Urgente! Está na lei: 'pejotizar' é terceirizar
15 de agosto de 2024, 11h19
“É lícita a terceirização por ‘pejotização’, não havendo se falar em irregularidade na contratação de pessoa jurídica para prestar serviços terceirizados na atividade-fim da contratante, tampouco presumir que essa contratação teria como única finalidade reduzir a carga tributária da empresa.”
O trecho acima é transcrição da ementa da decisão proferida pela 2ª Turma do STF em 27/5/2024 nos autos da Reclamação Constitucional 58.665, tendo como relator o ministro André Mendonça.
Terceirização por “pejotização”. Há muito debatemos sobre o tema e nós, da área trabalhista, apontamos que o STF está errado, que “pejotizar” é diferente de terceirizar, atribuindo a falha ao fato de não haver, na composição atual, integrante do Supremo Tribunal Federal oriundo do mundo do trabalho.
Cheguei a participar de evento sobre as decisões do STF em que se defendia um suposto desconhecimento da Corte sobre Direito do Trabalho, fruto dos diversos equívocos que, na ótica sempre enviesada por ideologia, aponta igualmente para uma pauta não apenas ideológica, mas conspiradora da extinção da Justiça do Trabalho.
O pressuposto é de que o STF — apenas em matéria trabalhista — seria neoliberal, defensor dos interesses do capital, um verdadeiro agente do mal que a todo custo procura dificultar a vida dos trabalhadores, um traidor da causa que ratificou (quase integralmente) a malfadada reforma trabalhista.
Ordenamento jurídico
Confesso que acho graça, tanto das teorias conspiratórias, quanto da ingenuidade de atribuir às decisões do STF mera ignorância sobre Direito do Trabalho, como se os ministros, mesmo não oriundos da área trabalhista, não fossem capazes de compreender as consequências de suas decisões e elaborarem suas escolhas a partir de premissas existentes no próprio ordenamento jurídico.
E desconfiado que sou, resolvi fazer um exercício, que recomendo a todos da área trabalhista: esquecer tudo que já ouviu falar sobre terceirização e reler a atual legislação sobre o assunto, as Leis 13.429 e 13.467, ambas de 2017, que alteraram a antiga Lei 6.019 de 1974, tornando-a uma espécie de “estatuto da contratação por terceiros”, algo assim.
Iniciando pelo conceito legal, contido no artigo 4º-A, não há ali nenhuma menção à necessidade de, na terceirização, haver a existência de três pessoas, como sempre defendemos.
Terceirização, para nós, sempre foi a contratação de trabalhadores através de terceira pessoa, a prestadora de serviços (contratada), para trabalharem a favor da tomadora dos serviços (contratante). O próprio vocábulo, “terceirização”, constitui um neologismo que surgiu dessa premissa: haver três pessoas envolvidas nesse modelo de contratação.
Ocorre que a legislação não ratifica essa construção doutrinária. Vejam: “Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução”.
O primeiro ponto é perceber que o legislador não utiliza, no conceito, do vocábulo “terceirização”, que já deveríamos abandonar, substituindo-o por “prestação de serviços a terceiros”.
Para o legislador, basta que, por exemplo, uma empresa delegue parte de sua atividade a outra pessoa jurídica de direito privado. Isso, por si só, já é “terceirizar”, pouco importando se a prestadora de serviços vai contratar empregados para cumprimento do escopo do contrato, se vai atender aos serviços através de seus próprios sócios, se vai contratar outra pessoa jurídica para tal (subcontratação), se vai contratar autônomos, cooperativados, eventuais etc.
A regra é bastante clara e permite, sim, que a empresa contratada, prestadora dos serviços delegados pela contratante, execute o objeto do contrato através de seus próprios sócios, fenômeno que chamados de “pejotização”.
A liberdade da empresa contratada, prestadora de serviços, em realizar a escolha de como irá executar os serviços pactuados está evidente nos parágrafos primeiro e segundo do mesmo artigo 4º-A da Lei 6.019/74. Explico.
O primeiro parágrafo autoriza o que podemos chamar de situação clássica: a prestadora dos serviços (contratada) resolve admitir trabalhadores. Neste caso, por óbvio, deverá contratar, remunerar e dirigir o trabalho de tais pessoas.
Na sequência, o mesmo parágrafo autoriza a subcontratação, ou seja, a realização de nova “terceirização”, delegando para outra empresa os serviços que pactuou com a contratante. A nova empresa, por sua vez, poderá fazer as mesmas escolhas (contratar trabalhadores, executar pelos seus sócios ou subcontratar novamente).
Já o parágrafo segundo determina — e aí temos a mais clara autorização para a “pejotização” —, que “não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante”.
Que os trabalhadores contratados pelas empresas prestadoras de serviços não são empregados da empresa contratante (tomadora) ninguém duvida, há décadas assentamos essa regra.
A novidade, que poucos perceberam, reside na parte em que o legislador positivou que os sócios das empresas prestadoras de serviços não possuem vínculo empregatício com a contratante. E tal regra só faz sentido se assumirmos que os sócios da prestadora estão, eles mesmos, despendendo energia de trabalho a favor da empresa contratante. Ora, ora: pejotização.
Não bastasse isso, o artigo 5º-C, com viés nitidamente protetivo contra fraudes, ratifica a conclusão anterior ao estabelecer que uma empresa não pode contratar como prestadora de serviços “pessoa jurídica cujos titulares ou sócios tenham, nos últimos dezoito meses, prestado serviços à contratante na qualidade de empregado ou trabalhador sem vínculo empregatício, exceto se os referidos titulares ou sócios forem aposentados”.
Qual a razão deste artigo senão coibir fraude em pejotização? Impor uma quarentena para que um antigo trabalhador de uma empresa não possa ser contratado como sócio de uma pessoa jurídica para prestar serviços revela, por óbvio, que após o prazo legal de dezoito meses é lícita a “terceirização” em que, por exemplo, um ex-empregado resolve criar uma pessoa jurídica e executar serviços ele mesmo através dela: pejotização.
Fica evidente, portanto, que no modelo atualmente em vigor a velha “terceirização” ganhou uma nova roupagem, sendo definida pelo simples fato da delegação a terceiros de atividades de uma empresa e, não, a contratação de trabalhadores através de terceiros.
E se “terceirizar” é delegar atividade, nada impede, antes a lei autoriza, que seja contratada uma pessoa jurídica que executa tais atividades por seus próprios sócios: pejotização.
Assim, “pejotizar” é “terceirizar”. Parece que os Ministros do STF não são tão desconhecedores do Direito do Trabalho, nós é que estamos obtusos lendo o ordenamento jurídico com olhos de catarata.
Será que nos falta humildade ou será um caso grave de imunização cognitiva? É natural haver resistência à mudança, mas a questão se torna um problema, como diz Simone Cunha, “quando o repertório de nosso conhecimento não é suficiente para dar conta das demandas/exigências de novos cenários. “Nesse momento é fundamental certa flexibilidade e capacidade de gerar novas aprendizagens para que a adaptação possa se realizar. E aí, muitas vezes, nos deparamos com barreira mentais que podem nos limitar.” (aqui)
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