Direito Aduaneiro

Aduana como ator chave dos Jogos Olímpicos

Autor

  • Fernanda Kotzias

    é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

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20 de agosto de 2024, 9h22

As Olimpíadas de 2024 terminaram há cerca de uma semana. Independente do quanto gostamos de esportes, é difícil ficar indiferente e não acompanhar, mesmo que de longe, a programação e os desdobramentos deste grande evento.

Spacca

Para além dos jogos e do desempenho dos atletas, chama a atenção a magnitude da organização. Afinal, os Jogos Olímpicos de Paris, tiveram números expressivos. Foram 19 dias de competição, envolvendo 10.500 atletas, 32 esportes, 754 sessões (entre competição e cerimônias) e 329 eventos. [1]

Para garantir a cobertura e o desenvolvimento desses acontecimentos, tinha-se 20 mil jornalistas credenciados, 45 mil  voluntários, mais de 200 Comitês Olímpicos Nacionais e cerca de 85 patrocinadores oficiais. Trata-se de um espetáculo de grandes proporções e que necessita, além de vultosos investimentos, de uma organização altamente complexa e precisa.

Muito se debate sobre os ganhos econômicos que eventos como este trazem para o turismo e os negócios locais, bem como, sobre os investimentos em infraestrutura.

A despeito da relevância desses temas, uma das frentes de organização mais desafiadoras e menos explorada é, certamente, a aduaneira. Afinal, atletas, comitês, veículos de comunicação e patrocinadores precisaram cruzar as fronteiras da França para chegar à Paris e trouxeram consigo uma vasta quantidade e diversidade de itens, que vão desde equipamentos de transmissão até animais vivos.

Como é de se imaginar, caso todos os itens precisassem passar pela tramitação normal de importação e exportação — em termos burocráticos, regulatórios e tributários — dificilmente as Olimpíadas conseguiriam resistir até os dias de hoje.

Assim, parte fundamental da perpetuação deste evento, cuja ocorrência em termos “modernos” já conta com 33 edições, reside na criação e manutenção de regras e procedimentos aduaneiros especiais para amparar a organização dos jogos e garantir a entrada e saída de pessoas e equipamentos de forma simplificada.

Mas afinal, que regras aduaneiras são essas?

Procedimentos aduaneiros especiais

Considerando, de um lado, a notória soberania dos estados em controlarem suas fronteiras no que se refere ao fluxo de bens e pessoas e, de outro, das peculiaridades que eventos de grande porte como os jogos olímpicos trazem, verifica-se a necessidade de que regras especiais sejam criadas e aplicadas.

Ainda que cada país sede tenha discricionariedade para propor e aplicar as regras de forma específica e que faça sentido dentro do contexto jurídico e fiscalizatório vigente, existem muitas características e regras comuns e que costumam ser reproduzidas em quase todas as edições do evento.

Talvez os principais exemplos dessas regras comuns seja a utilização de regimes aduaneiros especiais de bagagem de viajante [2] e de admissão temporária.

Ainda que esses dois regimes sejam aplicados a uma extensa gama de situações e que sejam utilizados de forma contínua nas rotinas aduaneiras, para fins de grandes eventos, é comum que estes sejam aprimorados e alargados para que abarquem situações específicas e possam ser aplicados a um maior número de sujeitos e de bens.

No caso da admissão temporária por exemplo, tem-se na legislação pátria a previsão de aplicação do regime como forma de permitir a importação de bens que devam permanecer no País durante prazo fixado, com suspensão do pagamento dos tributos incidentes, sob a condição de que sejam importados em caráter temporário e sem cobertura cambial. [3]

No entanto, por ocasião dos jogos olímpicos sediados pelo Brasil em 2016 — e seguindo o que já havia sido realizado em outros países sede do evento anteriormente — houve o alargamento das hipóteses de aplicação do regime, bem como a dispensa de certos procedimentos e obrigações acessórias, como a necessidade de apresentação de contrato entre importador e fornecedor estrangeiro, ou mesmo, da exigência de que o importador fosse pessoa jurídica devidamente constituída no país e com CNPJ ativo.

No caso da bagagem de viajante, seja ela acompanhada ou desacompanhada, também se verificam acomodações e simplificações.

O conceito tradicional de bagagem engloba “os bens novos ou usados que um viajante, em compatibilidade com as circunstâncias de sua viagem, puder destinar para seu uso ou consumo pessoal, bem como para presentear, sempre que, pela sua quantidade, natureza ou variedade, não permitirem presumir importação com fins comerciais ou industriais”. [4]

Não obstante, na maior parte dos guias aduaneiros de jogos olímpicos tem-se a possibilidade de admissão de “bagagem coletiva”, por meio da qual é possível que equipes e comitês esportivos declarem e transportem a bagagem de forma concentrada, sem que haja a necessidade de que cada atleta individualmente transporte e submeta declarações sobre seus equipamentos e pertences.

Ainda sobre bagagem, no contexto desses eventos, acaba sendo autorizada a importação de bens em quantidades maiores do que esperadas para consumo individual, uma vez que se trata de equipes esportivas que devem ter acesso a suprimentos independente das circunstâncias.

Além das flexibilizações de regimes aduaneiros, verifica-se que o controle de fronteira para fins regulatórios também é adaptado, já que diversos itens utilizados nas práticas esportivas e nos eventos correlatos dependem, em teoria, de licenças e autorização de importação.

Cabe lembrar que diversas modalidades esportivas pertencentes aos jogos olímpicos demandam o uso bens controlados, como as armas de fogo para o tiro esportivo e os cavalos para o hipismo – sendo que estes últimos ainda exigem alimentação e medicamentos específicos que também costumam ser importados. Além disso, as equipes ainda demandam equipamentos e medicamentos para tratamento de atletas, os quais nem sempre estão em linha com as práticas e liberações comerciais do país sede.

Se aplicadas de modo padrão, as exigências regulatórias — incluindo os tempos de homologação e autorização — provavelmente inviabilizariam a participação de atletas ou mesmo de certos esportes, de modo que a adaptação e a relevação de procedimentos e exigências aduaneiras é questão chave para o sucesso desse tipo de evento.

A título de curiosidade, discorremos a seguir sobre algumas peculiaridades verificadas nas regras e nos guias aduaneiros implementados no Brasil, por ocasião das Olimpíadas do Rio 2016, e na França, para as Olimpíadas de Paris 2024.

Rio 2016

Rio 2016

Como mencionado, devido às individualidades de cada ordenamento jurídico aduaneiro, cada edição dos jogos conta com regimes e adaptações específicas de regras e procedimentos relacionados à importação e à exportação para permitir a realização dos eventos. Outro fator que também influencia no desenho dessas medidas são os interesses nacionais do país sede e o contexto em que o mesmo está inserido.

No caso do Brasil, por exemplo, por ocasião da realização das Olimpíadas em 2016, publicou-se a Lei n 12.780/2013, que tratava tanto de desonerações tributárias em geral, quanto de outros procedimentos a nível tributário e aduaneiro.

Dentre as medidas relevantes, destaca-se a possibilidade de importação por meio de operador logístico em nome de pessoa jurídica não estabelecida no Brasil, tanto para empresas privadas que atuaram como patrocinadoras ou prestadoras de serviço, quanto para federações desportivas e outras entidades sem fins lucrativos envolvidas no evento.

Outro ponto relevante à época foi a disponibilização de despacho antecipado, situação que hoje é uma realidade para determinadas empresas brasileiras, mas que em 2016 foi visto como uma grande inovação.

As normas emanadas pela Administração Federal também afastaram a cobrança da taxa Siscomex e de taxas para licenciamento de importação — como no caso do Exército e da Anvisa — e permitiram que muitos bens que, via de regra, estão sujeitos a homologação e licenciamento tivessem este tipo de procedimento afastado. Como no caso da dispensa concedida pela Anvisa para alimentos, medicamentos, cosméticos, perfumes e materiais médicos importados para uso exclusivo das delegações.

No caso das bagagens, houve tanto a permissão para a utilização da modalidade de bagagem coletiva quanto a relativização dos limites de valor para remessas internacionais, de modo a permitir que equipamentos e outros itens necessários pudessem ser trazidos de modo simplificado e sem a necessidade de registro de declaração de importação.

Por fim, no que se refere à destinação dos itens importados após o término dos jogos, além das tradicionais possibilidades de reexportação, nacionalização e destruição, autorizou-se também a doação dos itens importados à União ou a entidades de assistência social e a entidades sem fins lucrativos voltadas a promoção e à prática de esporte, ao desenvolvimento social, à proteção ambiental ou à assistência a crianças.

Este último ponto foi particularmente relevante, visto que não se trata de medida comumente observada em normas aduaneiras voltadas a eventos, mas que, na prática, permitiu a doação de alimentos e, principalmente, equipamentos a muitas instituições no país. Na qualidade de advogada, tive a oportunidade de auxiliar algumas empresas estrangeiras na destinação de equipamentos após o fim dos jogos olímpicos e pude testemunhar que o processo, de fato, teve impactos sociais muito positivos.

Paris 2024

Avaliando o guia aduaneiro que amparou os jogos olímpicos deste ano, verifica-se um contexto e regras bastante distintas do que se aplicou no Brasil.

Paris 2024

Isso se deve, primeiramente, pelo fato de que a França é parte da União Europeia (UE), condição que a inclui em um mercado comum e cujas regras afetam diretamente suas políticas e regras de comércio exterior.  Consequentemente, ao dispor sobre as normas e flexibilizações referentes à importação e à exportação de bens para as Olimpíadas, fez-se necessário tratar todos os temas sob duas óticas: a dos demais membros da UE e a dos terceiros países.

Dentre os principais dispositivos aduaneiros especialmente designados aos jogos, chamam a atenção os pontos destacados a seguir.

O primeiro refere-se às modalidades de extinção da admissão temporária. Diferentemente do que se verificou no Brasil, os bens não consumidos durante os eventos precisarão ser reexportados ou doados, não havendo possibilidade de destruição ou nacionalização para consumo ou revenda.

O segundo ponto foi a criação da figura de um “integrador logístico” para gerenciar todas as formalidades alfandegárias e logísticas referentes às importações e às exportações de bens sob o regime especial das Olimpíadas. Além de ser algo novo, chama a atenção o fato de que a competência foi atribuída a uma entidade privada, o grupo empresarial francês CMA CGM, atuante na área de transporte e logística internacional.

Por fim, verificou-se que a flexibilização de controles regulatórios foi feita de forma bastante peculiar, a exemplo da admissão de cavalos estrangeiros, cujas autorizações foram concedidas apenas a uma lista específica de países e, ainda, com possibilidade de restrições regionais. No caso do Brasil, por exemplo, só estavam autorizados a ingressar na França os cavalos para hipismo provenientes dos estados do Paraná e do Rio de Janeiro.

Olimpíadas de Inverno Rússia 2014

Por fim, cabe trazer um exemplo mais antigo, mas que contém exemplo do que ocorre quando as regras aduaneiras não são ajustadas à facilitação de eventos internacionais.

Durante a Olimpíada de Inverno de 2014, sediada na Rússia, houve um incidente político de grandes proporções devido a obstáculos impostos pela Aduana russa à entrada de produtos fornecidos por patrocinadores americanos voltados ao consumo do comitê olímpico dos Estados Unidos, em especial, de iogurte.

A questão que, em teoria, se restringia a possibilidade ou não de autorização sanitária, acabou repercutindo a nível político, e o chamado “yogurt ban” escalou para tensões e discussões muito maiores, incluindo o Departamento de Agricultura americano e as embaixadas de ambos os países, além de estampar as manchetes dos principais veículos de comunicação internacionais.

O caso ilustra como a ausência de regras aduaneiras claras e previamente estruturadas para amparar esse tipo de evento pode trazer prejuízos e conflitos. Afinal, é praxe que o país sede dos jogos olímpicos flexibilize suas regras aduaneiras para acomodar seus convidados, mas a história mostra que o grau de flexibilização e a forma de funcionamento é altamente discricionária.

Assim, aos interessados e estudiosos do comércio exterior, resta a tarefa de, a cada quatro anos, estudar e desvendar as regras aplicáveis de modo a garantir que esse “universo aduaneiro paralelo” seja navegável.

Por hora, nos resta aguardar pela publicação do guia aduaneiro que norteará as regras dos próximos Jogos Olímpicos, que ocorrerão em 2028 na cidade americana de Los Angeles, e torcer pelo bom desempenho esportivo da equipe brasileira.

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[1] Informações oficiais obtidas no sítio dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 (aqui)

[2] Aqui tratamos a bagagem na condição de regime aduaneiro especial tendo em vista se tratar de procedimento específico e simplificado, no qual se aplicam isenções e suspensões não aplicadas em outros casos. No entanto, cabe a ressalva de que, a depender do sistema jurídico avaliado, a bagagem pode ou não ser assim designada, ainda que esta designação não seja relevante para o tema aqui discutido ou para os fins explorados no presente artigo.

[3] Conforme consta do art. 75 do Decreto-Lei nº 37, de 1966 e do art. 354 do Decreto nº 6.759, de 2009.

[4] Redação do inciso I do at. 155 do Regulamento Aduaneiro.

Autores

  • é sócia do Veirano Advogados, doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada e consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e ex-conselheira titular do Carf.

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