Em busca de segurança jurídica para o passado das tokenizadoras
21 de agosto de 2024, 10h17
Recentemente, o Valor Econômico noticiou que a CVM tem enviado ofícios às tokenizadoras, com o intuito de compreender melhor as operações, os direitos conferidos aos investidores e outros aspectos. Conforme a reportagem, boa parte das empresas veem com bons olhos esta aproximação, que pode ajudar a construir uma regulação mais próxima da realidade.
Por outro lado, há atores do mercado estão preocupados com um risco real: estariam produzindo provas contra si mesmos se o regulador, ao analisar alguma das operações reportadas, concluir que houve oferta de valores mobiliários sem autorização prévia?
Tal receio é justificado, uma vez que, entre 2017 e 2019, a CVM emitiu diversos alertas (stop orders) indicando que certas empresas e pessoas naturais ofertaram tokens que, em essência, eram valores mobiliários e, por isso, seria necessário o registro de emissor e o registro de oferta pública ou, pelo menos, o pedido de dispensa de registro. Quem recebe uma stop order da CVM sofre consequências graves, dado o dano reputacional perante investidores e parceiros, enfrentando dificuldades para fechar negócios no mercado de capitais.
Da edição de avisos ao mercado a uma abordagem consensual
Podemos afirmar que a abordagem do regulador brasileiro mudou desde 2020. Aproximando-se do mercado, por meio de iniciativas como o Laboratório de Inovação Financeira (LAB) e, mais recentemente, o Centro de Regulação e Inovação Aplicada (CRIA), a CVM tem se esforçado para compreender os modelos de negócios, os riscos e os controles que têm sido implementados pelos participantes.
Debates recentes no Colegiado da CVM vão desde a aplicação de sanções no caso ICOnic em outubro de 2020 até o inédito entendimento de descaracterização do token DYN como valor mobiliário em maio deste ano. O mesmo Colegiado editou o Parecer de Orientação CVM nº 40/2022, com o objetivo de guiar investidores e empresas sobre a incidência da competência regulatória da CVM e os deveres exigidos pelas normas vigentes.
Adicionalmente, além de ter aprovado novos fundos negociados em bolsa (ETF) de criptoativos (inclusive o recente ETF de Solana), a autarquia atualizou o seu entendimento sobre a admissibilidade de investimento direto nessa classe de ativo por meio de fundos constituídos no Brasil, conforme previsão na Resolução CVM nº 175/2022, com certas limitações.
Renda fixa digital e caminho via crowdfunding
Todavia, a CVM transmitiu ao mercado uma boa e uma má notícia ao editar o Ofício-Circular CVM/SSE nº 04/2023. A má notícia foi a de que, conforme o regulador, vários tokens de recebíveis ou de “renda fixa digital” têm características que os aproximam de valores mobiliários, por preencherem os requisitos do artigo 2º, IX, da Lei nº 6.385/1976 ou, pelo menos, sua estruturação se assemelha significativamente com a de operações de tokenização.
Por sua vez, a boa notícia foi a de que, em vez de proibir a oferta desses tokens ou exigir o registro de emissor e de oferta (o que traria custos impeditivos e inviabilizaria sua emissão), a CVM indicou a possibilidade de utilização das ofertas de crowdfunding, regidas atualmente pela Resolução CVM nº 88/2022.
Esta, na verdade, foi uma notícia “menos pior”, pois os limites trazidos por essa norma não atendem os anseios dos agentes de mercado, que passaram a travar um diálogo mais próximo com a autarquia para tentar superar esses limites. Enquanto a atualização normativa não vem, o Ofício-Circular CVM/SSE nº 06/2023 trouxe algum alento, ao permitir a criação de patrimônios segregados e permitir que tokenizadoras consigam contornar alguns limites quantitativos da norma de crowdfunding.
E o passado?
Porém, uma questão permanece: o que a CVM irá fazer com respeito a tokens que foram ofertados ao público em geral que, em sua essência, são valores mobiliários? A resposta óbvia seria a abertura de processos administrativos sancionadores, com a aplicação de sanções que vão desde advertência até a imposição de multas proporcionais aos valores captados. Esta alternativa certamente destoa da abordagem consensual adotada até aqui, mas, em uma leitura inicial, parece ser a via obrigatória exigida pelo mandato legal da CVM.
Por esta razão, como comentei anteriormente, o receito das tokenizadoras em abrir suas informações tem fundamento e cria um impasse.
Mas há esperança, tendo em vista uma situação semelhante ocorrida no passado, envolvendo a oferta pública de contratos de investimento coletivo relacionados à exploração e desenvolvimento de empreendimentos hoteleiros, os chamados condo-hotéis.
Mais particularmente, nos argumentos do voto do diretor Gustavo Tavares Borba no Processo CVM nº 19957.004122/2015-99 (caso Oliva). Embora sua decisão tenha sido acolhida por unanimidade pelo Colegiado da CVM na ocasião, seus fundamentos foram superados pelos apresentados no voto do então presidente Leonardo Gomes Pereira. Penso que é um momento oportuno para resgatar o debate travado na ocasião.
Como a CVM lidou com as ofertas irregulares de condo-hotéis?
A Lei nº 10.303/2001 ampliou o conceito de valor mobiliário para que a CVM pudesse atuar em casos de ofertas de contratos de investimento coletivo (“CIC”) como Fazendas Boi Gordo e congêneres. Entre 2001 e 2012, foram realizadas inúmeras ofertas de CIC para financiar condo-hotéis, com nenhuma atuação direta por parte da CVM [1]. Esse quadro só mudaria no final de 2013, com a edição de uma manifestação geral sobre ofertas irregulares de CIC de condo-hotéis, sem mencionar pessoas ou empresas específicas.
A partir daquele momento, a autarquia sinalizou de forma mais assertiva que, quando ofertados publicamente, estes CIC seriam valores mobiliários e, portanto, seriam necessários o registro de emissor e de oferta pública ou pedido de dispensa de registro. As ofertas prosseguiram, apesar do alerta da CVM, que editou norma específica apenas em 2015.
Então, a área técnica da CVM passou a exigir alguns requisitos de ofertas realizadas antes de 12/12/2013 (quando não havia posicionamento firme da CVM) e entre esta data e 17/03/2015 (data da edição da referida Deliberação), resultando em diversos recursos ao Colegiado e processos administrativos sancionadores.
O diretor relator Gustavo Borba trouxe uma visão pautada na importância da segurança jurídica e nos princípios da boa-fé e da confiança. Destaco os seguintes trechos (grifos nossos):
Não me parece razoável que a CVM, (…), e mesmo sabendo da complexidade e da falta de assimilação pelo mercado desse novo conceito (totalmente diverso da concepção clássica de valor mobiliário), venha a entender, sem nenhum temperamento ou ponderação, pela ilegalidade de todas essas emissões realizadas sem registro. (…)
Evidentemente que a mera omissão estatal não seria suficiente para eximir alguém de suas obrigações. Contudo, quando essa omissão deriva da mesma dúvida ou perplexidade que originou a não observância da norma pelo particular, entendo que esse quadro global constitui circunstância relevante que deve ser levada em consideração na regulação, na fiscalização e na aplicação das normas.
Nessas bases, o diretor relator propôs uma regra de transição para lidar com expectativas legítimas dos afetados, as quais, embora não limitem o regulador, devem ser levadas “em consideração ao edita regras, de modo a não causar prejuízos injustificados às pessoas atingidas pelas normas”.
Por outro lado, o entendimento contido no voto vencedor do presidente Leonardo Gomes Pereira, foi o de que “inexistência de pronunciamento da CVM sobre a regularidade ou não de determinada conduta do mercado não possui o efeito de validar eventuais ilegalidades observadas”. Ou seja, eventual inércia da CVM não convalidaria ofertas irregulares, apesar de quaisquer dúvidas que pudessem existir sobre a caracterização dos CIC como valores mobiliários.
Voltando ao passado das tokenizadoras
Podemos afirmar que essa visão foi percebida por parte do mercado nas primeiras interações com a CVM, pois, dado que ninguém pode alegar desconhecimento da norma em seu benefício, recaiu sobre os particulares o ônus relativo ao julgamento sobre a caracterização de certo token como valor mobiliário. Alguns pedidos foram analisados, como o Vasco Token e a Niobium Coin (e, mais recentemente, o token DYN), mas muitos hesitaram em apresentar seus projetos, pois, se fosse necessário obter o registro, os custos de observância tornariam a empreitada inviável.
Devemos observar que há diferenças entre o período de indecisão e ausência de enforcement com respeito aos condo-hotéis e a dinâmica da atuação da CVM com respeito a ofertas de tokens, pois, já em 2017 a CVM começou a editar alteras sobre o tema durante a febre das Initial Coin Ofeerings (ICO).
Por outro lado, à época da decisão, três normas importantes ainda não eram vigentes.
Primeiro, a Lei de Introdução alterada pela Lei nº 13.655/2018 consagrou o princípio da confiança e a necessidade de segurança jurídica para os particulares em face de mudanças de entendimento da Administração, inclusive prevendo um “compromisso” distinto do Termo de Compromisso usual (grifos nossos):
Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.
Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.
Segundo, a Lei de Liberdade Econômica trouxe diversos princípios que procuram aliviar o ônus regulatório na hipótese de projetos de baixo risco.
Terceiro, a Lei nº 13.506/2017, que modernizou o processo sancionador do Bacen e da CVM, alterou o artigo 9º, § 4º da Lei 6.3085/1976 para autorizar a CVM a “deixar de instaurar o processo administrativo sancionador, consideradas a pouca relevância da conduta, a baixa expressividade da lesão ao bem jurídico tutelado e a utilização de outros instrumentos e medidas de supervisão que julgar mais efetivos”.
Portanto, há leis ordinárias que se aplicam a toda a Administração Pública que podem e devem ser conjugadas com a interpretação e aplicação das normas da Lei nº 6.385/1976. Desse modo, penso ser oportuna uma (re)leitura dos argumentos do voto vencido no caso Oliva, à luz destas novas regras, para decidir o que fazer com o passado das tokenizadoras.
Conclusão: punir ou educar?
Talvez seja a hora de repensarmos a ideia de supremacia de um interesse público marcado pela obrigatoriedade da atuação sancionadora. Há leis que autorizam a ponderação de valores para que o regulador, em vez de se preocupar se foi omisso ao não se manifestar ou deixar de punir, defina marcos temporais e exceções que dissipem o receio de responsabilização. O efeito educativo da aplicação de penalidades é questionável em certas situações.
Obviamente, qualquer solução nesse sentido tem que considerar como as stop orders e penalidades que já foram aplicadas serão tratadas, especialmente em casos flagrantes de fraudes em que sequer houve emissão de tokens, mas apenas de CIC genéricos para dar suporte a pirâmides e a menção a cripto foi apenas uma isca para pescar tolos.
Uma coisa é criar um “passe livre” para “piramideiros”, outra é agir de forma proporcional com relação a empresas que estão navegando sob incerteza para reduzir os custos em operações no mercado de capitais e ajudar no seu desenvolvimento. Deve haver critérios para separar o joio do trigo, mas tal decisão não precisa ocorrer no âmbito de um processo sancionador.
Esta é uma discussão para um segundo momento, o qual espero que venha a ocorrer, quando for superada, de vez, a ideia de regulação pelo enforcement na criptoeconomia.
_______________________________
[1] Nos termos da ata da Decisão do Colegiado: “O Presidente ressaltou que, inclusive, a CVM divulgou duas stop order em 2006 e 2012, alertando o público investidor sobre a oferta irregular de empreendimentos imobiliários, porém com características diversas de condo-hotel, evidenciando a sua atuação nesse setor. Portanto, no entendimento do Presidente, não seria correto dizer que a Autarquia foi omissa, inerte ou teve dúvidas quanto ao tratamento da matéria, como pareceentender o Diretor Relator”.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!