Maquiavel, Mandrágora e a posse sexual mediante fraude
18 de agosto de 2024, 8h00
“Os fins justificam os meios”, “Matai os inimigos, e se necessário os amigos também”, “Pensai exclusivamente na guerra”, são expressões aladas e de localização incerta (ou inexistente) que se atribuiu a Nicolau Maquiavel (1469-1527). O florentino tinha cerca de 30 anos quando os portugueses chegaram ao Brasil. É uma personalidade da Renascença. Diplomata, homem de negócios de Estado, Maquiavel viveu altos e baixos, conheceu o poder e o oblívio. Permanece, para alguns, como a personificação da astúcia, o que fez de um substantivo próprio (Maquiavel) um adjetivo (maquiavélico); isso não é tão comum.
A par de “O Príncipe”, “A arte da guerra”, “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”, Maquiavel escreveu também uma comédia, “Mandrágora”, divulgada a partir de 1520, provavelmente. Trata-se de uma peça cheia de sutilidades, que remete (com o benefício do retrospecto, do anacronismo e do deslocamento territorial) ao artigo 215 do Código Penal Brasileiro: a peça trata da posse sexual mediante fraude.
Cuida-se de obra de conteúdo satírico e crítico, que expõe as artimanhas e a corrupção da sociedade renascentista. Em seu núcleo tem-se a fraude como meio para alcance de objetivos pessoais, exemplificado pela posse sexual obtida por Calimaco, um dos personagens centrais, que engana Lucrécia, a outra personagem central, com a ajuda de uma bebida supostamente mágica, a mandrágora. É o tema dos embargos culturais dessa semana.
Em “Mandrágora”, Calimaco deseja ardentemente a esposa de um homem ingênuo e rico, obcecado em ter um filho. Calimaco, com a ajuda de um amigo astuto e de um corrupto frade, convencem o marido de Lucrécia de que uma bebida feita de mandrágora (uma planta) permitiria que sua esposa engravidasse.
No entanto, alertam, a bebida teria efeito colateral mortal para o primeiro homem que tivesse relações com ela, depois de que a crédula mulher consumisse a bebida mágica. Elaboram um plano onde a mulher concordaria que um estranho seria o primeiro a deitar-se com ela, o que protegeria a própria vida do marido. O estranho, pensaram astutamente, era ninguém menos do que Calímaco, disfarçado.
Peça exemplifica tipo penal da posse sexual mediante fraude
A obtenção do consentimento de Lucrécia é baseada em mentiras. Calimaco não revela sua verdadeira identidade nem o real propósito de seu plano, privando Lucrécia da capacidade de consentir. Os diálogos destacam a disparidade de poder e de informação. Lucrécia é tratada como objeto de desejo, desprovida de autonomia e de voz própria, nesse último caso no sentido figurado.
A fraude não apenas violava o consentimento de Lucrécia, mas também levanta questões éticas e morais sobre a manipulação e o uso de subterfúgios para obter o que se deseja. A trama de Maquiavel é uma crítica à sociedade de sua época, na qual a manipulação e a desonestidade, na leitura do florentino, eram frequentemente usadas como ferramentas para alcançar objetivos pessoais, sem consideração pela dignidade do outro.
A posse sexual mediante fraude é um tema que ressoa fortemente nos debates legais contemporâneos nos temas do consentimento e do livre-arbítrio. No direito brasileiro o consentimento obtido sob falsos pretextos é inválido. A tradição jurídica ocidental enfatiza a necessidade de um consentimento livre, informado e voluntário.
A fraude que invalida o consentimento pode assumir diversas formas, desde a falsificação de identidade até a omissão de informações cruciais que, se conhecidas, teriam influenciado a decisão da vítima. O caso da peça “Mandrágora”, embora ficcional, espelha situações reais nos quais a manipulação e o engano são utilizados para obter favores (inclusive sexuais), o que revela a necessidade de uma proteção legal eficiente para a garantia de certos direitos.
Creio que Maquiavel, em “Mandrágora”, critica não apenas a ingenuidade e a credulidade, mas também a corrupção e a hipocrisia das instituições religiosas e sociais. O clérigo, portanto um representante da Igreja, compactua com o plano fraudulento em troca de dinheiro, destacando-se a decadência moral e a venalidade dos líderes religiosos, na impressão de Maquiavel. A colaboração do clérigo sugere como a moralidade pode ser facilmente comprometida, o que pode refletir uma sociedade na qual valores éticos eram frequentemente sacrificados por ganhos imediatos.
Lucrécia, embora inicialmente passiva, ao longo da peça vai adquirindo consciência de seu papel e da realidade na qual vive. Sua aceitação do plano e a submissão subsequente podem refletir limitações impostas às mulheres daquela época. A peça, nesse sentido, também levanta questões sobre a autonomia feminina. O tema é relevantíssimo.
A peça, lida contemporaneamente, pode apontar para a importância do consentimento informado e a necessidade de proteção da autonomia individual contra a manipulação e o engano. É alerta atemporal para os perigos da fraude e da manipulação. É um apelo para a deferência para com valores éticos, o que suscita uma inversão dos postulados da obra política de Maquiavel. Afinal, em “Mandrágora”, os fins nem sempre justificam os meios, o que faz de Maquiavel um pensador talvez muito menos maquiavélico que a tradição supõe.
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