O exame médico das prostitutas e a atriz dramática Loira Lombazzi
11 de agosto de 2024, 8h00
No início do ano de 1921, o diretor do Dispensário Anti-sifilítico, ligado à Repartição Federal do Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural, em Curitiba, intimou a atriz Loira Di Lombazzi, conhecida como Loira Lombazzi, a submeter-se a exames médicos semanais e inscrever-se no Prontuário das Prostitutas, sob pena de prisão ou deportação do território do Paraná, bem como aplicar-lhe multa administrativa.

Em 28 de março daquele ano, Loira Lombazzi impetrou um Habeas Corpus preventivo na Justiça Federal (processo nº 2.394) [1] contra a referida autoridade administrativa. Negou a condição de prostituta, juntou recortes de jornal, comprovando a sua condição de atriz, e sustentou inexistir base legal para tal procedimento. Findou, requerendo ordem judicial para que cessassem as ameaças de constrangimento ou coação ilegal que estava a sofrer.
Os autos foram ao juiz federal João Batista Costa Carvalho Filho, sergipano que migrou para Paranaguá, em 1892, a fim de exercer a advocacia na cidade portuária e que acabou tornando-se magistrado estadual e depois federal. Da instalação da Justiça Federal no Paraná (1891) até a sua extinção por Getúlio Vargas (1937), apenas um juiz federal respondia pela jurisdição, havendo um substituto, mas com competência bem limitada.
Costa Carvalho pediu informações e o diretor prestou-as, afirmando ter agido dentro da lei e insistindo na condição de prostituta da impetrante, pois era “residente e coproprietária do bordel estabelecido à rua Voluntários da Pátria nº 6, desta cidade, exercendo, sem rebuços ou disfarces, o meretrício e, ainda mais explorando-o”. Disse, ainda, que estes exames eram a rotina da época, não só no Brasil como nos países mais adiantados.
O juiz federal ouviu Loira Lombazzi em depoimento, quando ela narrou ter 25 anos, negou ser prostituta, afirmou estar vivendo maritalmente e que, por isso, não via razão para cadastrar-se no Dispensário Anti-sifilítico. Manifestou-se o procurador da República pela denegação da ordem e, em 7 de abril de 1921, o magistrado Costa Carvalho proferiu sentença, indeferindo a pretensão da impetrante, porque não havia provas da ameaça de prisão ou deportação e a multa aplicada não era matéria a ser decidida em Habeas Corpus.
Expostos os fatos, vejamos as circunstâncias em que eles ocorreram e as múltiplas facetas que os envolveram
Loira Lombazzi, natural do Rio Grande do Sul, era realmente uma atriz, pertencendo à Companhia Nacional de Teatro, sendo assim reconhecida em recortes de jornais da época que preencheram quatro folhas anexas à petição inicial. Aliás, o teatro daquele tempo era muito mais pujante do que agora, existindo não só nas grandes cidades, como a capital Rio de Janeiro, como nas de menor porte, como Natal (RN). [2] Os artistas em geral, e de teatro em especial, eram mal vistos há um século. Por óbvio, em se tratando de mulheres do teatro, o preconceito ainda era maior.
O segundo fator a ser levado em conta é a Curitiba da época. No censo de 1920, o município contava com apenas 78.986 habitantes. [3] Em uma cidade provinciana, conservadora, provavelmente o diretor da repartição federal recebeu protestos contra a artista ou daquela casa, de setores mais conservadores.
Mas o que teria levado o diretor apontado como autoridade coatora, gestor do Dispensário Anti-sifilítico, a intimar a artista a fazer exames? Os que nasceram antes de 1960 não terão dificuldades em responder. Para os mais novos, esclareço.
As relações sexuais podiam transmitir doenças venéreas, como a sífilis, que se transmite através de relações sexuais e, à época, levava à morte. Além dela, outras existiam, menos agressivas, como a gonorreia. Décadas depois, a penicilina deu cura àquele mal. Por ser fatal, as prostitutas eram obrigadas a submeter-se a exames de saúde periódicos, a fim de evitar a contaminação de seus clientes. Não se esqueça que estamos a analisar caso de 1921, época de grande repressão sexual, em que a zona de meretrício estava em quase todas as cidades, frequentemente em bairros afastados e com a obrigação das casas identificarem-se através de uma luz vermelha na entrada.
Pois bem, inconformada com a ordem administrativa, Loira Lombazzi ingressou em Juízo e o fez pessoalmente, sem advogado. O curioso é que a petição inicial foi datilografada, algo raro na época, e era visivelmente escrita por profissional do Direito. Prova disto é o seu clássico final: “Por ser de Justiça E.R.D”, ou seja, espera receber deferimento. O subscritor, certamente, não quis assinar, talvez para evitar confronto com o diretor ou, quem sabe, para não evidenciar a condição de frequentador da “casa de tolerância”, como eram chamados tais estabelecimentos.
Outro detalhe a merecer registro, é o fato de que entre a propositura da ação e a sentença passaram-se apenas 24 dias. Isto revela a existência de uma Justiça extremamente ágil, muito diferente da existente agora, com seus longos arrazoados e infindáveis recursos.
Tudo somado leva a uma inevitável pergunta: o que ocorreria se a situação acontecesse hoje, no ano de 2024? A resposta é simples, não aconteceria.
Com o passar dos anos os artistas de teatro conquistaram reconhecimento e espaço. A prostituição continua a existir, mas de forma diversa daquela de 1921. Salvo em cidades de locais muito distantes, não existe mais o lupanar ou casa de meretrício, mas sim estabelecimentos comerciais com outras características, muito embora com a finalidade de promover encontros de profissionais do sexo. Além disto, muitas mulheres que exercem tal atividade, agora chamadas de garotas de programa, fazem-no individualmente.
Por outro lado, os homens surgiram no mercado, sendo o filme Perdidos na Noite, dirigido por John Schlesinger, com Dustin Hoffman e Jon Voigh, de 1969, um precursor dos novos tempos. A sífilis foi vencida pela penicilina, que foi descoberta em 1928 e depois foi tendo seu uso aprimorado. Assim, nenhuma autoridade administrativa ousaria fazer tal exigência. Consequentemente, o Judiciário não receberia tal tipo de reivindicação.
O caso deve ser analisado com a visão de quando ocorreu (1921) e não com as práticas e costumes de hoje. Finalmente, não será demais registrar que na rua Voluntários da Pátria nº 6, em Curitiba, onde se encontrava a casa suspeita, hoje há um comércio, estando totalmente descaracterizada.
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[1] BRASIL. Memória online da Justiça Federal do Paraná. Curitiba – HC.
Disponível em: https://memoriaonline.jfpr.jus.br/index.php/habeas-corpus-no-2-394-2. Acesso em: 7 ago. 2024.
[2] Melo, Ângela Maria de Carvalho. UM SÉCULO DE CONTRIBUIÇÕES PARA A HISTÓRIA DO TEATRO NA CIDADE DO NATAL: 1840-1940. Disponível em: http://www.edufrn.ufrn.br/bitstream/123456789/289/1/UM%20S%C3%89CULO%20DE%20CONTRIBUI%C3%87%C3%83O%20PARA%20A%20HIST%C3%93RIA%20DO%20TEATRO%20NA%20CIDADE%20DO%20NATAL%20-%201840%201940.pdf. Acesso em: 7 agol. 2024.
[3] IBGE. Disponível em: https://memoria.ibge.gov.br/historia-do-ibge/historico-dos-censos/censos-demograficos.html. Acesso em: 07 ago. 2023.
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