Opinião

Conversão da ação de improbidade na Lei 8.429/92

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  • é mestre doutor livre docente e professor associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e promotor de Justiça em São Paulo.

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21 de agosto de 2024, 6h01

A Lei 8.429/92 foi substancialmente modificada pela Lei 14.230/2021. O artigo 17, § 16 da LIA (Lei de Improbidade Administrativa) passou a prever que “a qualquer momento, se o magistrado identificar a existência de ilegalidades ou de irregularidades administrativas a serem sanadas sem que estejam presentes todos os requisitos para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo passivo da demanda, poderá, em decisão motivada, converter a ação de improbidade administrativa em ação civil pública, regulada pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985”.

O sentido literal da disposição, portanto, é de que, se não for viável o reconhecimento da improbidade, deve haver a conversão da denominada “ação civil de responsabilidade por ato de improbidade administrativa” em “ação civil pública”.

O preceito, contudo, suscita várias dúvidas. Possível apontar algumas, a título de exemplificação, notadamente aquelas que, aparentemente, são as mais importantes: qual a razão da regra? O que significa a aludida conversão? Pode ocorrer de ofício (ou é necessário requerimento ou aditamento da petição inicial)? A conversão pode se verificar em qualquer fase do processo? É obrigatória? Há necessidade de contraditório prévio? E a questão dos danos ao erário? E se não for apreciado o pedido de reparação?

Importante, para análise do tema, estabelecer premissas

Primeiro, compreender a razão da alteração legislativa. A Lei 14.230/2021 procurou estabelecer disciplina mais restritiva, rigorosa e, de certo modo, formalista, com relação ao processo judicial de improbidade. A intenção do legislador (mens legislatoris) foi, portanto, ampliar o espectro da atuação defensiva, dificultando a aplicação das sanções e, por certo, aproximar o processo de improbidade dos “standarts” do processo penal.

Por outro lado, não é correta a interpretação meramente literal das disposições legais. Há necessidade de conjugá-la com outros métodos de interpretação, sendo manifesta a superioridade decorrente da combinação dos métodos sistemático e histórico. Além disso, transformado o texto em lei, passa ao segundo plano a vontade do legislador, ganhando importância a vontade da lei (mens legis).

Outra premissa a considerar: a amplitude da tutela jurisdicional no sistema jurídico brasileiro. Entre nós, é assegurado amplo acesso à Justiça e proteção às ameaças ou lesões ao direito (artigo 5º, XXXV, CF). Prevalece a compreensão de que a ação é direito público, subjetivo, de assento constitucional, que funciona como cobertura geral para a tutela de posições jurídicas lesadas ou ameaçadas. [1]

Isso também induz à percepção de que o procedimento, no direito processual, é importante, mas apenas relativamente. Sua função é materializar os contornos do devido processo legal (artigo 5º, LIV da CF), assegurando sua observância. [2]

É correto observar que o sentido do artigo 17, § 16 da Lei 8.429 (nova red.) é sinalizar para a observância de parâmetros relativos ao denominado direito sancionador, cf. artigo 1º, § 4º da Lei 8.429 (red. Lei 14.230). Procura-se circunscrever a tutela da probidade administrativa, no processo, ao aspecto sancionatório (artigo 17-D da Lei 8.429, nova redação). Por isso, a previsão de que a tutela de políticas públicas e a reparação de danos a direitos metaindividuais devem ocorrer nos termos da Lei 7.347/85 (ação civil pública).

Preceito de ordem lógica, francamente acolhido no direito processual contemporâneo, contudo, recomenda que não se atribua à forma valor maior que aquele concedido ao conteúdo. Instrumentalidade, efetividade e necessidade de efetiva atribuição de tutela jurisdicional (instituto fundamental no direito processual atual), merecem precedência. [3]

Conversão para ação civil pública

O significado da regra de conversão, portanto (artigo 17, § 16), é formal-procedimental: inexistindo improbidade, indica-se, em princípio, a conversão para o procedimento da Lei 7.347 (ação civil pública). Essa indicação, contudo, não pode ser considerada em termos absolutos.

Ela não deverá ocorrer de ofício. A lei especial não eliminou as regras do dispositivo e/ou da demanda, inerentes ao sistema processual. Não se dispensa a provocação da parte (artigo 2º do CPC-15). O requerimento de conversão é indispensável. Se o órgão judicial entender que a conversão é necessária, encaminhamento correto é abrir vista ao autor para que se manifeste. Afinal, a conversão significa alteração do procedimento e, em boa medida, da pretensão à tutela jurisdicional a ser, eventualmente, concedida.

Nem sempre, entretanto, haverá necessidade de aditamento da petição inicial. Esse só se mostrará indispensável se forem precisos acréscimos ou ajustes na causa de pedir e no pedido. Vale lembrar que a causa de pedir e o pedido são indicados, no processo, pelo autor. Ao juiz, cabe a definição do direito e a sua aplicação à espécie. São ainda atuais os brocardos “narra mihi factum, dabo tibi ius” e “iura novit cúria”.

Spacca

A ação civil de improbidade, em verdade, traz cumulação de pedidos (declaração de ilegalidade, imposição de sanções, reparação de danos ao erário, perda de valores e bens). A inviabilidade da aplicação das sanções não elimina a necessidade de apreciação dos demais pedidos (declaração de ilegalidade do ato, reparação de danos, perda de bens e valores).

Por outro viés, sobre o momento da realização da conversão, a lei diz que ocorrerá “a qualquer momento” (artigo 17, § 16 da Lei 8.429).

A interpretação sistemática e finalística, contudo, indica que só deverá ocorrer conversão se forem necessários aditamento da petição inicial e/ou instrução probatória complementar. Se não forem (causa madura, pronta para julgamento: processo instruído, prova já produzida), basta prosseguir para o julgamento (sentença, em primeiro grau; acórdão, em grau de recurso). Como ocorre em qualquer processo. Os pedidos cumulados devem ser todos apreciados e, conforme o caso concreto, alguns serão acolhidos, outros rejeitados, todos acolhidos ou todos rejeitados.

Outro ponto: o contraditório efetivo é necessário, pois assim o exige a lei processual, que exclui a decisão-surpresa (sentença de “terza via“), cf. artigo 9º, 10 e 933 do CPC-15.

Importantes indagações estão relacionadas às situações em que ocorreram danos ao erário.

Necessário lembrar que no Tema 897 de Repercussão Geral, o STF definiu que “são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”. Na mesma linha, no Tema 1089 de Recursos Especiais Repetitivos, o STJ firmou que “na ação civil pública por ato de improbidade administrativa é possível o prosseguimento da demanda para pleitear o ressarcimento do dano ao erário, ainda que sejam declaradas prescritas as demais sanções previstas no artigo 12 da Lei 8.429/92”.

STF debate reparação de danos

Ocorre que, no julgamento do ARE 1.475.101-SP, 1ª Turma do STF, instalou-se discussão sobre a questão da conversão e da reparação de danos. Cuida-se de recurso contra acórdão do TJ-SP, que reformou decisão de primeiro grau, na qual foi determinada a conversão de ação de improbidade em ação civil pública.

O TJ-SP entendeu que, reconhecida a prescrição da improbidade, não seria mais possível a condenação à reparação de danos. O voto do relator, ministro Alexandre de Moraes (ARE 1.475.101-SP, seguindo pelo ministro Cristiano Zanin), foi pela impossibilidade de exame da pretensão de ressarcimento, sem a prévia condenação por improbidade. Ou seja, afastada a improbidade (v.g. pela prescrição das sanções), não seria possível aplicar a tese do Tema 897, considerando-se prescritível a pretensão de reparação de danos ao erário.

A ministra Cármen Lúcia apresentou voto divergente, sendo seguida pelo ministro Flávio Dino. Destacou que “basta que, na própria ação visando ao ressarcimento, seja reconhecido que o ato configura improbidade”. Aguarda-se, ainda, o voto faltante, do ministro Luiz Fux.

Algumas observações a respeito

Prescrita a pretensão de sancionar a improbidade, o reconhecimento da ocorrência do ato de improbidade figurará como questão prejudicial (relacionada à causa de pedir) [4], a ser apreciada incidentalmente, na fundamentação do pronunciamento judicial, para que seja, então, examinado o pedido de reparação de danos.

A questão prejudicial pode ser enfrentada em qualquer processo, seja observando-se o procedimento da “ação de improbidade”, seja naquele referente à ação civil pública, especialmente considerando que, em ambos os casos, há, com pequenas alterações, quase que identidade em relação ao procedimento comum, do CPC-15, com ampla cognição quanto às questões de fato, de direito, e absoluta amplitude probatória.

Portanto, se há ação de improbidade em andamento e se declara prescrita pretensão à aplicação das sanções, será imprescindível que ocorra o exame dos demais pedidos, em respeito à regra da congruência (correlação, adstrição), que veda não apenas a decisão “ultra” ou “extra petita“, mas também as decisões que não apreciam pedido regularmente formulado (citra petita), nos termos dos artigos 141, 490 e 492 do CPC-15.

Outra hipótese: identifica-se a prescrição da sanção por improbidade antes da propositura da demanda judicial. Nesse caso, será viável a ação civil pública para reparação de danos ao erário. A descrição da causa de pedir deverá conter a alegação da questão prejudicial, ou seja, que os atos ilícitos, nada obstante a prescrição das sanções, configuraram improbidade administrativa. Deverá descrever as condutas (tipicidade objetiva) bem como os elementos que configuram o dolo (tipicidade subjetiva).

A amplitude da instrução probatória, da defesa e da cognição propiciarão o exame dessa temática incidental, de sorte a se concluir pelo reconhecimento (ou não) da ocorrência de ato lesivo que configuraria improbidade, com a condenação (ou não, se inexistente prova), à reparação dos danos.

Não há, absolutamente, nenhuma razão, do ponto de vista do direito processual, que afaste o raciocínio acima.

Negá-lo, ou seja, concluir que, sem uma “prévia condenação por improbidade”, os danos ao erário se tornam prescritíveis (afastando-se a aplicação das teses do Tema 897 do STF e 1.089 do STJ), significa contrariar e negar vigência a vários preceitos normativos. Exemplificativamente: artigos 8º e 12 da Lei 8.429 e 927 do CC-2002 (determinações legais de reparação de danos); 17 § 6º da Lei 8.429 (ele mesmo determinando a conversão em ação civil pública, nos moldes do que foi acima exposto); 3º do CPC-15 (que assegura a tutela jurisdicional); 141, 490 e 492 do CPC-15 (que cuidam da congruência, correlação ou adstrição).

Esperemos que a matéria, ao final, seja apropriadamente examinada no voto faltante, no ARE 1.475.101-SP, para que o STF não faça ruir por terra a importante orientação fixada no Tema 897 de Repercussão Geral.

 


[1] Cf., v.g., Flávio Luiz Yarshel (Tutela jurisdicional. São Paulo: DPJ, 2006, p. 59 e 189). Igualmente, de nossa autoria, Tutela jurisdicional no direito processual contemporâneo. Salvador: Juspodivm, 2004, p. 151 e ss.

[2] É a conhecida ideia de que o “processo justo” assegurará decisões justas. Cf., vg., Luigi Paolo Commoglio (La garanzia costituzionale dell’azione ed il processo civile, Padova: CEDAM, 1970, p. 154-157); e Nicolò Trocker (“Il valore costituzionale del ‘giusto processo’”, Il nuovo articolo 111 della Costituzione ed il giusto processo. Milano: Franco Angeli, 2001, p. 45).

[3] A consagrada lição de Cândido Rangel Dinamarco, de que as exigências formais apenas se destinam a impedir abusos e velar pela observância das garantias (Instituições de direito processual, vol. II, 8º ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 705).

[4] Insuperável a lição de José Carlos Barbosa Moreira (Questões prejudiciais e coisa julgada. Rio de Janeiro: Tese, 1967, p. 54), lembrando que “será prejudicial a questão necessariamente posta como antecedente lógico da solução de outra”.

Autores

  • é mestre, doutor, livre docente e professor associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e promotor de Justiça em São Paulo.

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