Por uma pauta de patrimônio cultural nos tribunais brasileiros
10 de agosto de 2024, 8h00
A definição de uma pauta representa a concretização da escolha que se faz sobre coisas julgadas relevantes na vida das pessoas. A locução adverbial “em pauta” significa que alguma coisa importante deve ser debatida ou está na ordem do dia.
No contexto jurídico, colocar em pauta significa que determinado tema será levado a julgamento pelo Poder Judiciário.
Nos últimos tempos os tribunais brasileiros têm definido, em datas previamente escolhidas, pautas temáticas com o objetivo de levar a julgamento processos (na maioria das vezes paradigmáticos) que guardam pertinência com assuntos considerados importantes pelas cortes, que aproveitam a oportunidade para produzir jurisprudência referencial para os jurisdicionados, sinalizando seu posicionamento na afirmação de direitos.
No mês de março de 2024, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, em atitude louvável, julgou uma série de ações voltadas aos direitos femininos em sessão temática em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, comemorado em 8 de março. Na pauta estavam assuntos como o tratamento dado às vítimas de violência sexual, planejamento familiar e licença-maternidade.
Também são registrados, no âmbito da justiça brasileira, julgamentos temáticos em diversas outras áreas consideradas de relevo, como o meio ambiente natural, a saúde, pessoas portadoras de necessidades especiais etc.
O Tribunal de Justiça do Piauí, por exemplo, divulgou o calendário de pautas temáticas do 2º grau de jurisdição para o ano de 2024, envolvendo os temas violência doméstica e familiar, direito do consumidor, judicialização da saúde, infância e adoção e processos relativos aos crimes contra a administração pública, à improbidade administrativa e aos ilícitos eleitorais.
Segundo aquela Corte, “a definição de um calendário com pautas temáticas é uma iniciativa estratégica que tem como objetivo estimular as unidades judiciárias da 2ª instância (gabinetes de desembargadores) a promoverem o julgamento de demandas assertivas e impulsionar o 2º grau do TJ-PI nos requisitos do Prêmio CNJ de Qualidade 2024, trazendo celeridade processual, redução do tempo médio de tramitação e, consequentemente, aumento de baixas processuais e efetiva redução de acervo processual” [1]
Dia Nacional do Patrimônio Histórico
Estamos no mês de agosto e no próximo dia 17 será comemorado o Dia Nacional do Patrimônio Histórico, efeméride que homenageia o jurista, historiador e jornalista mineiro, Rodrigo Melo Franco de Andrade, nascido neste dia, em Belo Horizonte, no ano de 1898, considerado o grande responsável pela consolidação jurídica do tema patrimônio cultural no Brasil, sendo ele o primeiro presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1937, função que ocupou por três décadas.
O Dia Nacional do Patrimônio Histórico é uma data importante e objetiva servir como alerta para que políticas nacionais de preservação cultural no país sejam, de fato, implementadas.
Entretanto, apesar da relevância que se atribui ao tema em todo o mundo e abrigando o Brasil quinze bens considerados patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, além de milhares de sítios arqueológicos, paleontológicos, espeleológicos, bens de valor arquitetônico, além de manifestações culturais tradicionais de enorme valor, desconhecemos tenha havido em nosso país a definição, por qualquer tribunal, de uma pauta voltada especificamente para o julgamento do tema patrimônio cultural, conquanto seja ele expressivo e recorrente em nossa jurisprudência.
O lapso nos afigura como tristemente relevante e talvez revele que o patrimônio cultural brasileiro ainda não tenha despertado, em parte de nossas autoridades judiciárias, o sentimento de que ele não se contenta em figurar como vã promessa no texto de nossa Constituição, que o elegeu como direito fundamental, difuso e intergeracional.
O jurista italiano Fabrizio Lemme [2] ensina que o Direito do Patrimônio Cultural nasce quando o povo adquire consciência de sua própria identidade, de suas raízes, e sente a necessidade de defender os testemunhos de sua história.
Em nosso país, a legislação já assegura ao nosso patrimônio cultural um status protetivo bastante robusto, mas o tema ainda é tratado, na prática, como algo secundário, de somenos importância, o que pode vir a explicar a razão pela qual, até o momento, nunca tenha sido eleito para integrar as pautas temáticas do Poder Judiciário brasileiro.
O Direito do Patrimônio Cultural não se compraz em residir abstratamente nas letras abstratas das normas. Ele exige um matiz implementador efetivo, que depende, em boa parte, da adequada atuação da nossa magistratura.
A verdadeira tutela do patrimônio cultural brasileiro não surgirá como dádiva, senão como conquista.
Carlos Drumond de Andrade já advertia: As leis não bastam. Os lírios não nascem das leis.
Mas tudo tem seu tempo…
Como afirmava sabiamente Rodrigo Melo Franco de Andrade — um homem certamente à frente de sua época — em conferência proferida em São Paulo no ano de 1961 [3]:
O anteparo em verdade eficaz, contra os riscos de danos de qualquer origem a que está sujeito o patrimônio histórico e cultural do Brasil, só pode ser levantado com a elucidação progressiva da opinião nacional. A população brasileira precisa adquirir a compreensão viva e atuante do valor inestimável do acervo cultural que possui e de que não se deve deixar despojar. Nenhuma campanha será mais decisiva em favor de qualquer causa de interesse coletivo do que, para a defesa do espólio herdado de nossos maiores, a criação de um espírito público iluminado e resoluto.
Que este singelo texto possa despertar maior reflexão sobre o assunto e, oxalá, contribuir para uma vindoura e benfazeja pauta temática sobre patrimônio cultural nos órgãos judiciários do nosso país.
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[1] https://www.tjpi.jus.br/portaltjpi/tjpi/noticias-tjpi/2o-grau-divulga-calendario-de-pautas-tematicas-para-2024/
[2] Fabrizio Lemme. Compendio di Diritto dei Beni Culturali. Seconda Edizione. Torino: Umberto Allemandi & C. 2010. p. 13.
[3] In: OLIVEIRA, Franklin de. Morte da memória nacional. Civilização Brasileira. 1967. p. 28-29.
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