Consultor Jurídico

Ajuste inepto e feudos parlamentares são faces da mesma iniquidade fiscal

20 de agosto de 2024, 10h19

Por Élida Graziane Pinto

imprimir

Às vésperas do envio do projeto de lei de orçamento para 2025 (Ploa-2025), em todos os entes da federação, cabe alertar, logo de saída, que distribuir — de forma politicamente legítima e tecnicamente planejada — os ônus e bônus da ação estatal ao longo do tempo é a razão de existir das regras fiscais.

Spacca

No Brasil, tal esforço revela-se particularmente complexo. O país não consegue ordenar legitimamente prioridades por meio do planejamento, tampouco é capaz de equacionar seu conflito distributivo estrutural em relação à regressiva matriz tributária e ao opaco e ilimitado fluxo de despesas financeiras.

Por faltar concepção de futuro que mobilize as forças produtivas da economia, não há desenvolvimento socioeconômico que permita superar os impasses de curto prazo. A desigualdade agrava o caos orçamentário e é por ele acirrada, sobretudo porque a riqueza subtributada encontra remuneração muito segura, opaca e alta na dívida pública, enquanto são prometidos ajustes seletiva e primordialmente direcionados à contenção das despesas primárias.

Imersos em uma tensão dialética, planejar e controlar deveriam ser desafios complementares da dinâmica orçamentária. Em um cenário ideal e distante da práxis brasileira, a avaliação dos erros e irregularidades do ciclo passado deveria permitir a aprendizagem e o aprimoramento para a próxima etapa.

Enquanto o Executivo primordialmente deveria planejar e implementar o planejado, o Legislativo deveria se destacar pela capacidade de impor limites e cobrar resultados ao longo dos processos de elaboração e execução das leis orçamentárias, fiscalizando integradamente as contas e as políticas públicas.

Entre o ideal e o real, porém, vai uma longa e quase intransponível distância. A interdição fiscal a que seja planejado o futuro comum da nossa vida em sociedade invisibiliza e naturaliza a extrema concentração de renda no topo. Para que não haja uma reflexão sobre as opções de arrecadação e sobre as despesas financeiras, o foco das regras fiscais brasileiras foi reduzido apenas à tentativa de conter o tamanho do Estado, reduzindo-o proporcionalmente ao longo do tempo.

O produto almejado tem sido o estreitamento não só financeiro-orçamentário, mas sobretudo temporal das políticas públicas. Regras rígidas e ineptas de limitação fiscal impostas à ação governamental são, nesse contexto, duplamente estratégicas, porque deslocam o conflito distributivo da sociedade primordialmente para o elenco de despesas primárias, assim como porque permitem ao Congresso absorver o poder político primordial de liberar exceções, a conta-gotas, mediante alterações curtas e contingentes à Constituição.

Restrições fiscais lineares têm incidido majoritariamente sobre despesas primárias, como fortes inibidoras do tamanho do Estado, sem que haja qualquer reflexão sistêmica sobre o caráter ilimitado e opaco das despesas financeiras. Tais regras implicitamente visam mitigar que se adense a pressão por arrecadação tributária proporcional à capacidade contributiva dos mais abastados e resguardam também que o mercado possa se manter como a via preferencial de oferta de bens e serviços, independentemente do quão essenciais sejam eles.

Como efeito colateral, o teto de despesas primárias e o novo arcabouço fiscal acabaram, direta ou indiretamente, operando como forte indutores do trato balcanizado dos recursos públicos no ciclo orçamentário, já que empoderaram a dimensão curto-prazista dos parlamentares em detrimento do planejamento de médio e longo prazos, institucionalmente sob responsabilidade do Executivo.

Não deixa de ser irônico que o montante destinado às emendas parlamentares no orçamento federal de 2024 e nas projeções das diretrizes orçamentárias de 2025 (PLDO-2025) — de aproximadamente R$50 bilhões R$ 50 bilhões — seja tão próximo ao quanto o Banco Central (em suas estatísticas fiscais  disponíveis aqui) estima ser repercussão de uma eventual redução de 1% (um ponto porcentual) na taxa Selic sobre a dívida líquida do setor público — R$51,1 bilhões:

 

André Lara Resende, ao questionar recentemente o sequestro da imaginação na agenda pública brasileira o sequestro da imaginação na agenda pública brasileira, evidenciou as várias camadas de captura do entendimento acerca do nosso impasse fiscal:

“Enquanto a austeridade exige corte de despesas e aumento da carga tributária para viabilizar um superávit primário, a política monetária fica livre para elevar os juros e impor um alto custo fiscal ao país. Sob pretexto de financiar um déficit fiscal cuja origem é exatamente a política de juros, o BC fica autorizado a manter os juros altos.

[…] A tecnocracia opera o Estado nas áreas vitais, inclusive e primordialmente as finanças e o Banco Central, enquanto as demais áreas do executivo, “não vitais”, são repartidas entre representantes das forças de captura de renda do Legislativo, do Judiciário e da sociedade. Uma condição que se defende como necessária para a governabilidade, num presidencialismo de coalizão sem verdadeiros partidos políticos.”

Nesse contexto tão extrativista, é natural que os parlamentares busquem defender — com todas as suas forças — a continuidade do arranjo das suas emendas ao orçamento (quiçá como se fossem seus feudos fiscais), a despeito das decisões prolatadas pela Suprema Corte do país. Do mesmo modo, os que se beneficiam da alta taxa de juros começaram, nos últimos dias, a pautar suposta necessidade de elevação da taxa Selic de 10,5% para até 11,75% ainda neste ano de 2024.

Muito embora o custo anual das emendas parlamentares ao orçamento federal de 2024 seja quase o mesmo da alteração de 1% na taxa Selic, essa pressão pela elevação dos juros básicos, porém, não é trazida à tona como alvo carecedor de ajuste ou correção de rumos.

Ao fim e ao cabo, ambas as demandas são faces da mesma moeda. Os que se beneficiam de tal iníquo estado de coisas tendem a não abdicar das enviesadas e ineptas regras que lhes favorecem, precisamente porque almejam manter esse instrumento poderoso de arbitragem da desigualdade no seio do orçamento e da dívida pública brasileira.