Estado policialesco e pescaria probatória na recente jurisprudência do STJ
20 de agosto de 2024, 19h22
“A arte é a condensação da realidade, mostra a máquina humana sob pressão mais forte. Procura nos mostrar mais fenômenos vitais do que houve na vida que vivemos.”
Guyeau
Em A Psicologia da Arte, Vigotski (1999, p. 315) afirma que “a refundição das emoções fora de nós realiza-se por força de um sentimento social que foi objetivado, levado para fora de nós, materializado e fixado nos objetos externos da arte, que se tornaram instrumento da sociedade”. Com isso, quer afirmar a função dessa atividade essencialmente humana que é a arte, técnica social do sentimento que vai muito além de mera “imitação da vida” para tornar-se instrumento essencial através do qual o homem trabalha, significa e incorpora aspectos íntimos e pessoais à vida social, colocando em evidência sentimentos, angústias e aspectos de sua vida que compartilhará com os demais.
A partir deste marco, este artigo usa o filme A Vida dos Outros (Alemanha, 2006) para abordar o problema da pescaria probatória (fishing expedition), especificamente em relação ao recentemente decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no RMS 42.120/SP, julgado pela 6ª Turma, e no AgRg no RHC 187.335/PR, julgado pela 5ª Turma, referente à requerimentos de relatórios de inteligência financeira (RIF) diretamente pelos órgãos de persecução penal ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) sem que haja formalização de investigação por meio de inquérito policial ou procedimento investigatório criminal.
RMS 42.120/SP e Agravo Regimental no RHC 187.335/PR
A questão da pescaria probatória já apareceu por diversas vezes nos tribunais brasileiros e tradicionalmente sempre foi muito associada à discussão sobre a serendipidade, o encontro fortuito de provas, especialmente em contextos de busca e apreensão de documentos e objetos. Mas o texto aqui aos casos citados acima.
No caso levado ao tribunal no julgamento do RMS 42.120/SP, o Ministério Público Federal buscava obrigar o Coaf a fornecer relatórios quanto a saques suspeitos realizados em uma agência do Banco do Brasil. A informação quanto às operações de saque chegou ao Ministério Público através de denúncia anônima.

Por sua vez, no caso do AgRg no RHC 187.335/PR, julgado pela 5ª Turma do STJ, o Ministério Público do Paraná recebeu informações acerca de supostos crimes de lavagem de dinheiro, contra a economia popular e de organização criminosa através da formação de um esquema de pirâmide financeira. O MP então instaurou notícia de fato, diligenciou junto à CVM, que informou não possuir registro de atividades referentes ao fato em averiguação, e em seguida requereu informações ao Coaf, que forneceu RIF dos investigados. Apenas após o fornecimento dos relatórios de inteligência financeira que a notícia de fato foi convertida em procedimento investigatório criminal.
A partir desses parâmetros, a questão jurídica colocada para o STJ foi a seguinte: a existência de denúncia anônima e/ou a instauração de notícia de fato consiste em formalização de investigação que outorga ao Ministério Público a prerrogativa de requerer relatório de inteligência financeira ao Coaf?
A Vida dos Outros e o estado policialesco
Deixemos a questão em suspenso e passemos ao filme. Com o cuidado de não fazer grandes revelações sobre o roteiro, falemos apenas do contexto: trata-se de uma história passada em 1984 na então República Democrática Alemã, ou Alemanha Oriental. Nela, seguimos Gerd Wierler, um oficial da Stasi, a polícia secreta da Alemanha que é destacado para monitorar a vida do dramaturgo Georg Dreyman e sua namorada Christa-Maria Sieland.
A obra retrata o quadro de perseguição e vigilância dominante na Alemanha Oriental, especialmente na década de 1980 e próximo à reunificação alemã. De uma perspectiva mais diretamente relacionada a algumas questões atuais brasileiras, o problema que se coloca é o de um Estado policialesco, em que a mera desconfiança quanto a uma pessoa pode levar a uma devassa de sua vida pessoal.
Esse problema é frequentemente diminuído por defensores de uma postura autoritária e policialesca através de duas estratégias. A primeira delas consiste no famoso dito “quem não deve, não teme”, como se a simples invasão da privacidade, exposição midiática e etiquetamento como “criminoso” não fossem por si só deletérios. Sem nem contar os custos financeiros de contratar advogados e enfrentar uma investigação injusta, os custos pessoais são muitas vezes insuportáveis.
Nesse caso nem seria necessário recorrer à arte para ilustrar a questão, pois a própria realidade brasileira foi testemunha recente do trágico caso do reitor da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, injustamente preso no curso de uma investigação e que, massacrado pela imprensa e exposto a todo tipo de injusta acusação, cometeu suicídio 18 dias após ser levado ao cárcere.
A segunda estratégia é usar os fins para justificar os meios, caso a bisbilhotice estatal renda frutos e resulte em provas de supostos crimes. O problema, todavia, é que a reversão do caminho inerente a um Estado policialesco impede que se chegue a outra conclusão. Ao se decidir primeiro que “há algo de errado com fulano” para então investigá-lo, encontra-se apenas a resposta que já era procurada e presumida de antemão. Mais que isso, abre-se a maior margem possível para que essa resposta consista na construção artificial, unilateral e autoritária de um factoide. Vai-se da pessoa ao fato, na clássica estrutura de um direito penal de autor para eliminação de quem quer que seja visto como indesejável.
Julgamento do RMS 42.120/SP pela 6ª Turma do STJ
Feitas essas reflexões a partir do quadro fornecido pelo filme, convém então retornarmos à questão jurídica colocada para o STJ: a existência de denúncia anônima e/ou a instauração de notícia de fato consiste em formalização de investigação que outorga ao Ministério Público a prerrogativa de requerer relatório de inteligência financeira ao Coaf?
No julgamento do RMS 42.120/SP, a 6ª Turma do STJ entendeu que não há ilicitude na requisição de RIF a partir do recebimento de denúncia anônima.
É interessante que neste caso o membro do MPF oficiante junto ao STJ opinou pelo não provimento do RMS, argumentando que “a quebra do sigilo financeiro deve estar fundamentada em elementos concretos que justifiquem a prevalência do interesse público ao direito à intimidade” e, portanto, “a existência de denúncia anônima e a informação vaga obtida do Coaf, da qual não se pode extrair elemento indicador de ilicitude nas aludidas movimentações financeiras, não são circunstâncias idôneas a justificar a devassa na intimidade”.
Ainda assim, a 6ª Turma do STJ decidiu à unanimidade pelo provimento do recurso para que o Coaf fornecesse os relatórios requeridos pelo Ministério Público. O relator, ministro Rogério Schietti Cruz, afirmou expressamente que “antes do pedido de quebra de sigilo, houve diligências para apuração das informações contidas na notitia anônima e a resposta do Coaf reforçou o seu conteúdo e forneceu suporte jurídico ao pedido de acesso às movimentações financeiras”.
Essa não parece ser a melhor interpretação dada ao que foi decidido pelo STF no RE 1.055.941/SP, tampouco oferece proteção suficiente aos direitos fundamentais previstos na Constituição da República para evitar um quadro de estado policialesco como o retratado em A Vida dos Outros.
No julgamento do RE 1.055.941/SP ficou claro que o requerimento de informação ao Coaf dependia, dentre outros requisitos, da existência de investigação formal, para que não se caracterizasse a chamada pescaria probatória (fishing expedition).
O ministro Dias Toffoli ressaltou em seu voto “a absoluta e intransponível impossibilidade da geração de RIF por encomenda (fishing expedition) contra cidadãos que não estejam sob investigação criminal de qualquer natureza ou em relação aos quais não haja alerta já emitido de ofício pela unidade de inteligência com fundamento na análise de informações contidas em sua base de dados” e o ministro Alexandre de Moraes, de maneira um tanto quanto didática, destacou que “não se pode dizer: ‘UIF, investigue alguém a partir de tais dados’. Não. Mas: ‘UIF, o que você tem em relação a isso?’”.
O requerimento de informações ao Coaf a partir de mera notícia anônima, sem prévia formalização de procedimento investigatório com pessoa e objeto delimitado, é medida caracterizadora de pescaria probatória e que abre margem para o estabelecimento de um estado de vigilância perene de cidadãos.
Viviani Ghizoni Silva e Philipe Benoni Melo e Silva destacam que “o primeiro passo do fishing expedition é mascarar a ilegalidade dos procedimentos de investigação, o próximo passo é a tentativa de legitimar o ato”. O paradoxo é que, a partir da decisão no RMS 42.120/SP, essas etapas de mascaramento da ilegalidade e legitimação do ato de produção da prova consistiriam em simples formalidades, facilmente atingíveis através da mera confecção de uma denúncia anônima, que já autorizaria o acesso do Ministério Público a relatórios sobre a vida financeira de qualquer cidadão.
Bastaria a um mal-intencionado membro do MP que forjasse uma denúncia anônima para que fizesse requerimentos de RIF, situação incompatível com o modelo constitucional de processo penal no marco de um Estado democrático de Direito. Aliás, não se pode perder de memória que há poucos anos uma situação semelhante a essa tornou-se notória em um caso de grande repercussão nacional, quando um magistrado sugeriu a um membro do MPF a confecção de notícia apócrifa para justificar a oitiva de uma pessoa.
Embora se deva trabalhar com presunção de que os agentes públicos agem dentro dos limites legais — a grande maioria dos casos, diga-se —, o que torna efetivo um Estado democrático de Direito não é a crença na boa-fé de agentes públicos, mas a existência de direitos e garantias fundamentais que efetivamente protejam o cidadão do abuso do poder estatal, risco sempre presente na atuação ilícita de uma minoria.
Entendimento no julgamento do Agravo Regimental no RHC 187.335/PR
Mais recentemente, em 18/6/2024, a 5ª Turma do STJ deparou-se com a questão destacada neste trabalho e, de forma distinta da 6ª Turma do Tribunal, decidiu que não é possível a expedição de RIF em estágios tão incipientes de uma investigação como uma notícia de fato.

Embora vencidos os ministros Ribeiro Dantas e Messod Azulay Neto, que não conheceram do recurso ordinário em habeas corpus em relação a essa questão, prevaleceu o entendimento do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, acompanhado dos ministros Joel Ilan Paciornik e Daniela Teixeira e que se basearam na natureza de procedimento de averiguação preliminar da notícia de fato para afastar a possibilidade de requisição ao Coaf em seu âmbito. Nesse contexto, destacou-se inclusive a normatização do instituto da notícia de fato pelo Conselho Nacional do Ministério Público através da Resolução 174/2017, em que se dispõe que
“Art. 3º A Notícia de Fato será apreciada no prazo de 30 (trinta) dias, a contar do seu recebimento, prorrogável uma vez, fundamentadamente, por até 90 (noventa) dias.
Parágrafo único. No prazo do caput, o membro do Ministério Público poderá colher informações preliminares imprescindíveis para deliberar sobre a instauração do procedimento próprio, sendo vedada a expedição de requisições.”
Como bem afirmado pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca, a notícia de fato “tem o objetivo de checar os fatos noticiados, para que só então seja possível a instauração de uma investigação formal. Referida conclusão possui respaldo na própria impossibilidade de se expedir requisições, uma vez que os fatos noticiados estão sendo primeiramente confirmados, para só então serem formalmente investigados”.
Isso levou à conclusão de que a notícia de fato, assim como a verificação de procedência de informações, ainda que sejam instrumentos formais de averiguação preliminar de fatos, não podem ser considerados investigação formal para fins de autorizar a solicitação de informações do Ministério Público diretamente à Unidade de Inteligência Financeira.
Nesse sentido, a interpretação dada pela 5ª Turma do STJ foi extremamente feliz ao reforçar o sistema de proteção constitucional, em um entendimento que adequadamente conjuga a possibilidade de investigação de crimes com a proteção de direitos fundamentais e do próprio Estado Democrático de Direito, sem fragilizar excessiva e indevidamente estes últimos.
Conclusão
A decisão do STJ no AgRg no RHC 187.335/PR é bastante importante na consolidação de um posicionamento que torne a persecução penal brasileira mais resistente à prática de medidas de hiper-vigilância de cidadãos. A questão, porém, está longe de ser superada e ainda deve ser novamente submetida aos tribunais superiores em casos futuros.
Nesse contexto, a memória de casos recentes da própria experiência jurídica brasileira conjugada a importantes lições dadas pela arte em obras como A Vida dos Outros pode ajudar na produção de uma interpretação que seja a mais condizente com o Estado democrático de Direito e os direitos fundamentais protegidos constitucionalmente.
REFERÊNCIAS
A VIDA dos outros. Das leben der anderen. Direção: Florian Henckel von Donnersmarck. Produção: Wiedemann & Berg. Alemanha: Buena Vista International, 2006, 138 min.
SILVA, Viviani Ghizoni; MELO E SILVA, Philipe Benoni. Fishing Expedition e encontro fortuito na busca e apreensão. Florianópolis: EMais, 2019.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RMS 42.120/SP, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 25/5/2021, DJe de 31/5/2021. Acórdão disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201301076290&dt_publicacao=31/05/2021
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no RHC 187.335/PR. Relator Ministro Ribeiro Dantas, Relator para acórdão Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 18/6/2024, DJe de 28/6/2024. Acórdão disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202303359154&dt_publicacao=28/06/2024
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 1.055.941. Relator Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2019, DJe-243 de 06/10/2020. Acórdão disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755364496
VIGOTSKI, Lev Semenovitch. Psicologia da arte. Trad.: Paulo Bezerra. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
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