Opinião

Pontes de Miranda: entre o Sistema e o Tratado

Autor

  • Jorge Henrique Anorozo Coutinho

    é advogado sócio do escritório Jorge Ponsoni Anorozo & Advogados Associados bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestrando em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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20 de agosto de 2024, 11h21

Pontes de Miranda é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores juristas do século 20, sendo responsável pela criação de diversas teorias inovadoras, ainda contemporaneamente imprescindíveis para a compreensão da ciência do direito e do Direito. As teorias desenvolvidas pelo jurista alagoano são de tamanha peculiaridade que não podem ser identificadas a algum pensador específico de sua época ou a uma escola do pensamento jurídico e/ou científico [1].

Acervo de Ivan Barros

Entretanto, há controvérsia relevante entre aqueles que analisam a obra completa de Pontes de Miranda, especificamente na identificação de uma possível ruptura epistemológica entre as bases filosóficas e científicas expostas pelo autor em seu Sistema de Ciência Positiva do Direito (1922) para com a teoria do fato jurídico desenhada no Tratado de Direito Privado (1954).

É inequívoco que no Tratado de Direito Privado, Pontes afasta-se (ainda que não rejeite) das bases naturalísticas desenhadas no Sistema de Ciência Positiva do Direito para adotar uma dimensão mais aproximada do normativismo e da dogmática jurídica [2].

Em Sistema de Ciência Positiva, Pontes de Miranda apresenta a ciência do direito como uma ciência causal descritiva, oriunda de um sociologismo implícito e explicitamente antimetafísico [3], pautada na análise dos fatos, a partir do princípio da relatividade do conhecimento objetivo [4], e pautada pelo método indutivo.

Prática e realidade

Pautado no naturalismo e no empirismo, ademais, Pontes de Miranda rejeita a separação absoluta entre os planos do ser e do dever-ser [5], tida como um dualismo espiritualista, para estabelecer que “para a ciência do direito, o que importa é o Sein, o Ser, e não o Sollen [6]. Nesse diapasão, no prefácio do Sistema de Ciência Positiva do Direito, Pontes de Miranda afirma que a ciência do direito se trata “não de deontologia, ou de especulação tendenciosa” e que “o direito tem de ser estudado nas realidades” [7].

Estabelecendo o Direito como elemento presente no plano do ser, Pontes de Miranda vê na prática e na realidade o seu objeto de estudo — característica decorrente da influência da Escola do Recife e do positivismo lógico em suas teorias — e reconhece que a ciência do direito não é axiologicamente neutra e que essa é altamente permeada por elementos históricos [8].

Em Tratado de Direito Privado, em sentido diverso, o autor parte do pressuposto da separação entre “mundo dos fatos” e “mundo do direito”, bem como ressalta a relevância da dogmática jurídica atuante de forma acrítica na busca e definição dos conceitos jurídicos.

Contradição?

Diante disso, diversos autores identificam uma contradição na obra de Pontes de Miranda [9] [10], aproximando a segunda fase de sua obra ao dogmatismo, tal qual o positivismo jurídico de Kelsen, na medida em que “ambas são teorias que usam a lógica como critério positivo, excluindo a análise de valores”  [11].

Não parece ser esta, contudo, a melhor leitura do pensamento ponteano [12]. O próprio autor, inclusive, ao elaborar a segunda edição de seu Sistema de Ciência Positiva do Direito (após a publicação do Tratado de Direito Privado), consignou que “não mudamos de opinião, e nada encontramos neste século que nos auxiliasse a corrigirmo-nos” [13].

Não se observa na construção da teoria do fato jurídico um corte epistemológico e a rejeição por parte do mestre alagoano em relação à colocação de que a ciência do direito deve se dedicar à análise dos fatos e à construção do suporte fáctico. Nesse sentido, o autor expressamente consigna que “toda eficácia jurídica é eficácia de fato jurídico; portanto da lei e do fato, e não da lei ou do fato” [14] e, ainda no prefácio do Tratado de Direito Privado:

“O sistema jurídico contém regras jurídicas; e essas se formulam com os conceitos jurídicos. Tem-se de estudar o fático, isto é, as relações humanas e os fatos, a que elas se referem, para se saber qual o suporte fáctico, isto é, aquilo sobre que elas incidem, apontado por elas. […] A missão principal do jurista é dominar o assoberbante material legislativo e jurisprudencial, que constitui o ramo do direito, sobre que disserta, sem deixar de ver e de aprofundar o que provém de outros ramos e como que perpassa por aquele, a cada momento, e o traspassa, em vários sentidos” [15].

Empirismo

No que tange à dogmática jurídica — ligada à Ciência do Direito (e não ao Direito) —, Pontes de Miranda é expresso em ressaltar que os conceitos jurídicos não são estáticos e devem corresponder aos fatos da vida, ainda quando esses fatos da vida sejam criados pelo pensamento humano [16] – retomando, assim, o empirismo de sua teoria.

Spacca

Logo, não se verifica ruptura do autor em relação ao naturalismo ou ao empirismo, o que é verificado também em sua noção de infalibilidade da incidência como “fato do mundo dos pensamentos” e de causação do mundo jurídico. Neste ponto, fortemente influenciado pelo neopositivismo lógico e à teoria do primeiro Wittgenstein, Pontes de Miranda adota a “visão da verdade como representação da realidade” [17].

Continuidade do pensamento

E, por fim, corroborando a manutenção de seus pressupostos teóricos, Pontes ressalta que a investigação do sistema jurídico deve conciliar a dogmática, a história e a letra da lei (a qual, em suas palavras, “viveu e vive lá fora” [18]). Nesse sentido, correta a colocação de Adrualdo de Lima Catão de que a continuidade do pensamento de Pontes é mais evidente do que a ruptura, especialmente quanto à ênfase sociológica, ao positivismo lógico e o enfoque na quantificação e na Lógica [19].

Inclusive, correta a anotação de Gustavo Haical e Francisco Marino que “para entender a teoria ponteana é preciso identificar, ainda que de modo pontual, as premissas com as quais construiu seu pensamento sobre o fenômeno jurídico em obras anteriores, principalmente seu Sistema de Ciência Positiva do Direito de 1922” [20].

Conclusão

Logo, ao contrário do sustentado em alguns escritos, não parecem existir dois Pontes de Miranda (um Pontes do Sistema e um Pontes do Tratado). O que se verifica, contudo, é que em Tratado de Direito Privado, Pontes de Miranda analisa o Direito sob viés distinto, mas que é complementar à compreensão e aos estudos da Ciência do Direito exposta no Sistema.

Não contradiz, portanto, os pressupostos filosóficos e científicos adotados em Sistema de Ciência Positiva do Direito, sendo que as principais conclusões lá adotadas também servem de base para a construção de sua teoria do fato jurídico: 1) o relativismo do conhecimento objetivo e a necessidade de se adotar uma perspectiva histórico-sistemática e dinâmica do Direito; 2) a ausência de segmentação entre os planos do ser e do dever-ser; e 3) a centralidade das perspectivas naturalistas e empiristas para a compreensão do Direito.

 

 


[1] CASTRO, Isabella Silveira. Por uma compreensão da teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda afinada ao pensamento integral do autor: da definição à aplicação do direito. Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, mai.-ago./2021, n.p.

[2] ALDROVANI, Andréa; SIMIONI, Rafael Lazzarotto; ENGELMANN, Wilson. Traços positivistas das teorias de Pontes de Miranda: influências do positivismo sobre Sistema de Ciência Positiva do Direito e Tratado de Direito Privado – um percurso com várias matizes teóricas. Civilistica.com, ano 4, n. 2, Rio de Janeiro, 2015, p. 19.

[3] DIVINO, Sthéfano Bruno Santos. A teoria do fato jurídico e o sistema de ciência positiva do direito de Pontes de Miranda: considerações e atualizações filosóficas. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 25, São Paulo, out.-dez./2020, p. 192.

[4] “Influenciado por Albert Einstein desenvolve o princípio da relatividade do conhecimento objetivo, segundo o qual todo o conhecimento é relativo, uma vez que obtido pela observação dos fatos, que são transitórios e variáveis conforme o tempo e o espaço. Destarte, sendo os fatos mutáveis, o conhecimento é provisório. Este princípio é transposto pelo autor alagoano as mais diversas dimensões do fenômeno jurídico” (CASTRO, Isabella Silveira. Por uma compreensão da teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda afinada ao pensamento integral do autor: da definição à aplicação do direito. Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, mai.-ago./2021, n.p.)

[5] MENEZES, Djacir. Kelsen e Pontes de Miranda. In: PRADO, Luiz Regis (coord.); KARAM, Munir (coord.). Estudos de Filosofia do Direito: uma visão integral da obra de Hans Kelsen. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 32.

[6] PONTES DE MIRANDA apud MENEZES, Djacir. Kelsen e Pontes de Miranda. In: PRADO, Luiz Regis (coord.); KARAM, Munir (coord.). Estudos de Filosofia do Direito: uma visão integral da obra de Hans Kelsen. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 34.

[7] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de Ciência Positiva do Direito. Vol. 1. Campinas: Bookseller, 2005, p. 29.

[8] ALDROVANI, Andréa; SIMIONI, Rafael Lazzarotto; ENGELMANN, Wilson. Traços positivistas das teorias de Pontes de Miranda: influências do positivismo sobre Sistema de Ciência Positiva do Direito e Tratado de Direito Privado – um percurso com várias matizes teóricas. Civilistica.com, ano 4, n. 2, Rio de Janeiro, 2015, p. 16.

[9] Nesse sentido: ALDROVANI, Andréa; SIMIONI, Rafael Lazzarotto; ENGELMANN, Wilson. Traços positivistas das teorias de Pontes de Miranda: influências do positivismo sobre Sistema de Ciência Positiva do Direito e Tratado de Direito Privado – um percurso com várias matizes teóricas. Civilistica.com, ano 4, n. 2, Rio de Janeiro, 2015, p. 20; e MENEZES, Djacir. Kelsen e Pontes de Miranda. In: PRADO, Luiz Regis (coord.); KARAM, Munir (coord.). Estudos de Filosofia do Direito: uma visão integral da obra de Hans Kelsen. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 44.

[10] “Sem dúvida, a vastíssima sistematização de Pontes de Miranda na dogmática civil, processual, constitucional, no Direito privado e no Direito público não confirma os postulados filosóficos do ‘Sistema de Ciência Positiva do Direito’. Nem confirma suas ideias básicas contidas nos ‘Capítulos Finais’ apostos na reedição cincoentenária de 1972” (VILANOVA, Lourival apud CATÃO, Adrualdo de Lima. Teoria do Fato Jurídico: uma abordagem lógica da decisão judicial. Curitiba: Juruá, 2013, p. 46).

[11] ALDROVANI, Andréa; SIMIONI, Rafael Lazzarotto; ENGELMANN, Wilson. Traços positivistas das teorias de Pontes de Miranda: influências do positivismo sobre Sistema de Ciência Positiva do Direito e Tratado de Direito Privado – um percurso com várias matizes teóricas. Civilistica.com, ano 4, n. 2, Rio de Janeiro, 2015, p. 20.

[12] Não obstante, necessário ressaltar que, na esteira de Kelsen, Pontes de Miranda diferencia Direito de Ciência do Direito (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de Ciência Positiva do Direito. Vol. 1. Campinas: Bookseller, 2005, p. 345-346)

[13] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de Ciência Positiva do Direito. Vol. 4. Campinas: Bookseller, 2005, p. 388.

[14] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Prefácio. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Campinas, Bookseller, 2000, p. 64.

[15] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Prefácio. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Campinas, Bookseller, 2000, p. 15.

[16] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Prefácio. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Campinas, Bookseller, 2000, p. 13.

[17] CATÃO, Adrualdo de Lima. Teoria do Fato Jurídico: uma abordagem lógica da decisão judicial. Curitiba: Juruá, 2013, p. 45.

[18] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Prefácio. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Campinas, Bookseller, 2000, p. 16.

[19] CATÃO, Adrualdo de Lima. Teoria do Fato Jurídico: uma abordagem lógica da decisão judicial. Curitiba: Juruá, 2013, p. 47.

[20] HAICAL, Gustavo; MEDINA, Francisco. Teoria dos fatos jurídicos no direito brasileiro: uma análise histórico-dogmática – da obra de Teixeira de Freitas ao Código Civil de 2002. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 127.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Jorge Ponsoni Anorozo & Advogados Associados, bacharel em Direito pela UFPR, mestrando em Direito das Relações Sociais pela UFPR e graduando em Ciências Contábeis pela Fipecafi.

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