Opinião

ANPP em casos já sentenciados: pena abstrata ou concreta?

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  • é advogada sócia-fundadora do Feldens Advogados. Professora da graduação e coordenadora no curso de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal na Unisinos. Mestre em Ciências Criminais (PUC-RS).

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  • é advogado sócio do Feldens Advogados. Mestre em Ciências Criminais (PUC-RS). Professor convidado no curso de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal na Unisinos.

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14 de agosto de 2024, 15h22

O STF (Supremo Tribunal Federal) definiu, por maioria, nos autos do HC 185.913/STF, sobre a possibilidade de oferecimento do ANPP (Acordo de não Persecução Penal) em processos em tramitação antes da vigência da Lei 13.964/19 (em vigor a partir de 23/1/2020), mesmo já com sentença condenatória, desde que ainda não se tenha operado o trânsito em julgado [1].

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Os contornos do que será definido como a “tese” a potencialmente estabelecer critérios de aplicação prática com o objetivo de uniformizar o entendimento ainda serão determinados pelo Supremo em momento posterior, com a retomada do julgamento [2].

De qualquer forma, da matéria já decidida pelo Supremo podemos depreender o surgimento de outro questionamento, o qual buscaremos enfrentar neste texto:

Nos casos em que já proferida sentença penal condenatória e que ainda não operado o trânsito em julgado (passíveis, portanto, de aplicação de ANPP), a “pena” considerada a satisfazer o requisito objetivo previsto no art. 28-A do CPP (“pena mínima inferior a quatro anos”) será aquela cominada em abstrato ou a aplicada concretamente pelo juízo criminal em sentença?

A reflexão ora proposta parte do seguinte exemplo:

(i) “A”, funcionário público, foi condenado, em primeiro grau, pela prática do delito de corrupção passiva, na sua forma majorada, e em continuidade delitiva (artigo 317, §1º, combinado com o artigo 71, ambos do Código Penal), à pena de quatro anos e cinco meses;

(ii) em decorrência da mesma sentença, “B”, também funcionário público, foi igualmente condenado pela prática do delito de corrupção passiva, na sua forma majorada, e em continuidade delitiva (artigo 317, §1º, combinado com o artigo 71, ambos do Código Penal); todavia, em razão de ter-lhe sido reconhecida a circunstância atenuante da confissão (artigo 65, III, “d”, do Código Penal), a pena de “B” foi estabelecida em três anos, oito meses e cinco dias;

(iii) “A” e “B” interpuseram apelação; entretanto, considerando o advento da Lei nº 13.964/2019, ambos requereram a aplicação do benefício; o magistrado do caso, ao considerar o ANPP novatio legis in mellius, determinou o desmembramento do caso, remetendo, apenas em relação a “B”, o processo ao Ministério Público para que se manifeste sobre o oferecimento do benefício;

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(iv) quanto a “A”, por ter-lhe sido aplicada, na sentença, pena superior a quatro anos, o magistrado entendeu que não estaria preenchido o requisito objetivo para a concessão do ANPP, remetendo o processo à jurisdição recursal para análise do recurso de apelação;

(v) fosse considerada a pena mínima abstratamente considerada (dois anos), ainda que com os acréscimos da majorante e da continuidade delitiva (artigo 28-A, §1º, do Código de Processo Penal), ambos preencheriam o requisito objetivo (pena mínima) para negociarem o benefício.

Aplicabilidade do ANPP

Ao considerar a pena concretamente aplicada para aferir a aplicabilidade do ANPP — e não a pena cominada em abstrato —, o magistrado do exemplo teria agido corretamente?

Na nossa percepção, a solução dada parece não ser a mais adequada, especialmente em razão dos aspectos aqui resumidos:

  • Ina redação do artigo 28-A do Código de Processo Penal, admite-se o ANPP aos casos em que a infração penal seja praticada “sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos”; o §1º do artigo 28-A do Código de Processo Penal, por sua vez, complementa dispondo que a “pena mínima” referida no caput trata-se da “pena mínima cominada ao delito”;
  • Ou seja, ao referir “pena mínima” o dispositivo está considerando, logicamente, a pena cominada ao delito abstratamente (p. exemplo: no caso da corrupção passiva — artigo 317 do Código Penal —, a pena varia de 2 a 12 anos; sendo assim, a pena mínima cominada é dois anos); considerar a pena concretamente aplicada, parece desbordar da textualidade do dispositivo, restringindo desproporcionalmente o âmbito de incidência do benefício;
  • IIpara aferição da “pena mínima cominada ao delito”, o §1º do artigo 28-A do Código de Processo Penal estabelece que “serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto”, ao passo que lei silencia quanto às circunstâncias do artigo 59 do Código Penal, por exemplo, assim como relativamente as causas agravantes e atenuantes potencialmente aplicáveis;
  • Aparentemente, o silêncio aqui é indicativo que tais disposições não poderiam ser utilizadas a favor, nem tampouco em desfavor do acusado quando da aferição do cabimento de ANPP; também por essa razão, soa inadequada a utilização da “pena concreta” para a análise da aplicabilidade do ANPP, uma vez que a concretude da pena dá-se, também, em consideração às circunstâncias do artigo 59 do Código Penal, além das causas agravantes e atenuantes;
  • III – o momento legalmente estabelecido para a proposição do ANPP é anterior ao oferecimento da denúncia (artigo 28-A, caput, e §§8º e 10, do Código de Processo Penal [3]);

Desse modo, a análise sobre a aplicação ou não do benefício, nas específicas hipóteses em que seria possível a retroação da lei (v.g., processos iniciados antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, mas não transitados em julgado), haveria de ser considerada à luz da situação jurídica do acusado condenado em momento anterior ao ajuizamento do processo; ou seja, haveria de se perquirir se o acusado faria jus ao benefício, caso o artigo 28-A do Código de Processo Penal vigorasse à época do ajuizamento da denúncia [4].

A utilização da pena concretamente aplicada como parâmetro para aferição de aplicação do ANPP poderia resultar distorções processuais como aquela verificada no exemplo inicial, a implicar na quebra da isonomia [5]: ambos os personagens, “A” e “B”, foram denunciados pelos mesmíssimos fatos; por uma estratégia processual (v.g. confissão), “B” teve sua pena reduzida a patamar inferior a quatro anos, tendo sido agraciado com a possibilidade do ANPP; “A”, por sua vez, não confessou [6], em razão do que não teve a pena reduzida e, na compreensão do juiz do exemplo, não faria jus ao benefício.

Parece-nos, portanto, que a compreensão mais adequada é a de que mesmo nos casos em que haja condenação criminal não transitada, a pena a ser considerada à aferição da aplicabilidade do ANPP é a pena mínima prevista no tipo penal.

 


[1] Ver detalhes aqui: https://www.conjur.com.br/2024-ago-08/stf-tem-maioria-para-anpp-retroagir-ate-transito-em-julgado-mas-tese-fica-para-depois/

[2] Conforme a ata de julgamento: “O Tribunal, por maioria, concedeu a ordem de habeas corpus, para determinar a suspensão do processo e de eventual execução da pena até a manifestação motivada do órgão acusatório sobre a viabilidade de proposta do acordo de não persecução penal, conforme os requisitos previstos na legislação, passível de controle nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP. Tudo nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Flávio Dino e Luiz Fux, que indeferiam a ordem. Em seguida, o Tribunal deliberou fixar tese de julgamento em assentada posterior. Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário, 8.8.2024.”

[3] “§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.” “§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia.”

[4] A interpretação aqui conferida parece ser semelhante aos fundamentos da aplicação da súmula 337 do Superior Tribunal de Justiça sobre a suspensão condicional do processo. Notadamente, é certo que o enunciado foi criado para viabilizar a aplicação da Suspensão Condicional do Processo em situações de overcharging; é igualmente certo que o Superior Tribunal de Justiça tem restringido a aplicação de enunciado a casos em que o acusado teria direito ao benefício “desde o começo do processo”, rechaçando, por exemplo, a hipótese de prescrição superveniente de uma das imputações. Nesse sentido, STJ, HC 239502, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 04/10/2012.

[5] V,g, artigo 5º, caput, CF;  artigo 8, nº 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Decreto 678/1992; artigo 14, nº 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – Decreto 592/1992.

[6] Lembre-se que a confissão prévia como requisito para celebração do ANPP foi inclusive rechaçada pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, com a edição do Enunciado 98: “É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A do CPP, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019, conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para processos com sentença ou acórdão após a vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa, quando haverá preclusão.” Alterado na 187ª Sessão de Coordenação, de 31/08/2020.” Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/enunciados

Autores

  • é advogada, sócia fundadora do escritório Feldens Advogados. Mestre em Direito. Professora de Direito Processual Penal e coordenadora da pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal na Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos).

  • é advogado, sócio do Feldens Advogados. Mestre em Ciências Criminais (PUC-RS). Professor convidado no curso de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal na Unisinos.

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