Queda do voo 2.283 da VoePass: competência federal ou estadual?
20 de agosto de 2024, 6h03
Assistimos, nos últimos dias, aos órgãos da polícia judiciária de São Paulo e da Polícia Federal realizando procedimentos periciais no local do acidente com o voo 2.283 da VoePass, em Vinhedo (SP).

Certamente, não existe tal sobreposição de atribuições na legislação penal, tanto pela possibilidade de gerar conflitos decisórios, como pela duplicidade de gasto de recursos públicos para executar uma mesma atividade.
Com efeito, analiso aqui, segundo normas constitucionais e precedentes dos tribunais, de qual esfera do Poder Judiciário compete processar e julgar os acidentes aéreos na aviação civil: Justiça Federal ou estadual.
No campo constitucional, dois elementos de atração podem levar os acidentes aeronáuticos a serem processados na Justiça Federal: 1) prática de infração em detrimento de bens, serviços ou interesses federais (artigo 109, IV, da CF/88); 2) crime ocorrido a bordo de aeronave (artigo 109, IX, da CF/88).
Infrações em detrimento de serviços ou interesses federais
Para que o elemento de atração “serviços federais” fixe a competência criminal federal, necessário que o serviço lesado seja prestado diretamente pela União, suas autarquias e empresas públicas. No Brasil, somente o Correio Aéreo Nacional [1] é prestado diretamente pela União, nos demais casos, são entidades privadas prestadoras de serviços aéreos públicos [2].
Sendo assim, o fator atrativo “serviços federais” não é capaz de fixar a competência criminal federal em acidentes aeronáuticos ocorridos durante a prestação do serviço de transporte aéreo público, pois não se trata de serviço prestado diretamente pela União ou por alguma de suas autarquias, como a Anac, ou por empresa pública federal, como a Infraero.
Todavia, a infração praticada poderá figurar uma lesão a interesse federal.
É certo que o interesse que gera a atração para a competência federal não é aquele genérico, decorrente de simples ação de fiscalização. Necessário que seja um interesse direito e específico da União ou de suas autarquias ou empresa pública federal [3].
No ponto, um acidente aeronáutico pode envolver desde um voo privado até a prestação do serviço de transporte aéreo, não-regular e regular: o primeiro é aquele realizado pelas empresas de táxi-aéreo, e o segundo é prestado pelas grandes companhias aéreas.

Quando o acidente aeronáutico envolve aeronave vinculada ao transporte aéreo regular, não há dissenso para fixar a competência federal sob esse paradigma, considerando que esses eventos catastróficos impactam fortemente na confiança da população no transporte aéreo, atividade de competência exclusiva da União.
Como bem pontuado pelo ministro Nunes Marques na ADI 5.667 [4], no Brasil, a cada trinta segundos, decola uma aeronave com mais de cem passageiros, tendo sido transportados mais de 112 milhões de passageiros pela aviação comercial em 2023, o que espelha a grandiosidade do transporte aéreo regular nacional. Logo, a fragilização da segurança aérea desse ramo do transporte público, evidentemente, representa sério prejuízo a interesse direito e específico da União, haja vista a sua densidade e amplitude.
Talvez por isso, a quase totalidade dos acidentes aéreos envolvendo aeronaves em serviço de transporte aéreo regular foi processado na Justiça Federal, salvo o sinistro com o voo Nordeste 115 (Recife, 1991), cujo julgamento ocorreu no âmbito da justiça estadual pernambucana [5].
Com efeito, foram processados e julgados na Justiça Federal os acidentes de diversas empresas aéreas regulares, como o voo Varig 254 [6] (São José do Xingu-MT, 1989), Rico 4.815 [7] (Manaus, 2004), Gol 1.907 [8] (Peixoto de Azevedo-MT, 2006), TAM 3.054 [9] (São Paulo, 2007) e Noar (Recife, 2011). Nesse último caso, a decisão de fixação de competência destaca justamente o comprometimento da confiança no transporte aéreo para evidenciar a lesão a legítimo interesse federal:
“Ora, sendo da competência exclusiva da União explorar e controlar a navegação aérea, não precisa divagar muito para se inferir que o evento que termina por ocasionar a morte de várias pessoas, bem como macular a segurança do transporte aéreo, é de interesse da União. Vê-se, pois, que a competência federal está plenamente firmada, nos termos do artigo 109, IV, da Constituição Federal.” (IP 0010878-51.2011.4.05.8300, juiz federal Allan Endry Veras Ferreira, JFPE, Data: 19/7/2011).
No que tange ao transporte aéreo não-regular, importante registrar que sua diferença mais marcante das empresas aéreas de voos regulares é justamente a previsão de horários fixos de decolagem e chegada aos seus destinos, o que não desqualifica a sua importância para a União e para a Anac. Inclusive, recentemente, a Anac passou a permitir que as empresas de táxi-aéreo comercializem passagens avulsas em voos agendados [10], característica típica da operação regular.
Em resumo, acidentes aéreos envolvendo aeronaves de transporte aéreo regular possuem indubitável interesse direto e específico da União e da Anac, haja vista a sua essencialidade e densidade. Eventuais sinistros aéreos relacionados com aeronaves na prestação de serviço de transporte aéreo não-regular (táxi-aéreo) devem seguir a mesma inteligência, considerando a enorme proximidade regulatória que essa modalidade de serviço público possui com o transporte aéreo regular [11].
Crimes ocorridos a bordo de aeronaves
O segundo elemento de atração que firma a competência criminal federal para processar e julgar acidentes aéreos se refere aos crimes ocorridos a bordo de aeronaves.
Em acidentes aéreos, a aeronave sempre será o local do resultado da conduta delitiva, que também é considerado local do crime, como prescreve o artigo 6º do Código Penal [12]. Um atentado a bomba, uma ordem equivocada do controle aéreo ou a incorreção de um procedimento de manutenção da aeronave são condutas que até podem se iniciar fora da aeronave, porém, irão produzir, necessariamente, resultado de perigo ou de dano a bordo da aeronave então sinistrada (local do resultado).
Bom lembrar que, no geral, os acidentes aéreos estão subsumidos ao delito disposto no artigo 261 do CP [13], assim, o resultado de perigo exigido pelo tipo sempre será consumado a bordo da aeronave, gerando a atração da competência federal, ex vi do artigo 109, IX, da CF/88.
Logo, sob o preceito constitucional disposto no inciso IX do artigo 109, os acidentes aeronáuticos acabam atraídos integralmente para a esfera federal, qualquer que seja o emprego funcional da aeronave sinistrada (se em transporte aéreo público ou privado), pois o elemento de atração não se relaciona a interesse federal, mas ao local do crime.
Diversas são as decisões judiciais relativas à competência criminal em acidentes aéreos que justificaram a fixação da competência federal também com fundamento no local do crime, isto é, no fato de o acidente aeronáutico representar um delito ocorrido a bordo aeronave, como o voo Varig 254 [14], Noar 4896 [15] e Gol 1907, esse último que decorreu de ações e omissões de controladores de tráfego aéreo fora da aeronave, cujo resultado consolidou-se a bordo da aeronave Boeing 737-8EH da empresa Gol Linhas Aéreas:
“CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. MEDIDA CAUTELAR INOMINADA. CRIME COMETIDO A BORDO DE AERONAVE. INFRAÇÃO PENAL PRATICADA EM DETRIMENTO DE BENS, SERVIÇOS OU INTERESSE DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL (ART. 109, IX, E IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL).
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Em se tratando de crime em tese praticado a bordo de aeronave ou em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, a competência é da Justiça Federal, por força de comando constitucional.
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Conflito de competência conhecido para declarar competente o Juízo Federal de Sinop/MT, o suscitante.” (CC n. 72.283/MT, relatora ministra Maria Thereza de Assis Moura, 3ª Seção, julgado em 8/11/2006, DJ de 5/2/2007, p. 199.)
A força atrativa do elemento “crimes ocorridos a bordo de aeronaves” em acidentes aéreos é tão manifesta que foram processados pela Justiça Federal [16] vários sinistros ocorridos com aeronaves de empresas táxi-aéreo [17] e, até mesmo, aeronaves em voos privados, como o acidente que envolveu o presidenciável Eduardo Campos (Santos, 2014 – JFSP [18]), o ex-ministro do STF Teori Zavascki (Parati-RJ, 2017 – JFRJ [19]) e diversos outros casos com essa mesma característica privada [20].
Algumas anotações ainda são importantes. O dispositivo constitucional encartado no inciso IX do artigo 109 da CF é aplicado exclusivamente para aeronaves, assim, excluem-se balões e dirigíveis, bem como se limitam a crimes, não tangenciando contravenções penais.
Por fim, cabe registrar que o elemento subjetivo do tipo (se o crime é doloso ou culposo) é indiferente para a fixação da competência federal tanto para o elemento de atração de lesão a interesse federal, como pelo elemento crimes ocorridos abordo de aeronaves [21].
Caso VoePass 2.283
A partir dos precedentes judiciais destacados no presente artigo, observam-se presentes elementos claros para a fixação da competência criminal federal para processar e julgar o acidente com a aeronave que cumpria o voo VoePass 2283, ocorrido em Vinhedo (SP), no dia 09 de agosto de 2024.
Com efeito, a aeronave modelo ATR 72 da empresa VoePass estava vinculada a serviço de elevado interesse federal — transporte aéreo regular de passageiros, o que atrai a competência criminal federal ante o disposto no inciso IV do artigo 109 da CF/88. Além disso e considerando a subsunção dos fatos ao delito disposto no artigo 261 do CP, independentemente de seu elemento subjetivo, o resultado delitivo (acidente aéreo) consumou-se, de forma evidente, a bordo da aeronave, o que encontra ressonância com o inciso IX do artigo 109 da CF/88.
[1] Constituição Federal de 1988:
Art. 21. Compete à União:
[…]
X – manter o serviço postal e o correio aéreo nacional;
[2] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar, A. R. C. Curso de direito processual penal. 2. ed. Salvador: Juspodvim, 2008, p. 197.
[3] CC 168.575/MS, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 9/10/2019, DJe de 14/10/2019.
[4] Íntegra do julgamento disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gOFxZaFoljg. Acesso em 16.06.2024.
[5] HC 13.300 – Pernambuco no STJ (2000/0048482-2).
[6] AP 91.0001227-0 da JFMT.
[7] CC 121.810/AM, Rel. Ministra Laurita Vaz, julgado em 24/09/2013, DJe 27/09/2013.
[8] CC 72.283/MT, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Terceira Seção, julgado em 08/11/2006, DJ 05/02/2007.
[9] AP 0008823-78.2007.403.6181 da JFSP.
[10] Resolução ANAC 576, de 04 de agosto de 2020, que dispõe sobre o alcance dos requisitos aplicáveis às empresas aéreas que conduzem operações agendadas no âmbito do RBAC nº 135.
[11] HONORATO, Marcelo. Crimes aeronáuticos. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024, P. 558.
[12] Art. 6º – Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado.
[13] HONORATO, Marcelo. Crimes aeronáuticos. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024, p. 565.
[14] AP 91.0001227-0, Juiz Federal Alexandre Vidigal de Oliveira, JFMT, Data: 20/03/1997.
[15] IP 0010878-51.2011.4.05.8300, Juiz Federal Allan Endry Veras Ferreira, JFPE, Data: 19/07/2011.
[16] Diverge desses precedentes a decisão que fixou a competência criminal estadual para processar o acidente aéreo que vitimou a cantora Marília Mendonça, ocorrido durante a prestação do serviço de táxi-aéreo, quando foi determinada a manutenção do inquérito policial na esfera estadual até que algum interesse federal fosse identificado, assim, sem um maior aprofundamento do elemento de atração relativo a crimes ocorridos a bordo de aeronaves (CC n. 187.216, Ministro Antonio Saldanha Palheiro, DJe de 29.04.2022).
[17] Acidente com a aeronave PT-OKK, da empresa Apuí Táxi-Aéreo (Manaus-AM, 2013 – AP 0006397-20.2017.4.01.3200 na JFAM). Acidente com a aeronave PT-NBP, da W&J Táxi-Aéreo (Anapu-PA, 2002 – AP 2007.39.03.000637-7 na JFPA).
[18] IP 0006232-39.2014.4.03.6104 da JFSP.
[19] IP 0500010-89.2017.4.02.5111 da JFRJ.
[20] Acidente no aeroclube de Anápolis (3521-64.2014.4.01.3502 – JFGO); acidente com aeronave anfíbia na região de Anavilhas (1000687-94.2020.4.01.3200 – JFAM); acidente de aeronave privada em Almerim (1001904-69.2021.4.01.3902 – JFPA); acidente com aeronave privada em Maricá (0500797-48.2017.4.02.5102 – JFRJ).
[21] Nesse sentido, as decisões já referenciadas dos casos: GOL 1907, RICO 4815. E, também: RHC 86998, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado em 13/02/2007 e HC 85059, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado em 22/02/2005, DJ 29-04-2005.
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