Carl Schmitt e as Supremas Cortes durante a ocupação nazista
10 de agosto de 2024, 8h00
Em 1939, quando o jovem canadense de origem dinamarquesa Kim Malthe Bruun tinha 17 anos, a mais brutal e violenta de todas as guerras de que se tem conhecimento estourou e ele testemunhou a profanação de importantes valores humanos por parte de uma potência estrangeira invasora. Após pouco mais de um ano, em 1941, Kim foi ser marinheiro, mas no outono de 1944 desembarcou na Dinamarca, onde ainda residiam muitos de seus familiares e amigos, e entrou no movimento de resistência.
Em 19 de dezembro de 1944, Kim foi preso pelos ocupantes alemães em um apartamento com dois amigos. Ele estava desarmado e carregando apenas seus documentos de identificação. Kim foi enviado para a prisão de Vestre Fængsel e, em abril de 1945, foi condenado à morte e fuzilado.
Era comum, como se sabe, que jovens assumissem a luta contra a ditadura nazista e acabassem morrendo nesse processo. Após o malsinado veredito, o jovem escreveu uma última carta para sua mãe com a seguinte passagem:
“Hoje Jörgen, Niels, Ludvig e eu nos apresentamos diante de um tribunal militar. Fomos condenados à morte. Sei que você é uma mulher forte e conseguirá suportar tudo isso, mas quero que compreenda. Eu sou apenas uma coisa insignificante, e como pessoa logo serei esquecido; mas a ideia, a vida, a inspiração de que estou imbuído continuarão a viver. Você as verá em todo lugar- nas árvores na primavera, nas pessoas que encontrar, num sorriso carinhoso” [1].
O nazismo e a República de Weimar
A história de Kim Bruun ilustra bem como operavam os regimes de exceção que os nazistas instalaram nos países que invadiram, e os efeitos que suas administrações tiveram sobre a população local e na deformação do Estado de Direito.
Foi tentando explicar como se organizou a burocracia jurídica que legitimou e permitiu que milhões de pessoas fossem sistematicamente assassinadas que o professor da Universidade de Amsterdam Mark Venema [2] coordenou um excelente estudo sobre as Supremas Cortes e os sistemas judiciais europeus durante a ocupação nazista.

O livro, que é composto de 13 capítulos, é certamente um dos mais detalhados sobre o assunto e ainda não foi traduzido para o português. Foi justamente por isso que, partindo de uma releitura crítica do livro de Venema, escrevi um artigo em conjunto com os professores Lenio Streck e Gabriel Wedy. Artigo que estará na próxima edição da Revista Rechtd – Revista de estudos constitucionais, hermenêutica e Teoria do Direito.
No artigo, analisamos as consequências práticas da ética nazista na decadência da República de Weimar e na sua ocupação pelo nacional socialismo, bem como essas consequências se deram nas nações que foram ocupadas pelos nazistas. O ensaio se divide em dois grandes capítulos: O primeiro busca analisar como se deu e o que motivou a nazificação da república de Weimar, quem foram seus mentores intelectuais no campo jurídico e como as instituições alemãs, especialmente o Reichsgericht [3], foram dominadas e ocupadas pelos nazistas. O segundo capítulo busca compreender como esta ocupação se deu no exterior e como os juízes e as Supremas Cortes se comportaram diante da referida ocupação de seus países.
Carl Schmitt: o jurista do Reich
Carl Schmitt, que hoje em dia vêm sendo revisitado por pensadores iliberais de vários aspectos, foi um dos grandes juristas por trás da legitimação jurídica do regime nazista e de suas atrocidades, algo como um Francisco Campos (jurista que escreveu o AI- 1, dentre outros documentos da ditadura do estado novo e da ditadura militar) do seu contexto.
O jurista se dedicou ao estudo do movimento político liberal e acreditava que o liberalismo e a democracia eram mutuamente excludentes. Schmitt argumentava que as democracias liberais não buscavam uma solução para o bem-estar da população, mas sim atendiam aos interesses privados de grupos específicos.
Segundo o autor, a democracia de verdade só seria alcançada nas mãos de um soberano, que teria a sensibilidade e a percepção de encarnar em si as vontades e os desejos da população homogênea. Ele foi um crítico do parlamentarismo, pois o considerava antidemocrático, e para ele a democracia somente seria alcançada nas mãos de um soberano com poderes ilimitados que interpretasse a vontade da população e em que os cidadãos fossem homogeneizados por processos de dominação e se necessária até mesmo a destruição dos diferentes [4].
A sua visão sobre soberania é controvertida e remonta as ideias originárias das obras de Thomas Hobbes, para justificar uma ditadura de um soberano superdotado. Segundo a sua lógica, que ele chamou de Decisionismo, o soberano é o criador da lei, e justamente por isso não está vinculado a segui-la, já que ele mesmo a criou. Tribunais, portanto, são subordinados ao Soberano e à sua interpretação da lei. E caso entrem em conflito quem decide é o soberano. (Essa inclusive foi a razão do grande debate de Schmitt com Hans Kelsen, que era judeu). Vejamos seus próprios escritos:
Para o jurista de tipo decisionista, a fonte de todo o ‘direito’, isto é de todas as normas e os ordenamentos sucessivos, não é o comando enquanto comando, mas a autoridade ou soberania de uma decisão final, que vem tomada junto com o comando.
Franz Neumann, jurista que viveu na república de Weimar durante a ascensão de Hitler, constatou que “Não existe mais lei na Alemanha, porque a lei é agora exclusivamente uma técnica de transformar a vontade política do líder em realidade constitucional. A lei não é nada mais do que uma arcanum dominationis” [5].
Schmitt argumentava que o problema da tomada de decisão no sistema liberal era a falta de legitimidade dos grupos que tomavam decisões importantes, que para ele eram o mercado, os sindicatos, os parlamentares e os judeus. Schmitt opunha-se à política parlamentar em que o debate institucional ditava os rumos da sociedade, e por isso ele defendia a necessidade de um líder forte e com poder de decisão que representasse a vontade popular:
“A vontade do povo é naturalmente sempre idêntica à vontade do povo, quando é feita uma opção por meio do sim e do não registrada em milhões de cédulas, ou quando um único indivíduo, mesmo sem eleições, encarna a vontade desse povo, ou é, de algum modo aclamado por ele” [6].
Schmitt sustentou abertamente a emergência da estrutura do poder totalitário no seu trabalho Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus — A situação histórica-intelectual do parlamentarismo atual. Nessa obra, o jurista criticou as práticas institucionais das políticas liberais, argumentando que são justificadas pela fé no discurso racional e na franqueza e que esta é uma postura que claramente entra em conflito com a democracia. Pois isso, segundo ele, acaba excluindo a vontade da população em face de “negociatas tomadas em salas escuras com interesses escusos”. Schmitt também apresentou uma divisão essencial entre a doutrina liberal da separação dos poderes e o que ele acreditava ser a natureza da democracia por si só, a identidade das regras e os governados [7].
Schmitt acreditava ser um defensor da verdadeira democracia, no modelo Rousseauniano. Segundo a sua obra, a ideologia e a vontade popular só poderiam ser devidamente concretizadas com um líder que não prestasse contas a ninguém, nem mesmo à própria lei. Esse líder soberano do Reich acabou sendo personificado na liderança de Adolf Hitler.
A seguir
Na próxima edição da Rechtd detalharemos como as supremas cortes foram aliciadas pelos nazistas e como se mantiveram entre um difícil equilíbrio entre legitimidade e autoritarismo, entre coragem e falta de dignidade. Para isso, a segunda parte do texto o se concentra no estudo das Supremas Cortes sob ocupação nazista, conforme detalhado no livro Supreme Courts under Nazi Occupation.
As cortes constitucionais foram completamente impactadas durante as ocupações, mas em nenhum caso elas foram completamente desmanteladas, mesmo sob os mais fortes regimes de exceção. E em alguns casos inclusive manteve alguns aspectos de autonomia para que continuasse tendo legitimidade diante da população. O leitor que inicialmente buscava paralelos com a crise das democracias constitucionais modernas pode perceber que, ao contrário da lógica interna das democracias liberais contemporâneas, a ocupação nazista traz uma dinâmica diferente, focada na dominação externa e na manipulação judicial para manutenção da ordem e identidade nacional nos territórios ocupados.
O objetivo do nosso artigo fica claro nas palavras do professor Lenio Streck no corpo do ensaio: “os regimes totalitários e as atrocidades cometidas sob o pálio do Direito deveriam ter-nos ensinado que o Direito deve ser mais do que instrumento, técnica ou procedimento”. Com isso, buscamos enfatizar como o direito tratado como mera técnica permite um grau de desumanização burocrática que resulta na morte e na opressão de milhões como no caso do jovem Kim. Aguardamos vocês para a leitura completa.
[1] GAARDER, J. 2013. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 432 p. (p.12)
[2] VENEMA, M. 2022. Supreme Courts under Nazi Occupation. Amsterdam: Amsterdam University Press, 400 p.
[3] Suprema Corte alemã.
[4] SCHMITT, C. 1996. A Crise da Democracia Parlamentar. São Paulo: Scritta, 144 p.
[5] Tradução livre de : We therefore sum up: That law does not exist in Germany, because law is now exclusively a technique of transforming the political will of the Leader into constitucional reality. Law is nothing but an arcanum dominationis. NEUMANN, F. 1986. The Rule of Law. Political Theory and the Legal System in Modern Society. Leamington, 500 p. (p.311)
[6] SCHMITT, C. 1996. A Crise da Democracia Parlamentar. São Paulo: Scritta, 144 p. (p.27)
[7] Embora muitos críticos de Schmitt hoje levam exceção à sua perspectiva autoritária fundamental, a noção que há incompatibilidade entre liberalismo e democracia é uma razão por que seu trabalho continua interessando vertentes à esquerda iliberal.
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