Solidariedade e divisibilidade das obrigações nos acordos civis em tutela coletiva
18 de agosto de 2024, 7h02
A dúvida que motiva esta reflexão pode ser assim apresentada: é possível acordo parcial de reparação de danos ao erário, em sede de tutela coletiva, em face da pluralidade de responsáveis? Em caso positivo, em que termos deve o acordo ocorrer?

O esforço no sentido da consensualidade é uma das linhas fundamentais do direito brasileiro contemporâneo, cujos sinais são vistos no processo penal (transação penal e suspensão condicional do processo [Lei 9.099/95]; colaboração premiada [Lei 12.850/2013]; acordo de não persecução penal [artigo 28-A e ss. do CPP, cf. Lei 13.694/2019]; são alguns exemplos).
Também na tutela coletiva (termo de ajustamento de conduta [Lei 7.347/85]; acordo de leniência [Lei “Anticorrupção — Lei 12.846/2013; Lei da Defesa da Concorrência — Lei 12.529/2011]; acordo de não persecução cível [Lei 8.429/92]).
A mesma tendência se verifica no processo civil de modo geral, considerando, a partir do texto do CPC-15, a ampliação das hipóteses de convenções típicas (eleição de foro, inversão do ônus da prova, escolha consensual de perito, calendário processual e saneamento consensual) e a previsão da chamada “cláusula geral de consensualidade” (artigo 190 do CPC-15).
As soluções consensuais produzem efeitos jurídicos imediatos, solucionando o conflito.
Além disso, apresentam maior potencial de efetividade e cumprimento, por serem fruto do ajuste de vontades, o que não ocorre nas soluções adjudicadas (impostas).
Há ainda outras vantagens, frequentemente apontadas pela doutrina.
Contribuem para a redução da litigiosidade (diminuição do “Caseload” a ser enfrentado pelos órgãos judiciais). Representam a superação de uma crise, tanto sob a perspectiva das pessoas físicas, como das pessoas jurídicas. Há também o fator econômico, presente nas atividades empresariais: litígios são, em regra, fonte de insegurança, desconfiança, bloqueando ou, quando menos, limitando as possibilidades de expansão de atividades por parte das empresas.
No que se refere aos acordos feitos em procedimentos ou processos com finalidade punitiva (civil ou penal), há ainda uma vantagem adicional, atrelada ao aspecto funcional-processual: por meio dos acordos é possível, frequentemente, obter elementos probatórios adicionais (colaboração por parte do sujeito que subscreve o acordo) direcionados ao esclarecimento completo do caso, apuração da responsabilidade de outros sujeitos, localização de bens, reparação de danos, interrupção de prática continuada, recuperação de valores etc.
Há limites aos acordos
Pensando nos casos relativos à tutela coletiva, necessário lembrar que os legitimados coletivos são substitutos processuais, não são titulares dos direitos.
Há para eles, portanto, disponibilidade processual (fazer acordos quanto à forma, modo e prazo de cumprimento da obrigação), mas não material. O direito material é indisponível.
É por isso que o artigo 5º, § 6º da Lei 7.347/85 faz referência à possibilidade de se tomar dos interessados “compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais”. Não autoriza, a previsão, a transação quanto ao cumprimento das exigências legais. O acordo é apenas quanto ao modo, forma e prazo de cumprimento, não quanto ao cumprimento em si mesmo.
Pela mesma razão, o artigo 17-B, I da Lei 8.429/92 (red. Lei 14.230/2021) condiciona o acordo de não persecução cível ao “integral ressarcimento do dano”.
Portanto, a indisponibilidade do direito material, no plano da tutela coletiva, autoriza, nos acordos, a submissão do responsável à exigência legal. Não autoriza a transação quanto a esta, ou mesmo a renúncia a ela.
Outro aspecto do problema envolve a noção de divisibilidade da obrigação, que é uma característica objetiva a ela relativa (inerente ao seu objeto).
O artigo 258 do CC-2002, nesse passo, prevê que a obrigação “é indivisível quando a prestação tem por objeto uma coisa ou um fato não suscetíveis de divisão, por sua natureza, por motivo de ordem econômica ou dada a razão determinante do negócio jurídico”.
Por outro lado, segundo o artigo 263 do CC-2002, “perde a qualidade de indivisível a obrigação que se resolver em perdas e danos”.
É intuitivo, portanto, que a obrigação de reparar danos é divisível, inexistindo, sob tal perspectiva, obstáculo à realização de acordo com um ou alguns dos investigados, nos casos em que os atos ilícitos, que ocasionaram perdas ao erário, tenham sido praticados por mais de um agente ou sujeito responsável.
Há outro aspecto a considerar. É a solidariedade, que deve ser compreendida como característica subjetiva da obrigação (inerente aos sujeitos).
Nos termos da disciplina geral, contida no artigo 264 do CC-2002, há solidariedade quando para a “mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda”.
Por outro viés, nos moldes do artigo 265 do CC-2002, a solidariedade “não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.”
Necessário anotar, em acréscimo, que sendo uma referência de ordem subjetiva (quanto aos sujeitos da obrigação), a solidariedade, se ativa (entre os credores), assegura que qualquer um dos sujeitos ativos possa exigir a obrigação por inteiro (artigo 267 do CC-2002).
Paralelamente, cuidando-se de solidariedade passiva (entre os obrigados), a obrigação pode ser exigida, parcial ou totalmente, de um ou de alguns dos devedores. Além disso, se parcial o pagamento, os demais sujeitos passivos continuam obrigados solidariamente pelo restante (artigo 275 do CC-2002)
A partir das noções gerais de divisibilidade/indivisibilidade, bem ainda de solidariedade, chega-se à conclusão de que nelas não se identifica, em princípio, obstáculo para acordos que tenham por objetivo a parcial reparação de danos.
Em acréscimo, sob a perspectiva do processo, pode-se afirmar que a solidariedade não implica litisconsórcio necessário ou unitário, previstas essas figuras nos artigos 114 e 116 do CPC-15.
Impõe-se observar, nesse ponto, o que já foi objeto de sinalização, acima, no sentido de que o próprio regime de direito material, quanto à solidariedade, fornece elementos para se afastar a ideia de litisconsórcio necessário ou mesmo unitário, ao determinar que: (a) a dívida comum pode ser exigida total ou parcialmente de um ou alguns dos devedores solidários (artigo 275, caput do CC-2002); (b) a propositura da demanda em face de um ou alguns dos devedores não importará renúncia à solidariedade quanto aos demais (artigo 275, parágrafo único do CC-2002); (c) o pagamento parcial, feito por um dos devedores, e a remissão por ele obtida, não aproveitarão aos demais devedores, senão até a quantia paga (artigo 277 do CC-2002).
Ou seja, a realização de acordo parcial não se traduz em redução de garantia ou de possibilidade de receber o “restante” do que for devido, nem significará qualquer espécie de abdicação deste montante ou complemento do objeto da obrigação.
Nos termos do artigo 927 do CC-2002, quem causa danos está obrigado à reparação.
Além disso, como prevê o artigo 942 do CC-2002, é solidária a obrigação de reparar danos em decorrência da atuação ou omissão ilícita.
O que interessa, na presente abordagem, é enfatizar que essas regras, de direito material, concernentes à divisibilidade, solidariedade e, especialmente, à responsabilidade extracontratual (aquiliana) não foram alteradas pela Lei 8.429/92.
A disciplina da Lei de Improbidade Administrativa, ao cuidar da reparação de danos causados ao patrimônio público, apenas põe em destaque que é imprescindível que isso ocorra, sem alterar, contudo, o regime das obrigações emergentes de atos ilícitos extracontratuais, quanto à reposição do estado anterior.
Uma disposição da Lei 8.429/92 tem potencial para causar alguma confusão, sob a perspectiva de alguns aspectos examinados neste texto.
Cuida-se do artigo 17-C, § 2º da Lei de Improbidade (red. Lei 14.230/2021), pelo qual “na hipótese de litisconsórcio passivo, a condenação ocorrerá no limite da participação e dos benefícios diretos, vedada qualquer solidariedade”.
Essa “vedação de solidariedade” se refere às sanções previstas na Lei 8.429/92. Não se refere à obrigação de reparar o dano. Essa última, como visto acima, segue a disciplina do direito material (CC-2002).
Não por outra razão que, ao tratar da fixação das sanções, prevê o artigo 17-C, IV da Lei 8.429/92 (red. Lei 14.230/2021), parâmetros para fins de individualização das penas.
A responsabilidade pela reparação de danos não tem natureza de sanção (pena), emerge da atuação ou omissão ilícita e, nos termos da lei civil, é solidária.
A vedação de solidariedade, nos termos da Lei 8.429/92, não modificou o regime obrigacional da responsabilidade civil aquiliana, regulado pelo Código Civil.
Não por outra razão, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, no exame do Tema de Recursos Especiais Repetitivos 1.213, fixou a seguinte tese:
“Para fins de indisponibilidade de bens, há solidariedade entre os corréus da Ação de Improbidade Administrativa, de modo que a constrição deve recair sobre os bens de todos eles, sem divisão em quota-parte, limitando-se o somatório da medida ao quantum determinado pelo juiz, sendo defeso que o bloqueio corresponda ao débito total em relação a cada um.”
A questão de direito, que rendeu ensejo à afetação à sistemática de casos repetitivos, foi assim definida pelo STJ:
“A responsabilidade de agentes ímprobos é solidária e permite a constrição patrimonial em sua totalidade, sem necessidade de divisão pro rata, ao menos até a instrução final da ação de improbidade, quando ocorrerá a delimitação da quota de cada agente pelo ressarcimento.”
Precisamente, se a indisponibilidade, prevista na Lei 8.429/92 (artigo 16), é medida cautelar, deverá assegurar a reparação integral do dano. Seria um contrassenso limitá-la, proporcionalmente, considerando o número de sujeitos responsáveis para fins de reparação. A posição firmada pelo STJ, no Tema 1213, confirma o caráter solidário da obrigação de reparação de danos. Se a exigência, em execução, for em face de um apenas, esse, que vier a pagar, poderá buscar o reembolso junto aos demais (artigo 283 do CC-2002).
A solidariedade e a indisponibilidade, portanto, não impedem o acordo subjetivamente parcial para fins de reparação de danos.
Ele não significará renúncia ao direito indisponível (reparação integral) ou à solidariedade. Subsistirá a exigibilidade do restante da obrigação (aspecto ou valor ainda não atendido) em relação aos demais obrigados.
Mostra-se de todo conveniente, contudo (seja nos acordos de não persecução cível, seja ainda, se for o caso, nos termos de ajustamento de conduta), inserir cláusula expressa, indicando que não há renúncia ao valor ou aspecto da obrigação não incluído no objeto do ajuste, bem como de que haverá prosseguimento com a finalidade de realizar outros ajustes, com os demais sujeitos responsáveis, ou mesmo ajuizamento de demanda judicial para obtenção desse mesmo resultado, se não houver êxito na tentativa de realização de ajuste.
Importante, ainda, destacar a conveniência de realização dos acordos, ainda que parciais, quando forem possíveis.
A solução, ainda que parcial, assegura, desde logo, de modo efetivo, parte da reparação. Nada garante que haverá resultado melhor caso se opte, em postura essencialmente formal, pela não realização do acordo e propositura de demanda judicial. Nada garante, note-se, que será alcançada sentença condenatória, quando ela será pronunciada, ou mesmo se depois, em fase de cumprimento, haverá, efetivamente, êxito na recuperação de valores direcionados à reparação dos danos.
Além disso, um elemento importante, nos acordos, consiste em fomentar que o sujeito que se dispõe a cumprir essa parte da obrigação de reparação assuma também o compromisso de colaborar com o esclarecimento dos fatos, identificação de outros agentes responsáveis, obtenção de provas etc.
Ou seja, mostra-se de todo conveniente e oportuno fazer com que o acordo de reparação parcial sirva como um elemento de facilitação da colaboração.
Somado a isso, deve haver a iniciativa judicial (exercício do direito de ação), com a finalidade de obter, dos demais, os valores faltantes.
A solução da qual aqui se cogita, como se conclui, é a aceitação dos acordos subjetivamente e objetivamente parciais.
São os termos de ajustamento de conduta, ou mesmo acordos de não persecução cível, com um ou alguns dos responsáveis, que assumem, proporcionalmente, a obrigação de reparar parte da obrigação de recompor o erário lesado.
O valor faltante deverá ser buscado junto aos demais responsáveis. Por meio de outros acordos ou mesmo de demandas judiciais. O acordo parcial deve mencionar expressamente a inexistência de renúncia e que serão tomadas as providências faltantes para a recuperação integral dos valores devidos.
Isso é possível, como se viu acima, de “lege lata”, ou seja, com a disciplina atualmente existente, na lei e nos regulamentos que disciplinam a matéria, na tutela coletiva.
Caso venha a ser editado regulamento específico ao propósito (v.g. resolução do Conselho Nacional do Ministério Público), embora isso seja prescindível, colaborará para espancar dúvidas e vencer resistências a uma solução que é legal, legítima e, seguramente, se revestirá de muita utilidade, pelos motivos expostos.
Recentemente o STF, ao apreciar o Tema 1.043 de Repercussão Geral, sobre a utilização da colaboração premiada no âmbito civil (em ação civil de responsabilidade por ato de improbidade administrativa), assentou que “a obrigação de ressarcimento do dano causado ao erário pelo agente colaborador deve ser integral, não podendo ser objeto de transação ou acordo, sendo válida a negociação em torno do modo e das condições para a indenização”.
Desfaça-se impressão inicial de obstáculo ao quanto vem sendo aqui exposto.
O acordo feito com um sujeito responsável, no qual ele assuma a obrigação de reparar proporcionalmente os danos, não significa transação ou renúncia ao restante. Além disso, é integral em relação à proporção que lhe toca, e não dispensará o legitimado encarregado do caso (Ministério Público ou Poder Público) de buscar, em outros acordos ou em juízo, o valor faltante, de sorte a integralizar a reparação.
Assegurará, além disso, como já elucidado, a pronta obtenção de parte dos valores devidos.
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