PL 1.829 fomenta turismo e transporte aéreo com retrocessos ao consumidor
19 de agosto de 2024, 12h13
O incremento do turismo e do transporte aéreo constitui o principal argumento arregimentador do Projeto de Lei nº 1.829, iniciado em 2019, no âmbito do Senado e, hodiernamente, em trâmite na Câmara dos Deputados. No entanto, dentre os diversos dispositivos normativos que pretende o legislador alterar ou implementar, sob o pretexto de modernização dos aludidos setores, nota-se, de forma escusa, a presença de regras que vilipendiam o microssistema consumerista e o Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Utilizando-se da justificativa de que o prospecto normativo tenciona concretizar inovações benéficas nas leis 11.771/08 e 7.565/86 [1], que tratam, respectivamente, da Política Nacional de Turismo e do Código Brasileiro de Aeronáutica, sutilmente, o setor econômico pressiona para prever regras que transgridem as prerrogativas asseguradas aos destinatários finais, desconsiderando-se até mesmo os hipervulneráveis.
Ameaças, constantes no sobredito PL, foram objeto de questionamentos por parte do Brasilcon (Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor), conforme artigo nesta ConJur de autoria do seu atual presidente, Fernando Martins, em parceria com Maria Luiza Targa.
Importantes violações restaram apontadas no que concerne à: i) proposta de inserção do artigo 251-B no CBA, prevendo-se entraves para o reconhecimento do dano moral na prestação do transporte aéreo; 2) introdução do parágrafo 3º no artigo 45 do referido estatuto, dispensando-se o seu cumprimento quanto às edificações existentes que apresentem risco estrutural para a necessária reforma; e 3) “mitigação do processo legislativo democrático”, eis que as entidades consumeristas não foram ouvidas em sua maioria [2].
Além destas involuções, vislumbra-se, explicitamente, que existem outras aviltantes, que serão objeto de exame na presente coluna, para fins de se realçar que a proposta legislativa, valendo-se da alegação de fomentar tais searas, aproveita-se do ensejo para ceder às pressões dos agentes econômicos, desconsiderando-se o direito fundamental do consumidor [3].
Benefícios para o empreendedor, retrocessos para o consumidor
No emaranhado de normas presentes no citado projeto, observa-se que, na realidade, muito pouco se avança para a melhoria do turismo e do transporte aéreo em prol dos usuários, mas, sim, flagrantemente, almeja-se conceder benefícios para os empreendedores do setor. Corrobora-se a assertiva de que o objetivo precípuo do PL é atender aos conclames dos fornecedores com esteio em três principais argumentos:
1) as alterações na Lei nº 11.771/08 ampliam o conceito de turismo, adequando-o à realidade, porém, em contrapartida, contemplam amplos benefícios financeiros para o setor;
2) cria-se o Mapa do Turismo, mas, pari passu, não se nobilita o devido respeito à identidade cultural da população, ou seja, valoriza-se o resultado econômico em detrimento da coletividade;
3) implementa-se o apoio financeiro reembolsável mediante concessão de empréstimo aos prestadores de serviços aéreos regulares.
Em complemento, são detectados quatro conjuntos de normas que também se coadunam com os influxos do empresariado e que colidem diretamente com a defesa dos consumidores [4], violando-a, quais sejam:
1) a mitigação da responsabilidade solidária e objetiva dos prestadores de serviços dos mencionados setores;
2) a previsão de tarifas aeroportuárias para estimular o turismo sem considerar os altos encargos repassados para os usuários, eliminando-se o incentivo a programas de descontos e de facilitações;
3) a desconsideração da hipervulnerabilidade da criança e do adolescente no ambiente do turismo, eis que minora a responsabilidade dos agentes econômicos quanto à exploração sexual de crianças; e amplia as possibilidade de hospedagem de menores desacompanhados dos genitores;
4) a ausência de previsão de que o registro dos dados dos hóspedes deve atender à Lei nº 13.709/2018; e
5) amenização das penalidades impostas aos fornecedores.
O turismo passa a ser conceituado como um fenômeno social, cultural e econômico, mantendo-se as demais definições do artigo 2º da Lei nº 11.771/08, agregando-se também o comparecimento a eventos, não se restringindo às finalidades de lazer e negócios por período inferior a um ano. Alarga-se a concepção sobre os prestadores de serviços neste ramo, para acoplar os microempreendedores individuais, as empresas individuais de responsabilidade limitada, as associações privadas, os produtores rurais e agricultores.
Quanto aos meios de hospedagens, passam a englobar os alojamentos em unidades de frequência coletiva, não se cingindo, como outrora, aos de natureza individual. Os cruzeiros aquaviários e os parques temáticos são objetos de detalhamento no bojo do projeto de lei em análise, especificando-se as suas características [5]. Entrementes, os aportes financeiros em benefício do setor e do transporte aéreo são traços marcantes no PL, como se pode depreender pela análise do quanto, a seguir, exposto.
Digna de repúdio é a exclusão do objetivo de “preservar a identidade cultural das comunidades e populações tradicionais eventualmente afetadas pela atividade turística”, consoante disposto no 5º, inciso IX, da Lei nº 11.771/08, prevendo-se apenas o estímulo para a sua participação e o seu envolvimento com tal desiderato. Ora, sobrepujam-se os interesses do povo brasileiro em benefício das pressões econômicas, que, sem quaisquer ilações, corresponde à versus ratio da proposta legislativa. Nessa senda, a novidade inerente à criação do Mapa do Turismo Brasileiro, mediante a inserção do artigo 13-A, parágrafos 1º a 10, não contempla, o respeito às coletividades tradicionais.
No inciso XVII, daquele mesmo dispositivo, são enaltecidas “a melhoria do ambiente dos negócios, a inovação e a desburocratização”, que, inquestionavelmente, são fatores cruciais para o desenvolvimento. Sem embargo, identifica-se elevada contribuição econômica para o setor e a ausência de efetivas vantagens para a coletividade, visto que, além dos mencionados possíveis empréstimos, destaca-se a destinação de 70% do Fundo Nacional de Aviação Civil para melhorias nos aeródromos públicos, mantendo-se a destinação de 30% para o incremento do turismo [6].
Contradição com o CDC
A responsabilidade objetiva e solidária dos fornecedores de produtos e serviços consiste premissa normativa basilar do microssistema consumerista, nos termos dos artigos 7º, parágrafo único, e 25, parágrafo 1º, da Lei nº 8.078/90 [7]. Em total contradição com os ditames do CDC, o PL pretende isentar os meios de hospedagens nas hipóteses de:
1) falência ou recuperação judicial do intermediador da reserva antes do repasse dos recursos; ou 2) culpa exclusiva deste, desde que não tenha havido o proveito econômico dos gestores da estadia [8].
Quanto às agências de turismo, objetiva-se limitar a sua responsabilidade ao proveito econômico obtido, bem como eliminá-la diante dos mesmos fatores, acima, elencados [9]. Outrossim, outra regra que suscita readequação é a possibilidade de serem impostas tarifas aeroportuárias sem a ressalva de que não podem atentar contra o princípio do equilíbrio contratual e engendrar vantagem exagerada em prejuízo dos consumidores [10].
Em nenhum dos dispositivos do PL há uma preocupação com os hipossuficientes, visto que a parte final do inciso V do artigo 6º, da Lei nº 11.771/08 — que preconizava o “incentivo a programas de descontos e facilitação de deslocamentos, hospedagem e fruição dos produtos turísticos em geral” — fora lamentavelmente extirpada.
Hipervulneráveis e cancelamento de cadastro
Crianças e adolescentes são seres que, dada a sua compleição física e psíquica, merecem atenção especial, sendo, pois, consumidores qualificados como hipervulneráveis [11]. Importantíssimo chamar a atenção sobre o dever de toda a sociedade e não somente do poder público de zelar pelos interesses e direitos dos infantes e jovens, mas não é o que se visualiza no PL em epígrafe.
Isso porque, no artigo 5º, inciso X, da Lei nº 11.771/08, constava, dentre os vetores da Política Nacional de Turismo, “prevenir e combater” as atividades turísticas relacionadas aos abusos sexuais e outras que afetem a dignidade humana, sendo proposta a sua substituição por “apoiar a prevenção e o enfrentamento da exploração sexual”, mencionando-se crianças e adolescentes.
O uso do termo “apoiar” esmaece a responsabilidade dos fornecedores dos produtos e serviços turísticos, competindo-lhes não apenas auxiliar, mas, sim, envidar todos os esforços possíveis para não admitir práticas nefastas desta natureza.
Outra regra dissonante do princípio do melhor interesse dos menores é a que possibilita a sua hospedagem com ascendente ou colateral maior, até o terceiro grau, comprovado documentalmente o parentesco [12]. São regras que podem ensejar o descumprimento do ECA, visto que não se exige a comprovação de que os genitores encontram-se de acordo com o traslado e a hospedagem da criança e do adolescente na companhia de outros parentes.
O registro de dados sobre os hóspedes encontra-se sediado no projeto de lei mediante as alterações propostas no artigo 26, incisos I e II, parágrafo 1º a 3º, da Lei do Turismo, sem haver menção expressa ao imperioso e obrigatório cumprimento da LGPD, resumindo-se à menção da privacidade e intimidade dos usuários.
Por derradeiro, o PL abranda a penalidade intitulada de cancelamento de cadastro para os fornecedores que descumpram a legislação sobre turismo, somente admitindo-a por ordem judicial, exceto quando os serviços prestados forem estranhos à atividade turística.
A dita sanção, considerada a mais severa, é retirada da órbita administrativa dos órgãos públicos fiscalizadores, reservando-a, em regra, ao aparato judicial; o que desvela nítida coesão com as artimanhas mercadológicas e o dissenso com o princípio da intervenção estatal que rege as relações de consumo. Conclui-se que os retrocessos desfavoráveis aos consumidores não se circunscrevem unicamente às pessoas com deficiência e ao dano moral no transporte aéreo.
Dúvidas não pairam no sentido de que admitir hospedagens em descompasso com o artigo 45 da Lei nº 14.146/15, sob o manto da impossibilidade técnica e dos riscos estruturais, é concordar com a negativa de gastos pelos empreendedores para atenderem àqueles hipervulneráveis. É contraditar o quanto disposto pelo artigo 6º, inciso V, da própria Lei nº 11.771/08, que obriga o respeito aos segmentos especiais, aludindo às PCDs.
Ademais, a responsabilidade por danos ocorridos na execução do contrato de transporte aéreo é regida pelo Código de Defesa do Consumidor e denota-se in re ipsa, sendo inconcebível exigir que o usuário comprove o prejuízo, eis que a inversão probatória contra o destinatário final é vedada pelo artigo 51, inciso VI, do CDC [13]. Os despautérios, examinados nas linhas precedentes, exigem que os órgãos públicos e as entidades encarregadas da defesa dos consumidores atuem de modo profícuo para que alterações legislativas maléficas não sejam acatadas.
* esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
[1] O PL destina-se adrede à alteração das Leis 7.064/82, nº 12.462/11 e 13.097/15; e revoga o Decreto-Lei nº 1.439/75 e a Lei nº 6.513/77.
[2] MARTINS, Fernando Rodrigues.; TARGA, Maria Luzia Baillo. Desburocratização do turismo não pode atentar contra direito de passageiro PCD. Revista Consultor Jurídico, Coluna Garantias de Consumo, 5 de agosto de 2024.
[3] Cf.: MARQUES, Claudia Lima. Introdução ao Direito do Consumidor. In: BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcellos; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 9. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 39-64.
[4] Sobre a proteção dos consumidores, examinar: PAISANT, G. Droit de la consommation. Paris: Presses Universitaires de France – P.U.F, 2019, p. 65. BARENGHI, Andrea. Diritto dei Consumatori. Milano: Wolters Kluwer, 2018, p. 135-164. BÜLOW, P.; ARTZ, M. Verbraucherprivatrecht. 6. Auflage. Heidelberg: C.F. Müller GmbH, 2018, p. 169-186.
[5] Examinar os arts. 27, parágrafo 10, e 31.
[6] Conferir a proposta de alteração do art. 63-B da Lei n.º 12.462/11,
[7] Cf.: MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 283-318.
[8] Redação proposta para o art. 23, parágrafo 8º, incisos I e II, da Lei do Turismo.
[9] Conferir o art. 27, parágrafos 9º e 10.
[10] Cf.: RAYMOND, Guy. Droit de la Consommation. 5. ed. Paris: LexisNexis, 2019, p. 343-356. LE GAC-PECH, S. Droit de la consommation. Paris: Dalloz, 2017, p. 101-111.
[11] Cf.: BAZIN-BEUST, D. Droit de la consommation. 3. ed. FAC Universités/Mementos LMD, 2018, p. 27-31. PELLIER, J.-D. Droit de la consommation. 2. ed. Paris: Dalloz, 2019, p. 45-55. PICOD Y. Droit de la consommation. 4. ed. Paris : Sirey, 2018, p. 67-77.
[12] Examinar o art. 23-A do PL.
[13] Cf.: MARQUES, Claudia Lima. Comentários aos arts. 51 a 54 do CDC. In: MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 1071-1187.
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