Processo familiar

Prática forense e idealização legislativa na imposição da guarda compartilhada

Autores

  • Mário Luiz Delgado

    é doutor em Direito Civil pela USP mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco professor de Direito Civil na Escolas da Magistratura e da Advocacia diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFam membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) ex-assessor na Câmara dos Deputados da relatoria-geral do projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil Brasileiro autor e co-autor de livros e artigos jurídicos.

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  • Laís Mello Haffers

    é mestra em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

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11 de agosto de 2024, 8h00

A guarda compartilhada, tal como idealizada pelo legislador, tem por finalidade a corresponsabilidade parental, ou seja, a divisão de responsabilidades e o exercício conjunto dos direitos e deveres concernentes ao poder familiar. Entretanto, apesar de o artigo 1.584, § 2º, do Código Civil dispor que a guarda compartilhada será aplicada mesmo diante das situações em que não houver consenso entre os pais, na prática, o dispositivo se mostrou demasiadamente problemático. A imposição do compartilhamento de guarda pode implicar mais conflitos e, por consequência, violação da finalidade do instituto, isto é: garantir, lato sensu, proteção, cuidados e educação da prole.

A guarda compartilhada, nos casos de beligerância (momento em que não se consegue romper barreiras) entre os genitores, ao contrário de evitar os conflitos que decorrem da aplicação da guarda unilateral em favor de um só dos pais, e impor corresponsabilidades, em verdade, acarretará ainda mais desavenças e desgastes, e o maior prejudicado, senão o único, será a própria criança.

Mario Delgado

Não são necessários maiores conhecimentos sobre psicologia e comportamento humano para antever que o sucesso da guarda na modalidade compartilhada depende da participação conjunta dos pais nas decisões que envolvem os filhos, o que torna necessária a convivência harmônica entre eles. Não raras vezes, os genitores acabam “usando” a criança como objeto de vendeta, em decorrência das mágoas e ressentimentos ocasionados pelo fim da relação, sem falar nas situações em queum deles não tem interesse no exercício da paternidade/maternidade responsável ou sequer participativa, o que dificulta o exercício da guarda compartilhada, que pressupõe a tomada de decisões em conjunto.

Logo, ainda que a guarda compartilhada possa ser instituída independentemente da vontade dos pais, ela deve prevalecer apenas quando a sua aplicação não gere aos filhos efeitos negativos, ou potencialize a beligerância dos genitores, com risco direto às crianças envolvidas. Impor a guarda compartilhada, com base apenas no texto legal, de forma a ignorar as nuances da situação fática, leva a um contrassenso de ordem legal, vez que contraria o próprio fim do instituto, isto é, o interesse dos filhos.

Diante disto, há cenários nos quais se torna impossível defender o compartilhamento das tomadas de decisões, até mesmo para concretização do princípio do melhor interesse da criança, corolário da doutrina da proteção integral, consagrada pelo artigo 227 da Constituição Federal, e que deve orientar a atuação do magistrado. Essa sempre foi a visão do Superior Tribunal de Justiça, como se verifica pelo julgamento do AREsp n. 2.412.569/SP:

DIREITO CIVIL. FILHOS. GUARDA COMPARTILHADA. REGRA GERAL. GUARDA UNILATERAL. SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS. POSSIBILIDADE. DIREITOS DE VISITAS. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. AGRESSÃO FÍSICA. GENITOR. SÚMULA 7/STJ.

1. A guarda compartilhada constitui-se em regra geral adotada pelo ordenamento jurídico, mas é possível a fixação da guarda unilateral em situações excepcionais, a fim de atender ao melhor interesse da criança. Precedentes.

2. Hipótese em que as instâncias de origem, a partir do estudos psicológico e social realizados nos autos, concluiu que a manutenção do menor sobre a guarda exclusiva da genitora melhor atende aos interesses do infante, não em razão da mera ausência de acordo entre os genitores, mas por constatar que existência de acentuada beligerância do casal, inclusive com episódio de agressão física do genitor contra a genitora, com a imposição de medida protetiva, bem como imaturidade do pai e as demais peculiaridades constantes nas provas produzidas.

3. Não cabe em recurso especial o reexame do conjunto fático-probatório dos autos (Súmula 7/STJ).

4. Agravo interno a que se nega provimento.

(AgInt no AREsp n. 2.412.569/SP, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 17/6/2024, DJe de 19/6/2024.)

O Ministro Raul Araújo, no julgamento do AREsp 1820674 / RJ, bem enfatizou que “embora a guarda compartilhada seja a regra, e um ideal a ser buscado em prol do bem-estar dos filhos, existem casos nos quais, em razão da elevada animosidade e beligerância entre os genitores, sua adoção não é recomendada por não representar o melhor interesse da criança”1.

O acórdão recorrido, e confirmado pelo STJ, “reconheceu expressamente a capacidade da genitora para exercer a guarda unilateral da criança, com preponderância sobre o genitor, e afastou a possibilidade de adoção da guarda compartilhada em razão da litigiosidade vivida entre os pais e da inexistência de diálogo salutar na tomada de decisões a favor da criança”2.

Em suma, é pacífico no STJ a possibilidade de se afastar a guarda compartilhada “diante de situações excepcionais, em observância ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente”3

Por isso, devemos repensar essa ideia de compartilhamento automático por imposição da lei e levar em conta que a guarda compartilhada não pode ser exercida quando os guardiões possuem uma relação conflituosa, sob o risco de se comprometer o bem-estar dos menores e perpetuar o litígio parental. Na definição de guarda de filhos menores, é preciso atender, antes de tudo, aos interesses deles (RT 878/271). É preciso reconhecer que há casos específicos, nos quais é inviável a participação de ambos os genitores no cotidiano da criança, a tomada de decisões conjuntas, bem assim, a divisão de obrigações e direitos oriundos da guarda, requisitos estes essenciais para o êxito no compartilhamento.

O interesse maior a ser preservado, na atribuição da modalidade de guarda, é o das crianças. Nessa senda, quando um genitor tem aptidão e o outro não a tem para exercer a guarda dos filhos, muitos tribunais optam pela concessão da guarda em caráter unilateral4.

O que a experiência tem demonstrado é que não é razoável expor a criança a um ambiente tóxico, pois a probabilidade de ocorrência de danos irreversíveis é iminente, o que desaconselha aguardar-se que o pior aconteça para que sejam adotadas providências.

Em conclusão, apesar de a preferência legal pela guarda compartilhada, quando se trata da aplicação do instituto no caso concreto, há cenários em que a completa beligerância entre os genitores impossibilita a sua imposição. Nestas circunstâncias, deve o magistrado atentar ao bem jurídico tutelado, isto é, o filho comum, e conceder a guarda unilateral para aquele que tiver maior aptidão, nos termos do artigo 1.584, § 5º, do Código Civil e à luz dos princípios da proteção constitucional da família, do melhor interesse da criança e da sua proteção integral, com o fito de se evitar efeitos negativos e deletérios junto à prole, ou potencializar conflitos ocasionados pelo fim da relação conjugal, com risco direto aos infantes envolvidos.


1 AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.820.674/RJ, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 20/5/2024, DJe de 4/6/2024.

2 Idem.

3 REsp n. 1.773.290/MT, Relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/5/2019, DJe de 24/5/2019.

4 AGRAVO DE INSTRUMENTO. MENOR. DECISÃO AGRAVADA QUE FIXOU A GUARDA PROVISÓRIA DA CRIANÇA, ATUALMENTE COM QUATRO ANOS DE IDADE, EM FAVOR DE AMBOS OS PAIS. GENITORA QUE PLEITEIA QUE LHE SEJA ATRIBUÍDA A GUARDA UNILATERAL DO INFANTE. ADMISSIBILIDADE. GUARDA COMPARTILHADA QUE PRESSUPÕE PARTICIPAÇÃO ATIVA DE AMBOS OS GENITORES NA VIDA DO FILHO, COM TOMADA DE DECISÕES DE FORMA CONJUNTA. SITUAÇÃO QUE NÃO SE REVELA VIÁVEL NO PRESENTE CASO, DADA A EXISTÊNCIA DE INTENSA ANIMOSIDADE ENTRE AS PARTES. CIRCUNSTÂNCIAS INCOMPATÍVEIS COM O COMPARTILHAMENTO DA GUARDA DO MENOR, AO MENOS EM SEDE DE COGNIÇÃO SUMÁRIA. GUARDA UNILATERAL QUE DEVE SER FIXADA EM FAVOR DA AUTORA, QUE JÁ MANTÉM A GUARDA DE FATO DO FILHO, SEM PREJUÍZO DO REGIME DE VISITAS JÁ FIXADO EM BENEFÍCIO DO GENITOR. ALTERAÇÕES ABRUPTAS DE GUARDA QUE FINDAM POR PREJUDICAR O SADIO DESENVOLVIMENTO DOS FILHOS. DECISÃO REFORMADA. RECURSO PROVIDO. (TJ-SP – AI: 2103542-97.2023.8.26.0000 São José do Rio Preto, Relator: Vito Guglielmi, Data de Julgamento: 02/06/2023, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 02/06/2023)

Autores

  • é doutor em Direito Civil (USP). mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP), membro da Comissão Especial do Senado para Reforma do Código Civil (Relator da Subcomissão de Sucessões), professor e advogado.

  • é mestra em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

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