Opinião

Testemunho espiritual no processo penal: qual valor e credibilidade jurídica?

Autor

  • é advogado pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal especialista em Tribunal do Júri e Execução Penal palestrante e escritor de textos jurídicos.

    Ver todos os posts

16 de agosto de 2024, 19h40

O testemunho espiritual é uma espécie de testemunho indireto, ou auricular, no termo prático de “ouvir dizer”. A diferença para os demais é que a fonte original já faleceu e não está mais nesse plano espiritual.

É aquele dado por pessoa que disse ter falado com os mortos e que ouviu deles a descrição de como aconteceu um fato, quem estava presente e quem participou do evento. Muito já se ouviu da juntada a processos criminais de carta psicografada, que é aquela feita a partir de um médium sob a influência de um espírito desencarnado.

Um caso conhecido é o da Boate Kiss, ainda em andamento, onde uma advogada de defesa fez menção aos jurados a uma dessas cartas. Mas o que se discute aqui é a possibilidade desse meio de prova ser valorado para subsidiar uma decisão judicial.

Em regra, afirmamos aqui que, não havendo atropelo de algum direito ou de alguma forma processual, a prova é válida.

No entanto, a episteme do caso é mais profunda, superficialmente poderíamos afirmar que toda prova sem aparente ilicitude é admissível, o que autorizaria e daria validade a prova de ouvir dizer.

A jurisprudência do STJ é firme em absolver ou despronunciar acusados em casos em que a prova de ouvir dizer é a única do processo, mas nunca a declarou nula, o que leva a crer que em conjunto com outras provas pode ser valorada no processo penal.

Concordamos parcialmente com essa conclusão. Não são todos os procedimentos que entendemos que a prova de ouvir dizer possa permanecer nos autos ou ter o mesmo valor probatório.

Melhor explicando, a posição defendida é porque entendemos que as provas produzidas no processo penal devem possibilitar o contraditório e também possibilitar que se atinja um grau de certeza satisfatório.

Veracidade de prova espiritual

A prova derivada de visão ou escuta espiritual não possibilita um confronto efetivo, não é possível ter acesso a fonte de origem, verificar a credibilidade e veracidade das informações passadas por aquele que apenas viu ou ouviu quem já está morto.

Assim, ela impossibilita o contraditório e o direito de defesa, sendo temerário demais conferir aptidão a essa prova para atingir um grau de certeza satisfatório, apto a afastar no caso concreto a presunção de inocência sem outro suporte ou com suporte em provas de igual ou maior fragilidade, ou até mesmo em sentido contrário.

A ministra Daniela Teixeira, do Superior Tribunal de Justiça, concedeu a ordem em Habeas Corpus nesse sentido e despronunciou um homem condenado a 16 anos de prisão em regime inicial fechado pelo crime de homicídio.

O processo foi conduzido tanto em primeira fase (pronúncia) quanto em plenário do júri (jurados) com base em testemunhos indiretos (ouviu dizer) de três pessoas. Uma delas é irmão do morto e apontou em Juízo que viu o espírito da vítima e que ele lhe confirmou que foi o réu o autor do crime ( HC 854.187).

Em outras palavras, isolada trata-se de prova nula e imprestável para ser usada judicialmente, quiçá servir para condenar ou pronunciar alguém devido o reduzido ou inexistente grau de controle.

Agora, se houver outras provas, a situação muda um pouco, mesmo assim deve haver cautela, pois havendo provas em contrário ou que não se mostrem aptas a dar suporte a narrativa de ouvi dizer, deve prevalecer o “estado de inocência”.

No júri, é muito discutível a utilidade e valoração da prova de ouvi dizer. Defendemos a nulidade absoluta dessa prova para ser levada ao conselho de sentença, mesmo com outros elementos de prova, salvo quando a fonte original estiver viva e puder ser confrontada judicialmente.

Isso porque entendemos que o rito do júri possui um contexto diferenciado e especial, dado pela própria Constituição que o atribuiu a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, especificando princípios especiais que não são aplicados aos outros procedimentos penais, ou, se aplicados com bem menor preponderância.

Spacca

As decisões emanadas do próprio conselho de sentença por sua natureza já possuem um reduzido e restrito grau de controle e revisão,o que demanda que as provas tenham um grau de confiabilidade mais elevado, reduzindo-se as possibilidades de incertezas, insegurança e de cometimento de injustiças pelas sentenças penais formadas pela vontade popular.

Nesse sentido, a ausência de possibilidade de um contraditório, controle efetivo da prova penal já na primeira fase deve conduzir ao seu desentranhamento, e, se única no processo, a impronuncia, que é uma decisão formal que possibilita que sobrevindo posteriormente novas provas sobre a culpabilidade seja oferecida nova denúncia contra o acusado.

Prova deve ser submetida aos jurados

Já na segunda fase, a inobservância do magistrado pronunciante que submeter essa prova controversa aos jurados, mesmo que em conjunto com outras provas de autoria e materialidade, será uma nulidade absoluta, que poderá ser reconhecida em qualquer fase e grau recursal, devendo ser determinado o desentranhamento dessa prova do processo para que não seja usada na sessão plenária.

Inclusive, se já houver realizada a sessão ou houver condenação transitada em julgado, deve ser determinado o desentranhamento da prova, seja em recurso próprio, HC ou revisão criminal e retorno para nova sessão sem a prova inválida.

No júri, o jurado decide por sua íntima convicção, ninguém sabe em qual prova se amparou seu convencimento, pois ele não precisa fundamentá-la, razão pela qual o controle da qualidade da prova deve se fazer maior e deve ser colocada à sua frente somente aquelas dignas de confiança.

Outro ponto importante é que no júri a regra é que, salvo raras exceções, as decisões dos jurados são irrecorríveis, o que agrava o problema quando não se sabe sobre o que se amparou a decisão que pode ter sido na prova ilegítima e essa decisão acabar se tornando imutável a depender do caso concreto.

Se for única prova na segunda fase, o remédio é a despronúncia, independentemente se já há ou não condenação pelos jurados, salvo absolvição que pode ter se dado pelo reconhecimento da ilicitude da prova (coisa rara com pessoas leigas).

Cabe aqui destacar que, por ser julgado por seus pares, cuja decisão é soberana, com um grau de revisão bem restrito, o acusado possui ainda no júri o direito fundamental a plenitude de defesa e recursos inerentes, com especiais contornos nesse rito, ou seja, de se defender e ter ampla possibilidade de produzir provas a si favoráveis, de confrontar as desfavoráveis visando desconstruí-las em seu favor, o que resta cerceado por esse tipo de prova, justificando ainda mais a sua exclusão da presença dos jurados.

Por fim, breve comentário sobre o processo comum e esse tipo de prova, aqui a defesa já não goza da plenitude, pois há um juiz togado, com obrigação de conhecer o direito e fundamentar suas decisões. Já a possibilidade de revisão das decisões pelas instâncias revisoras é bem maior, abrangendo fatos e provas, mas mesmo assim, a defesa tem que ser ampla e tem que ter contraditório.

Se a prova oral e indireta for o único elemento nos autos, sem possibilidade de apuração da narrativa em outras provas, já de início, ou o Ministério Público opta por não oferecer peça acusatória pugnando pelo arquivamento do IP, caso tivesse, ou oferecendo, o juiz deveria rejeitar a denúncia por falta de justa causa (indícios mínimos satisfatórios de autoria), já que seria perda de tempo conduzir um processo assim, fadado a uma absolvição por falta de provas suficientes para uma condenação, o que obrigaria o órgão de acusação ir atrás de outras provas se quisesse para complementar e oferecer nova denúncia.

Autores

  • é advogado, pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal, especialista em Tribunal do Júri e Execução Penal, palestrante e escritor de textos jurídicos.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!