 111 e 128 da Carta Estadual. Precedentes deste C. Órgão. Ação procedente, ressalvada a irrepetibilidade dos valores recebidos de boa-fé até a data do julgamento desta ação.” (TJ-SP – Direta de Inconstitucionalidade 2049139-23.2019.8.26.0000; relator (a): Péricles Piza; Órgão Julgador: Órgão Especial; Tribunal de Justiça de São Paulo – N/A; data do julgamento: 28/08/2019; data de registro: 29/8/2019)
Segue trecho do voto condutor do julgado acima:
“Isso porque não há suporte fático a justificar o direito à gratificação em comento, visto que o município visa premiar o funcionário público na data de seu aniversário, sem a necessidade de qualquer contraprestação para o seu recebimento, o que desatende o interesse público e às exigências do serviço.
Há, em verdade, evidente dissimulação no aumento de remuneração dos servidores, violando, também, o artigo 128 da Carta Bandeirante:”
Autonomia não é soberania
Indo adiante, percebe-se que o nobre relator baseou sua decisão na decantada autonomia que detêm os tribunais.
Mas não se pode deixar de registrar que essa autonomia não se confunde com soberania, pois deve obediência aos princípios da legalidade, moralidade e razoabilidade! Não se pode ficar concedendo vantagens funcionais por mera portaria.
Percebe-se que o relator equivocadamente equiparou a situação dos autos a uma concessão pontual de ponto facultativo. Não, são situações bem distintas.
Na espécie, o presidente do TJ-CE, sozinho, concedeu, sem lei, um benefício funcional, geral e abstrato.

Se tivesse cuidado de um caso específico, estanque, até se poderia dizer que se trata de um ato discricionário, sendo possível a edição da norma. Exemplo: no tempo do Covid, nada mais razoável que permitir que cada tribunal, a depender do contexto sanitário do Estado, fixasse a um horário de atendimento diverso ou mesmo que seria ponto facultativo para aqueles servidores com comorbidades.
Daí, torna-se possível compreender o âmbito material da competência normativa do Poder Judiciário, em contraste com o campo reservado à função legislativa. Se, abstratamente, tal tarefa distintiva é consideravelmente improvável, o exame do caso concreto, à luz das autonomias constitucionais do Poder Judiciário, certamente levará a uma conclusão constitucionalmente satisfatória, que deve conciliar o poder de autogoverno e autonomia financeira com as demais funções pertencentes aos outros Poderes da República.
Aí tudo bem.
Mas querer agraciar seu membros e servidores, sem lei, só por conta do seu aniversário, é demais!
Comparativo
Quanto à alegação de que a portaria em questão possui fundamentação idônea, mais uma vez pedindo vênia, isso não procede.
Com todo respeito ao nobre relator, não se pode falar em uma justa causa quando existe um Tribunal de Justiça de outro estado (TJ-SP) entendendo, inúmeras vezes, como inconstitucional tal previsão ainda que veiculada em lei em sentido formal e material. Confira-se a ementa do julgado:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Complementar nº 131/2018, do Município de Ribeirão Grande e de iniciativa parlamentar, que alterou a redação dos artigos 62 e 133 da Lei Complementar nº 11, de 10 de dezembro de 2003 (Estatuto dos Servidores Públicos Municipais de Ribeirão Grande), estabelecendo duas novas hipóteses de faltas justificadas aos servidores públicos (folga no dia do aniversário e faltas abonadas). Suscitada pela i. Procuradoria-Geral de Justiça a ilegitimidade ativa ad causam da autora. Temática preliminar rejeitada. Configurado vício de iniciativa. Norma que compreende regime jurídico de servidor público municipal, cujo impulso de criação é privativo do Prefeito, nos termos do artigo 24, § 2º, item 4, da Constituição do Estado. Afronta ao princípio da separação de poderes (artigo 5º, da Carta Constitucional estadual). Vício material também caracterizado em virtude de o descanso remunerado no dia do aniversário do funcionário não atender aos princípios da moralidade, do interesse público e da razoabilidade, bem assim às exigências do serviço (artigos 111 e 128 da Constituição estadual). Ação procedente.” (TJ-SP – Direta de Inconstitucionalidade 2193837-25.2019.8.26.0000; Relator: Geraldo Wohlers; Órgão Julgador: Órgão Especial; Tribunal de Justiça de São Paulo – N/A; Data do Julgamento: 29/01/2020; Data de Registro: 30/01/2020)
E não se trata de caso isolado:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI Nº 3.460, DE 12 DE JUNHO DE 2017, DO MUNICÍPIO DE PITANGUEIRAS, DE INICIATIVA PARLAMENTAR, QUE CONCEDEU 01 DIA DE FOLGA REMUNERADA AOS SERVIDORES PÚBLICOS MUNICIPAIS PELA DATA DE SEUS RESPECTIVOS ANIVERSÁRIOS. OFENSA AO ART. 24, § 2º N. 4 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS DO MUNICÍPIO QUE É MATÉRIA DE COMPETÊNCIA RESERVADA AO CHEFE DO EXECUTIVO. VIOLAÇÃO TAMBÉM AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE INSCULPIDO NO ART. 111 DA CARTA BANDEIRANTE, BEM COMO AO ART. 128, UMA VEZ QUE SE TRATA DE VANTAGEM PESSOAL QUE NÃO ATENDE AO INTERESSE PÚBLICO. AÇÃO PROCEDENTE.” (TJ-SP – ADI nº 211900-67.2017.8.26.0000, Rel. Des. Xavier de Aquino, j. 27/09/2017)
E, por fim:
“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Comarca de Taquarituba. Lei Municipal nº 1.851, de 12 de novembro de 2021. Ação proposta pelo Prefeito do Município aduzindo: i) vício de iniciativa, posto que a Lei impugnada teria usurpado competência legislativa privativa do Chefe do Poder Executivo; ii) vício formal subjetivo, invadindo esfera de gestão administrativa; iv) ofensa aos princípios norteadores da Administração Pública. Arguição de inconstitucionalidade por afronta aos artigos 61, § 1º, II, “a” e “b” da Constituição do Estado de São Paulo c.c arts. 5º, 25, 47, incisos II, XI, XIV e XIX, letra a, e 144, todos da Constituição Estadual, bem como artigo 165 da Constituição Federal e artigos 42, II, 61 e 62 todos da Lei Orgânica do Município de Taquarituba. Legitimidade ativa para propositura de ADI. Constituição Bandeirante é parâmetro exclusivo para aferição de constitucionalidade de lei municipal. Inconstitucionalidade formal e material evidenciadas. Vício de iniciativa. Compete privativamente ao Executivo a iniciativa legislativa de projetos que se refiram a servidores públicos e seu regime jurídico. Tema 223 de Repercussão Geral. Ofensa aos princípios da moralidade, razoabilidade, proporcionalidade, finalidade e interesse público. Violação dos artigos 5º, 24, § 2º, 4, 47, XI, 111, 128 e 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo. Ação procedente.” (TJ-SP; Direta de Inconstitucionalidade 2002409-46.2022.8.26.0000; relator: Damião Cogan; órgão julgador: Órgão Especial; Tribunal de Justiça de São Paulo – N/A; data do julgamento: 21/09/2022; Data de Registro: 23/09/2022)
Considerações finais
E repita-se: nos casos acima, houve lei, aprovada pelo parlamento, e mesmo assim a norma foi declarada inconstitucional. Por que se manteria uma mera portaria editada isoladamente pelo presidente do Tribunal de Justiça?
Por fim, não compete aos tribunais o poder de legislar acerca da criação de feriados, competência exclusiva da União. Ademais, aos estados, nos termos da Lei Federal nº 9.093/1995, somente compete “instituir um dia de feriado para a comemoração de sua data magna” e aos municípios “a instituição de até quatro feriados nos dias santos de guarda”, incluída a Sexta-Feira da Paixão.
É oportuno registrar que não é a primeira vez que essa questão chega ao CNJ. Em março de 2009, impugnou-se ato normativo com idêntico teor nos autos do procedimento de controle administrativo nº 0000975-37.2009.2.00.0000, envolvendo o Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Lá, felizmente, a corte estadual entendeu por bem revogar a portaria, o que fez com que a demanda perdesse o objeto. Espera-se que o mesmo ocorra no caso do Judiciário cearense.
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