Justo Processo

Inflexões sobre a confissão no processo penal brasileiro (parte 1)

Autores

  • é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

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  • é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

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  • é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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  • é desembargador substituto do TJ-PR magistrado auxiliar da presidência do CNJ mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) e professor de Processo Penal (UTP Emap Ejud-PR).

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10 de agosto de 2024, 8h00

No julgamento do AREsp 2.123.334/MG [1], a 3ª Seção do STJ fixou três teses acerca da confissão do acusado no processo penal brasileiro, quais sejam:

1) “A confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu).”

2) “A confissão extrajudicial admissível pode servir apenas como meio de obtenção de provas, indicando à polícia ou ao Ministério Público possíveis fontes de provas na investigação, mas não pode embasar a sentença condenatória.”

3) “A confissão judicial, em princípio, é, obviamente, lícita. Todavia, para a condenação, apenas será considerada a confissão que encontre algum sustento nas demais provas, tudo à luz do art. 197 do CPP.”

O presente artigo tem por objetivo discorrer sobre as teses exaradas nesse acordão emblemático. A primeira parte é direcionada à (in)admissibilidade da confissão no processo penal, ao passo que na segunda parte o debate circundará em torno da valoração da confissão.

Segundo abalizada doutrina [2]:

“Confessar, no âmbito do processo penal, é admitir contra si, por quem seja suspeito ou acusado de um crime, voluntária, expressa e pessoalmente, diante da autoridade competente, em ato solene e público, reduzido a termo, a prática de algum fato criminoso”.

A partir da conceituação acima, podemos traçar importantes diretrizes sobre a confissão no processo penal brasileiro.

Conceitos básicos e o ‘interrogatório de camburão’

A princípio, convém frisar que, diferentemente do processo civil, inexiste confissão ficta em matéria criminal em razão da indisponibilidade dos direitos envolvidos. A robustecer esse entendimento, vale lembrar que o parágrafo único do artigo 186 do CPP preceitua textualmente que o silêncio não implica confissão.

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A confissão é um ato voluntário, vale dizer: somente é válida quando despedida de qualquer meio coercitivo que comprometa a liberdade do confitente.

A confissão pressupõe uma enunciação formal e expressa, que deve ser reduzida a termo pela autoridade competente, seja ela judicial ou extrajudicial. A confissão judicial é aquela concretizada endoprocessualmente, perante o juiz, por ocasião do interrogatório ou tomada por temo nos autos (CPP, artigo 199).

A confissão extrajudicial refere-se àquela que não é realizada em juízo. A título exemplificativo, pode ser colhida em inquérito policial ou em processo administrativo. Precisa necessariamente ser reduzida a termo para ingressar documentalmente no processo penal.

A confissão extrajudicial verbal não é tecnicamente uma confissão. Não obstante, a jurisprudência sempre foi leniente com o “interrogatório de camburão”. Essa nomenclatura é utilizada para referir às entrevistas que policiais costumam fazer com o acusado no momento da abordagem, e posteriormente, quando ouvidos na qualidade de testemunhas dos fatos, reportam às supostas declarações do réu para endossar a hipótese acusatória.

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Trata-se de uma prática deveras problemática. A uma, porque no momento da abordagem, o autuado está emocionalmente frágil e juridicamente desassistido. Essas circunstâncias somadas à pressão policial para que colabore com as investigações anulam a voluntariedade do ato, que é requisito imprescindível da confissão.

A duas, porque antes de qualquer confissão, o acusado tem direito a ser informado da sua prerrogativa de silenciar e, em regra, inexiste garantia de que os interrogatórios de camburão foram precedidos do (constitucionalmente exigido) aviso de Miranda.

O controle de entrada de uma prova no processo penal – plano da admissibilidade – perpassa pelo seu grau confiabilidade. No plano formal, a confiabilidade traduz-se na segurança da forma como a prova foi obtida. No prisma material, a confiabilidade diz respeito à potencialidade de que se possa extrair da prova a reconstrução (aproximativa) dos fatos objeto do processo.

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Transladando o raciocínio para a confissão informal, concluímos que ela não passa pelo exame de admissibilidade para ingresso no processo penal. A sua clandestinidade põe em cheque os meios utilizados para sua obtenção.

Consoante magistério de Prado [3], o filtro de admissibilidade é parametrizado pelo princípio da desconfiança, de sorte que é dever do Estado demonstrar a fiabilidade das provas por ele suscitadas.

A mera palavra dos policiais não é critério idôneo para assegurar que a prova foi obtida licitamente, pois declaração em sentido contrário implicaria provavelmente confissão de práticas criminosas, a exemplo da tortura. De outra banda, a constatação da integridade física dos presos nos laudos periciais não significa ausência de violência, pois as atuais técnicas da chamada tortura científica não costumam deixar lastros visíveis.

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Contudo, na prática, constata-se um verdadeiro estado de negação com relação aos abusos policias [4]. Para se ter uma noção da omissão estatal em torno da matéria, vale pontuar que, segundo dados do CNJ, de um universo de 56 mil casos relatados de tortura, no período entre os anos de 2016 a 2021, menos de 5% foram apurados [5].

No viés material, o conteúdo de uma confissão informal é de grande fragilidade epistêmica, porquanto as declarações do confitente podem, por exemplo, ter sido mercadoria de troca para evitar ou fazer cessar uma tortura.

É bem verdade que a tortura-prova pode se concretizar em qualquer fase da persecução penal, mas o momento mais propício para tal é indubitavelmente a prisão, diante da ausência das instâncias formais de controle. Nesse sentido, nos valemos de trecho do voto do ministro Ribeiro Dantas, nos autos do AREsp 2.123.334:

“Quando o preso já foi adequadamente registrado no sistema de custódia e recebeu a orientação jurídica adequada para, aí sim, ser ouvido pela autoridade policial civil, torna-se mais difícil que a polícia o torture para obter alguma informação, porque nesse momento já há um status de maior formalidade procedimental cujo contorno, embora não seja impossível, é mais oneroso para um policial mal-intencionado. Mais segura ainda é a confissão judicial, feita pelo réu perante o julgador na própria audiência de instrução: nessa situação, o acusado já está obrigatoriamente assistido por seu defensor e colocado diante de um magistrado e um membro do Ministério Público, incidindo, nesse momento, controles por instituições diversas da própria polícia.”

Não obstante, no cotidiano da Justiça Criminal, comumente, o interrogatório judicial tem força probatória aquém do “interrogatório de camburão”. Explicamos. Na fase instrutória do processo, caso o réu decida ficar em silêncio ou negar a conduta criminal, essas circunstâncias serão desprezadas, pois, paradoxalmente, o magistrado opta por confiar em suposta confissão obtida clandestinamente.

Outrossim, é recorrente, nas audiências de instrução e julgamento, que os policiais façam referência à suposta confissão do acusado no momento da abordagem estatal. Em que pese seja o interrogatório ato posterior à oitiva das testemunhas, de sorte que o réu pode, em sede de autodefesa, contradizer a versão dos agentes estatais, é cediço que, em tais situações, em uma típica configuração de injustiça epistêmica testemunhal [6], o magistrado tende a conferir credibilidade à palavra do policial em detrimento da versão do réu por meros preconceitos identitários.

Eis justamente o primeiro ponto de inflexão decorrente do referido AREsp 2.123.334: “A confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu)”.

A parte final da tese acima mencionada tem o desiderato de evitar que o órgão acusatório se valha de qualquer subterfúgio para introduzir no processo a prova inadmissível (entrevista verbal) sob as vestes de uma prova lícita (prova testemunhal, por exemplo).

De fato, seria de pouca valia declarar-se inadmissível a confissão verbal, e, concomitantemente, admitir-se que o seu suposto conteúdo ingressasse na esfera de conhecimento do magistrado, podendo, por conseguinte, interferir no resultado do julgamento.

Estímulo à investigação

O Judiciário, ao fechar suas portas para a confissão informal, parece finalmente abrir os olhos para a tortura-prova, após um longo e inexplicável – mormente diante das inúmeras condenações do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos pela inércia estatal diante das violências policiais, a exemplo do caso Favela Nova Brasília – estado de negação acerca dos abusos policiais.

O abandono da confissão como uma “ferramenta” de investigação, por sua vez, impulsionará as autoridades policiais a efetivamente investigarem os supostos fatos criminosos que chegam ao conhecimento da corporação, mediante o levantamento de todos os elementos informativos que possam ser úteis ao esclarecimento da autoria e materialidade delitiva (artigo 6º, III, CPP)

A confissão extrajudicial precisa ser encarada pelos agentes policiais como um ato formal, nos termos do artigo 199 do CPP. Portanto, precisa ser realizada na delegacia de polícia ou em outro estabelecimento estatal oficial, onde haja livre ingresso dos advogados/defensores. Ademais, o acusado deve ser previamente informado dos direitos que são lhe constitucionalmente assegurados, bem como deve ser lavrado um termo circunstanciado do ato.

O ministro Ribeiro Dantas, relator do AREsp 2.123.33, disse textualmente que um dos estalos para seu voto foi o seguinte pronunciamento da Assembleia Geral das Nações Unidas:

“Interrogatórios devem ocorrer apenas em centros oficiais, e a manutenção de locais secretos de detenção deve ser legalmente abolida. Deverá ser punida qualquer autoridade que prender uma pessoa em um local de detenção secreto ou não oficial. Qualquer evidência obtida de um detento em um local de detenção não oficial não deverá ser admitido em juízo. Nenhuma declaração ou confissão feita por uma pessoa privada de liberdade, a não ser aquela colhida na presença de um juiz ou um advogado, deverá ter valor probatório em juízo, exceto como evidência contra aqueles que são acusados de obter a confissão por meios ilícitos. Deverá ser seriamente considerada a introdução de gravação em vídeo e áudio de procedimentos em salas de interrogatório.”

Em arremate, à luz das teses fixadas no emblemático AREsp 2.123.334, são admissíveis no processo penal: 1) a confissão judicial; 2) a confissão extrajudicial formal, desde que devidamente documentada e feita em um estabelecimento estatal público e oficial.

Ultrapassado o plano da admissibilidade, analisaremos, na próxima semana, as questões atinentes à valoração da confissão.

 


[1] STJ, AREsp 2123334/MG, relator ministro Ribeiro Dantas, 3ª Seção, julgado em 20/06/2024, DJe 02/07/2024.

[2] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 10 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 536.

[3] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p.94-97.

[4] Sobre o referido estado de negação, vide SEMER, Marcelo. Sentenciado o tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p.113-119.

[5] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-apresenta-acoes-para-aprimorar-o-combate-a-tortura-em-prisoes/ , acesso em 03/08/2024.

[6] LACKEY, Jennifer. False confessions and testimonial injustice. In Journal of Criminal Law & Criminology, v. 110, n.1, p. 43-68, 2020, p. 60.

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  • é defensora pública do Estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros, professor de Processo Penal e autor de livros e artigos .

  • é advogado criminalista habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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