Opinião

Emendas orçamentárias são problema constitucional ou mera política?

Autor

  • Caio Gama Mascarenhas

    é doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP) mestre em Direitos Humanos (UFMS) procurador do Estado do Mato Grosso do Sul chefe da procuradoria judicial e membro do corpo editorial da Revista da PGE-MS.

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21 de agosto de 2024, 19h41

“Dinheiro é poder”, escreveu Andrew Jackson, sétimo presidente dos Estados Unidos, em uma mensagem de veto em 1833 [1]. Mais do que qualquer outra coisa, essa equação explica como os orçamentos públicos funcionam. O processo orçamentário do EUA evoluiu a partir de esforços para apreender e distribuir esse poder entre o Executivo e Legislativo.

José Cruz/Agência Brasil
Pôr do sol na Praça dos Três Poderes

No Brasil atual, a questão não é diferente. São recorrentes as notícias sobre as disputas entre Poderes Legislativo e Executivo. Segundo o presidente da Câmara, o Orçamento da União “pertence a todos e todas e não apenas ao Executivo”. “Se assim fosse, a constituição não determinaria a necessária participação do poder Legislativo em sua confecção e final aprovação”. O presidente da República, por sua vez, acusa o Congresso de sequestrar o orçamento ao afirmar que “não tem nenhum país do mundo em que o Congresso tenha sequestrado parte do orçamento em detrimento do Poder Executivo, que é quem tem obrigação de governar”.

Toda essa discussão gira em torno das emendas de orçamento impositivo, que são, segundo José Maurício Conti, cotas parlamentares de definição de gastos no âmbito do orçamento público. Ressalta-se que essas cotas são de execução obrigatória, salvo nos casos de impedimento técnico devidamente justificados [2].

Essa disputa chegou ao Supremo Tribunal Federal. No âmbito da ADI 7.697, que suspendeu liminarmente a execução de emendas impositivas de deputados e senadores ao orçamento da União, até que o Congresso estabeleça novos procedimentos que garantam transparência, rastreabilidade e eficiência na liberação dos recursos.

Exceções foram feitas para obras já iniciadas e para ações de calamidade pública oficialmente reconhecidas. Anteriormente, emendas orçamentárias executadas com pouca transparência e accountability também foram questionadas no Supremo Tribunal Federal, notadamente as emendas de relator-geral (orçamento secreto) [3] e as emendas individuais de transferência especial (emendas pix) [4].

O que está sendo discutido no STF é propriamente jurídico? Cuida-se de um problema constitucional? Para saber se uma alteração constitucional está dentro do âmbito das possibilidades políticas, deve-se responder algumas perguntas primeiramente: a medida analisada está dentro do âmbito de competência daquele Poder?; caso a medida resulte de uma emenda constitucional, ela viola alguma cláusula pétrea?; ou, por outro lado, a medida infraconstitucional viola o texto expresso da constituição e de outras normas pertinentes? Se as respostas forem respectivamente “sim”, “não” e “não”, estamos diante de uma questão dentro do âmbito das possibilidades políticas.

Transparência e accountability: deveres universais

Deveres de accountability e transparência não cuidam propriamente de distribuição de poder, mas de limitação no exercício de cada um dos poderes estatais conforme parâmetros republicanos e de Estado de direito. Cuida-se de problemas intrinsecamente jurídicos e de fácil extração do texto expresso da constituição e de outras normas.

No debate jurídico atual, a falta de accountability e transparência nas transferências especiais (emendas pix) ocorre dentro de um contexto mais amplo de opacidade orçamentária, que inclui outras questões como o desvio de finalidade das emendas de relator-geral, também chamadas de “orçamento secreto”. Enquanto as emendas de relator-geral careciam de transparência quanto aos parlamentares que as propunham e quanto aos gastos no destino, nas transferências especiais, o problema está na transparência e na execução dos recursos repassados, que não são mais controlados pelo Tribunal de Contas da União.

Não por outra razão que, no texto denominado de nossa autoria chamado “Orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição: notas sobre regime jurídico, accountability e corrupção, defendemos uma interpretação sistemática entre o artigo 166-A e o artigo 163-A da Constituição, pois as transferências especiais não escapam dos deveres de transparência e de accountability devidamente assegurados em plataforma pública de amplo acesso para fins de controle social.

Spacca

Nas ADPFs que atacavam o “orçamento secreto”, o Supremo entendeu que a partilha oculta do orçamento público por meio das emendas do relator é uma prática institucional inaceitável, contrária aos princípios fundamentais da Constituição, que se baseia no ideal republicano, nos valores democráticos e na soberania popular (CF, artigo 1º). Segundo o julgamento, essa prática viola: princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (CF, artigo 37, caput); planejamento orçamentário (CF, artigo 166); a responsabilidade na gestão fiscal (LC nº 101/2000); o direito à informação (CF, artigo 5º, XXXIII); transparência e controle social (CF, artigos 5º, XXXIII, ‘a’ e ‘b’, 37, caput e § 3º, II, 165-A e Lei nº 12.527/2011, artigo 3º, I a V)[5].

Alerta-se que o Poder Executivo também pode agir de forma pouco transparente, dificultando deveres de accountability. Embora o foco do Supremo tenha sido a análise de emendas orçamentárias, há notícias de práticas orçamentárias secretas no âmbito do governo federal, seja mediante duvidosos gastos urgentes sem justificativa técnica, seja mediante práticas contábeis obscuras.

Distribuição de poder orçamentário entre poderes

No âmbito político, a disputa entre poderes por autoridade sobre o orçamento público é algo comum nos países democráticos. No século 20, o tamanho e a complexidade do governo cresceram exponencialmente, fortalecendo o papel do executivo no orçamento. Recentemente, no entanto, os poderes legislativos de alguns países assumiram novas funções orçamentárias, desafiando as funções executivas.

Essa mudança resulta de diversos fatores, como restrições fiscais e mudanças nos partidos políticos. Segundo Posner e Park, o papel de cada poder no processo orçamentário é influenciado por: divisão constitucional de competências; sistemas partidários; estrutura institucional; formato do orçamento; e capacidade do legislativo em mobilizar informações [6].

A influência do Legislativo nas decisões orçamentárias depende tanto de sua autoridade sobre as recomendações do Executivo, quanto de seus processos internos de decisão. Conforme classificado por Joachin Wehner [7], os legislativos podem ser divididos em três categorias de influência sobre o orçamento:

  1. Legislativos que fazem orçamentos: Possuem a capacidade de alterar, rejeitar, ou substituir integralmente as propostas do Executivo com suas próprias propostas (Suécia, Estados Unidos).
  2. Legislativos que influenciam orçamentos: Podem emendar ou rejeitar as propostas do Executivo, mas não têm autonomia para formular seus próprios orçamentos independentes (Itália, Holanda, Brasil). Muitas vezes, o poder de emenda é limitado a cortes de despesas, não podendo aumentá-las, a menos que sejam compensadas por outras reduções (offset rule).
  3. Legislativos com pouca ou nenhuma competência orçamentária: Não possuem capacidade significativa de alterar ou rejeitar as propostas do Executivo, principalmente por receio de desencadear a queda do governo em um sistema parlamentarista (Reino Unido e Canadá).

Essa variabilidade na influência legislativa reflete as diferentes autoridades que os parlamentos possuem para modificar as propostas orçamentárias do Executivo. No âmbito dos estudos comparados, portanto, a questão da influência do Poder Legislativo no orçamento é avaliada dentro do âmbito político.

Impositividade de emendas e orçamento autorizativo

Em linhas gerais, o processo orçamentário é disciplinado originariamente pelos artigos 165 e 166 da Constituição de 1988. Embora seja conferida a iniciativa das leis orçamentárias ao Poder Executivo (artigo 165) e a competência de sua aprovação ao Poder Legislativo (artigo 166), não havia e não há qualquer preceito que priorize um poder em desfavor de outro.

A impositividade de algumas espécies de emendas orçamentárias são, em verdade, uma resposta política do Poder Legislativo ao que se constatava na prática orçamentária durante décadas. Embora a doutrina majoritária defenda a impositividade do orçamento público como um todo, a administração pública o trata como sendo uma lei meramente formal, com caráter autorizativo [8].

Até meados de 2013, as emendas parlamentares ao orçamento público eram contingenciadas sem justificativas técnicas, consubstanciando “compra de apoio político” por parte do Poder Executivo mediante desvio de finalidade do instrumento de limitação de empenho. Em reportagem nesta Conjur, José Maurício Conti explica que essas dotações eram liberadas com base em interesses políticos e não financeiros. Isso desvia o contingenciamento de sua verdadeira finalidade, que é adaptar o fluxo de recursos às necessidades financeiras, para se tornar uma moeda de troca entre os Poderes em busca de apoios políticos. A coincidência entre a liberação desses recursos e votações importantes no Congresso, como noticiado pela imprensa, evidencia esse desvio de finalidade no processo orçamentário.

Após 2013, no entanto, iniciou-se um movimento de blindagem das emendas orçamentárias mediante iniciativas de instituição do orçamento impositivo e de maior controle do Congresso Nacional sobre o processo orçamentário [9]. A prática das cotas de orçamento impositivo foi constitucionalizada a partir de 2015 pela chamada “emenda do orçamento impositivo” (EC 86/2015), que fixou inicialmente um “teto” de 1,2% da RCL — receita corrente líquida — para emendas individuais, aumentando a participação do Poder Legislativo na elaboração e controle da peça orçamentária. Tal montante subiu em decorrência de outras emendas constitucionais que se seguiram e voltaram a regular o tema (EC 100, 102 e 105). De todo modo, não se percebe violação à cláusula pétrea de separação de poderes (artigo 60, §4º, III).

O principal ponto da impositividade das emendas parece girar em torno dos impedimentos técnicos: quanto mais requisitos tiverem de ser observados pelo Poder Executivo para não executar emendas orçamentárias, maior será o grau de exequibilidade das emendas.

Esse problema de impositividade de emendas orçamentárias é de ordem política ou constitucional?

De fato, transparência e accountability são um problema jurídico, podendo levar a outras questões referentes à improbidade e corrupção. É possível extrair diretamente esses preceitos do texto expresso da Constituição.

Por outro lado, a distribuição de poder orçamentário entre Poderes Executivo e Legislativo e impositividade orçamentária são problemas nitidamente políticos. Não há como defender uma predominância de um poder sobre o outro em razão de argumentos puramente jurídicos, devendo considerar contextos político-constitucionais, institucionais, ressaltando a independência e capacidade fiscalizatória do Poder Legislativo em cada país.

Afiliamo-nos a quem defende que o orçamento tem um papel central no equilíbrio dos Poderes. Na arquitetura do processo orçamentário, há clara preocupação na distribuição dos poderes, evitando a concentração de autoridade fiscal em poder que possa autocraticamente se sobrepor aos demais [10].

Roga-se que o STF decida com cautela a presente questão da impositividade orçamentária. Isso porque: o Poder Judiciário não possui legitimidade irrestrita para decidir sobre questões constitucionais de caráter político, faltando-lhe capacidade institucional para lidar com algumas questões complexas; e somente a dispersão racional de poderes sustenta uma democracia, evitando ditaduras [11].

James Madison, um dos fundadores da Constituição estadunidense, já previa que nem sempre os governantes seriam esclarecidos ou iluminados o bastante para superarem dissídios ou agirem em prol do bem comum — mas ainda assim, no fim das contas, teriam instrumentos para limitarem abusos e arbitrariedades no âmbito da federação. Segundo o pensador, os interesses constitucionais devem estar alinhados com os interesses privados dos atores de tal forma que a ambição política acabaria neutralizando outras ambições políticas [12]. Na disputa sobre o orçamento público, não é diferente.

 


[1] Andrew Jackson, pocket veto message (Dec. 4, 1833), in Sen. J. 20, 30 (Dec. 5, 1833).

[2] CONTI, José Maurício. Regime constitucional do orçamento público e os princípios orçamentários. Cadernos Jurídicos, ano 21, n. 54, abril-junho/2020, p. 70.

[3] STF. STF pede informações ao Planalto e Congresso sobre suposto descumprimento de decisão que barrou orçamento secreto. Processos relacionados: ADPF 851, ADPF 850, ADPF 854 e ADPF 1014. Brasília: 19/04/2024. Link da notícia.

[4] STF. STF reafirma que emendas Pix têm de ser transparentes e rastreáveis. Processos relacionados: ADI 7695 e ADI 7688. Brasília: 08/08/2024. Link da notícia.

[5] ADPF 850, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 19-12-2022.

[6] POSNER, Paul L.; PARK, Chung-Keun. Role of the legislature in the budget process: Recent trends and innovations. OECD Journal on Budgeting, v. 7, n. 3, 2008, p. 3-11.

[7] WEHNER, Joachim. Reconciling accountability and fiscal prudence? A case study of the budgetary role and impact of the German parliament. Journal of Legislative Studies, v. 7, n. 2, 2001, p. 57-78.

[8] CONTI, José Maurício. Regime constitucional do orçamento público e os princípios orçamentários. Cadernos Jurídicos, ano 21, n. 54, abril-junho/2020.

[9] Detalhe para o artigo 4º da LOA federal de 2013, que blindou emendas individuais e de bancada do contingenciamento: “Art. 4º Fica autorizada a abertura de créditos suplementares, restritos aos valores constantes desta Lei, excluídas as alterações decorrentes de créditos adicionais, desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida no Anexo de Metas Fiscais da LDO-2013 e sejam observados o disposto no parágrafo único do art. 8º da LRF e na LDO-2013 e os limites e as condições estabelecidos neste artigo, vedado o cancelamento de quaisquer valores incluídos ou acrescidos em decorrência da aprovação de emenda individual ou de bancada estadual[…].

[10] CONTI, José Maurício. Regime constitucional do orçamento público e os princípios orçamentários. Cadernos Jurídicos, ano 21, n. 54, abril-junho/2020.

[11] MASCARENHAS, Caio Gama. A autocontenção estrutural do Poder Judiciário. Legitimidade, capacidade e Tema 698 do STF. Revista Eletrônica da PGE-RJ, v. 6, n. 2, 2023 (link).

[12] HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The federalist(1788). Edited by J. R. Pole. Cambridge: Hackett Publishing, p. 51, 2005.

Autores

  • é doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP), mestre em Direitos Humanos (UFMS), com extensão em federalismo comparado pela Universität Innsbruck, e procurador do estado do Mato Grosso do Sul.

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