Opinião

ADI 5.667: importante contribuição do STF para segurança dos voos

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13 de agosto de 2024, 7h02

Neste momento cinzento em que a aviação comercial brasileira está passando, um importante farol poderá ser aceso pelo STF (Supremo Tribunal Federal), a indicar um seguro caminho para os voos brasileiros: o julgamento da ADI 5.667, pautado para próximo dia 14 de agosto.

A ação direta de inconstitucionalidade, apresentada pela PGR (Procuradoria-Geral da República, questiona a constitucionalidade de dispositivos incluídos no Código Brasileiro de Aeronáutica pela Lei 12.970/2014. Em apertada síntese, são impugnados dispositivos legais que separam a investigação aeronáutica de outras investigações, bem como protegem as informações de segurança de voo prestadas voluntariamente pelo aeronavegantes.

Separação da investigação aeronáutica e sua prioridade sobre demais

A segmentação das investigações sobre um acidente aéreo é preconizado pela Convenção de Chicago de 1944 [1], especialmente seu Anexo 13, cujas práticas internacionais foram incorporadas ao nosso ordenamento jurídico pela Lei 12.970/2014, que dispõe sobre o Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Sipaer), de competência administrativa do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa).

Essa separação procedimental facilita a autonomia que a investigação aeronáutica necessita para promover todos seus estudos especulativos e, também, receber, com fluidez, as colaborações dos profissionais de aviação, especialmente daqueles envolvidos nos acidentes investigados.

Não é difícil compreender que, a partir da separação das investigações sobre o sinistro aéreo, deve ser dada prioridade ao acesso e guarda de destroços à autoridade aeronáutica, já que, indubitavelmente, possui melhores condições de salvaguardar a integridade dos vestígios, bem como dar uma rápida resposta ao cenário de insegurança que se instala na sociedade logo após um acidente aéreo.

Bom lembrar que, na atualidade, há intensa homogeneidade das frotas aéreas (Boeing, Airbus e Embraer), cenário que impõe a necessidade de uma rápida análise dos destroços de um acidente aéreo pelos especialistas da aviação, a fim de garantir a segurança e a continuidade das operações aéreas em todo mundo.

O trágico acidente com a aeronave Boeing 737-Max8 em 2019 [2] exemplifica essa urgência, no qual, três dias após a sua ocorrência, houve a paralisação de toda a frota desse modelo de aeronave no globo terrestre por determinação de autoridades aeronáuticas europeias e americana.

Foi justamente essa evidente urgência que balizou a formulação dos artigos 88-C e 88-N [3] do Código Brasileiro de Aeronáutica (impugnados pela PGR). Por outro lado, esses dispositivos não impedem a consecução de outros interesses do Estado, como dispõe o artigo 88-P[4] da lei aeronáutica, que assegura o acesso ao local do acidente por outras autoridades, como a autoridade policial e a autoridade de aviação civil (Anac) tudo sob coordenação da autoridade aeronáutica.

Não se pode olvidar que alguns componentes de aeronaves acidentadas podem gerar explosões ou contaminações de pessoas e do meio ambiente, informações essas de difícil conhecimento pelas autoridades policiais de nosso extenso Brasil. O acondicionamento adequado de materiais aeronáuticos é outra preocupação da lei, o que requer conhecimentos especializados para resguardar a integridade dos vestígios para futura perícia.

Nesse ponto, urge lembrar que as novas regras de cadeia de custódia são aplicáveis à atividade investigativa Sipaer, considerando que a lei processual penal vincula o “perito responsável” [5] a esses deveres processuais. No caso de sinistros aéreos, a lei aeronáutica atribuiu a função de “perito responsável” à autoridade de investigação Sipaer, que cabe velar pela integridade da cadeia de custódia.

Inclusive, há Enunciado do Fonacrim (Fórum Nacional dos Juízes Federais Criminais) nesse sentido:

Enunciado Fonacrim 108: O exercício da precedência no acesso e na guarda dos vestígios relacionados a ocorrências aeronáuticas (art. 88-C do CBA) da Autoridade de Investigação Sipaer deve ocorrer sob os princípios da integridade e rastreabilidade da cadeia de custódia previstos no código de processo penal.

Por fim, relevante anotar que, desde 2014, ano de aprovação da Lei 12.970, foram feitas mais de 1.200 investigações de acidentes aeronáuticos pelo Cenipa [6] sem qualquer notícia de prejuízo para as investigações criminais. Assim, a projeção de prejuízos alegados pela PGR em sua ação constitucional não se confirmou nesses longos dez anos de vigência da Lei 12.970/2014, ao contrário, a prática demonstrou que a solução adotada pelo Brasil, em observância às normas internacionais, operou-se de forma eficiente e sem divergências ou prejuízos a quaisquer outros interesses do Estado.

O recente acidente com o voo 2283 da VoePass em Vinhedo (SP) também ilustra com perfeição essa realidade. Todos somos testemunhas do trabalho conjunto de diversas autoridades no local do sinistro (Cenipa, Anac, Polícia Federal e Polícia Civil de SP), sem quaisquer relatos de conflitos ou intercorrências.

Limitações probatórias

O §2º do artigo 88-I do Código Brasileiro de Aeronáutica [7], também impugnado pela PGR, traz a vedação de utilização, como meio de prova, das informações do sistema de reporte voluntário e das conclusões da investigação Sipaer.

O sistema de reporte voluntário é uma das principais fontes de informações de segurança aérea, onde aeronautas comunicam fatos perigosos ou percepções de perigo importantes para a prevenção de acidentes, porém, com o compromisso de que esses reportes não gerem punições aos envolvidos (utilização exclusiva para as atividades de prevenção de acidentes [8]).

Tais reportes voluntários são apresentados aos milhares, todos os dias e em todo o mundo, auxiliando os gestores de empresas aéreas e autoridades aeronáuticas a tomarem decisões importantes. Sem a proteção dessas comunicações, dificilmente os aeronautas irão colaborar com a segurança de voo — essa é a lição aprendida por todo o mundo da aviação [9].

É o piloto que relata ter trabalhado com sono, o copiloto que relata um pouso crítico realizado pelo comandante da aeronave, um abastecedor de combustíveis que relata a falta de um parafuso na boca do tanque e o mecânico que comunica sua inabilidade com a língua inglesa que instrui os manuais utilizados em seu trabalho diário.

Segundo as teorias científicas de prevenção de acidentes industriais [10], a cada 300 pequenos incidentes de perigo não mitigados serão gerados 29 incidentes com maior gravidade e um acidente grave. Logo, somente com o conhecimento de todos os pequenos cenários de perigo que um acidente fatal será evitado, porém, as situações de perigo, muitas das vezes, são de conhecimento de poucas pessoas, talvez apenas de seus próprios autores.

Nos Estados Unidos, o assunto é levado tão a sério que a Nasa [11] é quem cuida do sistema de reportes voluntários da aviação civil (safety reporte), e não o FAA — Federal Aviation Administratiosn (agência de regulação) ou o NTSC — Nations Transportation Safety Board (órgão de investigação de acidentes).

Interessante registrar que as soluções apontadas pela PGR na ADI 5.667 para substituir o sistema de reportes voluntários, como proteção a testemunhas e delação premiada, o que demonstraria a inconstitucionalidade do dispositivo, são absolutamente distantes da realidade da aviação. Ingressar num programa de proteção de testemunhas ou fazer uma delação premiada são ferramentas processuais extremamente formais e posteriores a um acidente aéreo, enquanto o sistema de reportes voluntário ocorre massivamente antes de um sinistro, pois é utilizado justamente para evitá-lo.

Não se diga que, para atender às sugestões da PGR, seriam necessárias centenas de juízes e membros do MP ou de Delegados para receberem os milhares de reportes de situações de perigo que são comunicados todos os dias pelos aeronautas e aeroviários.

Por fim, necessário destacar que a comunicação de atos ilícito doloso não recebe a proteção da lei, visto que a própria lei aeronáutica determina a sua comunicação à autoridade policial (artigo 88-A, §2º [12]; e artigo 88-D [13]).

Essa é a mesma solução adotada, por exemplo, pelos EUA [14], que estabelece a atuação do FBI em atos dolosos contra a aviação, em detrimento do NTSB Nations Transportation Safety Board (órgão de investigação de acidentes, semelhantes ao Cenipa).

Já a não utilização das conclusões da investigação Sipaer em processos criminais foi erguida como uma proteção aos próprios acusados, visto que a investigação Sipaer estabelece sua cadeia de causas de forma ampla, onde basta um fator colaborar para a produção do resultado que será mitigado com recomendações de segurança (teoria das causas múltiplas [15]), bem diferente da causalidade penal, que exige a plena capacidade daquela ação ou omissão em produzir, sozinha, o resultado delitivo, para então ser considerada “causa” e, assim, gerar responsabilização penal (teoria conditio sine qua non).

Voepass

Bem frequente que acidentes aeronáuticos tenham enorme dificuldade para sua reconstituição, ainda que se considere os modernos gravadores de voo (caixa-preta), haja vista a habitual destruição da aeronave e o falecimento de seus ocupantes. A partir dessa realidade, a lei aeronáutica permitiu que a investigação Sipaer adote hipóteses [16] em suas análises, visto que todo acidente aéreo deve ser evitado ainda que por uma causa hipotética — não comprovada.

É o princípio da máxima eficácia preventiva empregado nas ciências aeronáuticas, semelhante ao princípio da precaução do direito ambiental e citado pelo brigadeiro do ar Marcelo Moreno (chefe do Cenipa), na coletiva de imprensa do dia do acidente com o voo 2.283 da VoePass [17].

Logo, na investigação aeronáutica, hipóteses e probabilidades recebem o mesmo tratamento que causas, o que já gerou interpretações equivocadas Poder Judiciário ao empregar as conclusões da investigação Sipaer como meio de prova criminal ou cível [18].

Se o Sipaer não adotasse sua abordagem especulativa (acolhendo hipóteses e probabilidades em similitude às causas), acredita-se que, até os dias de hoje, teria sido emitida menos da metade das recomendações de segurança de voo; consequentemente, mais acidentes aéreos teriam ocorrido, considerando a perda da capacidade preventiva.

Aqui, importante destacar que o Código Brasileiro de Aeronáutica permite o compartilhamento de todas as outras fontes de prova colhidas pela autoridade aeronáutica com a investigação criminal ou outras investigações [19], como dados de gravadores de voo (caixa-preta); gravações de órgãos de controle do espaço aéreo e laudos de componentes da aeronave sinistrada.

No caso do recente acidente com o voo 2.283 da VoePass, poderão ser compartilhados pela autoridade aeronáutica com a Polícia Federal os dados e sons gravados pelas caixas-pretas já encontradas e em fase de extração; dados de gravação do controle de aproximação aérea de São Paulo e futuros laudos de funcionamento de motores e hélices, por exemplo.

Enfim, a separação das investigações de um acidente aéreo, adotada pela lei aeronáutica impugnada [20], é a solução mais adequada, pois garante que cada interesse do Estado seja atendido, sem que uma investigação produza prejuízos à outra.

Ao mesmo tempo, a autoridade policial fica livre para desenvolver a investigação criminal, a partir das fontes Sipaer compartilhadas, segundo suas regras, teorias e princípios e, mais do que isso, sem que contribuições voluntárias de aeronavegantes para a segurança de voo sejam utilizadas para a sua autoincriminação.

Julgamento pautado

Depois de sete anos de tramitação, a comunidade aeronáutica aguarda ansiosamente pelo julgamento da ADI 5.667, como já dito ao início, pautado para o próximo dia 14.

Os difíceis momentos após um grande acidente aéreo, a exemplo do atual cenário que vivemos com o acidente do voo 2283 da VoePass, muito bem evidenciam a higidez que se espera de um sistema de prevenção de acidentes aéreos, já que, naturalmente, muitas pessoas questionam, em seu íntimo, se a aeronave que irão embarcar numa viagem próxima é segura, às vezes, uma aeronave do mesmo modelo que acaba se sofrer um sinistro ou, ainda, da mesma companhia aérea.

Nessa temática, a experiência internacional tem demonstrado que a sistemática adotada pela lei aeronáutica brasileira é aquela mais eficaz e responsável pelo elevado nível de segurança que transporte aéreo alcança, quando comparado com outros modais de transporte.

Certamente, o julgamento da ADI 5.667 será a mais importante contribuição do Supremo Tribunal Federal à segurança dos voos brasileiros, ao trazer a plena segurança jurídica aos sensíveis procedimentos investigativos a cargo da autoridade aeronáutica.

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[1] Recepcionado pelo Decreto 21.173, de 27 de agosto de 1946.

[2] Em 10 de março de 2019, o voo ETH 302, da Ethiopian Airlines, operado com aeronave Boeing 737-MAX8, colidiu com o solo, seis minutos após a decolagem do aeroporto de Abis Abeba, capital da Etiópia, levando à morte de 157 pessoas.

[3] Art. 88-C. A investigação Sipaer não impedirá a instauração nem suprirá a necessidade de outras investigações, inclusive para fins de prevenção, e, em razão de objetivar a preservação de vidas humanas, por intermédio da segurança do transporte aéreo, terá precedência sobre os procedimentos concomitantes ou não das demais investigações no tocante ao acesso e à guarda de itens de interesse da investigação.

Art. 88-N. Exceto para efeito de salvar vidas, preservação da segurança das pessoas ou preservação de evidências, nenhuma aeronave acidentada, seus destroços ou coisas que por ela eram transportadas podem ser vasculhados ou removidos, a não ser com a autorização da autoridade de investigação Sipaer, que deterá a guarda dos itens de interesse para a investigação até a sua liberação nos termos desta Lei.

[4] Art. 88-P. Em coordenação com a autoridade de investigação Sipaer, ficará assegurado a outros órgãos, inclusive da autoridade de aviação civil e da polícia judiciária, o acesso à aeronave acidentada, aos seus destroços ou a coisas que por ela eram transportadas, somente podendo haver manipulação ou retenção de quaisquer objetos do acidente com anuência da autoridade de investigação Sipaer.

[5] Código de Processo Penal

Art. 158; § 2º É proibida a entrada em locais isolados bem como a remoção de quaisquer vestígios de locais de crime antes da liberação por parte do perito responsável, sendo tipificada como fraude processual a sua realização.

[6] Informações de investigações realizadas pelo CENIPA disponíveis em: https://painelsipaer.cenipa.fab.mil.br/extensions/Sipaer/home.html. Acesso em 11.08.2024.

[7] Art. 88-I.  São fontes Sipaer:

[…]

  • 2oA fonte de informações de que trata o inciso III do caput e as análises e conclusões da investigação Sipaer não serão utilizadas para fins probatórios nos processos judiciais e procedimentos administrativos e somente serão fornecidas mediante requisição judicial, observado o art. 88-K desta Lei.

[8] Art. 88-I

  • 3oToda informação prestada em proveito de investigação Sipaer e de outras atividades afetas ao Sipaer será espontânea e baseada na garantia legal de seu exclusivo uso para fins de prevenção.

[9] HONORATO, M. Crimes Aeronáuticos. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2025.

[10] EINRICH Herbert W.; GRANNISS E. R. Industrial accidente preevention: a scientific approach. 4. ed. Nova York: McGraw-Hill; 1959.

[11] https://asrs.arc.nasa.gov/. Acesso em: 11.08.2024.

[12] Art. 88-A

  • 2oA autoridade de investigação Sipaer poderá decidir por não proceder à investigação Sipaer ou interrompê-la, se já em andamento, nos casos em que for constatado ato ilícito doloso relacionado à causalidade do sinistro e em que a investigação não trouxer proveito à prevenção de novos acidentes ou incidentes aeronáuticos, sem prejuízo da comunicação à autoridade policial competente

[13] Art. 88-D. Se, no curso de investigação SIPAER, forem encontrados indícios de crime, relacionados ou não à cadeia de eventos do acidente, far-se-á a comunicação à autoridade policial competente.

[14] EUA. Memorandum of understanding between the National Transportation Safety Board and the Federal Bureau of Investigation. 2005.

[15] REASON, J. Human error. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

[16] Art. 88-A

  • 1oA investigação Sipaer deverá considerar fatos, hipóteses e precedentes conhecidos na identificação dos possíveis fatores contribuintes para a ocorrência ou o agravamento das consequências de acidentes aeronáuticos, incidentes aeronáuticos e ocorrências de solo.

[17] https://www.fab.mil.br/noticias/mostra/42989. Acesso em 11.08.2024.

[18] HONORATO, M. Crimes Aeronáuticos. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2025.

[19] Art. 88-K.  Para o uso das fontes Sipaer como prova, nos casos permitidos por esta Lei, o juiz decidirá após oitiva do representante judicial da autoridade Sipaer, que deverá se pronunciar no prazo de 72 (setenta e duas) horas.

[20] Art. 88-B.  A investigação Sipaer de um determinado acidente, incidente aeronáutico ou ocorrência de solo deverá desenvolver-se de forma independente de quaisquer outras investigações sobre o mesmo evento, sendo vedada a participação nestas de qualquer pessoa que esteja participando ou tenha participado da primeira.

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