Nova regra para comprovação de feriado local em grau recursal
9 de agosto de 2024, 13h24
Em 30 de julho de 2024, foi publicada a Lei nº 14.939/24, que altera o CPC (Código de Processo Civil) para corrigir a redação defensiva do artigo 1.003, § 6º. A redação original deste dispositivo decorre da Lei nº 13.105/2015, in verbis:
“O recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso.”
Com a vigência imediata da Lei nº 14.939/24, o enunciado do artigo 1.003, § 6º, foi alterado para prever que:
“O recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso, e, se não o fizer, o tribunal determinará a correção do vício formal, ou poderá desconsiderá-lo caso a informação já conste do processo eletrônico.”
Observa-se, assim, uma clara opção do legislador de flexibilizar a regra de preclusão temporal constante do dispositivo original. A mudança não advém de uma atividade criativa acidental do legislador. Em verdade, as discussões envolvendo a comprovação de feriado local estão de há muito lançadas na jurisprudência dos tribunais superiores.
Para facilitar a compreensão dos motivos que ensejaram esta alteração no CPC os seus desdobramentos jurídicos na prática forense, proponho a revisitação — ainda que sucinta — de como a matéria se desenvolveu até aqui.
Durante a vigência do CPC/73, não havia disposição expressa sobre a possibilidade de comprovação de feriado local após a interposição do recurso. Não havia, pois, previsão expressa no código sobre a natureza sanável ou insanável deste requisito extrínseco de admissibilidade recursal.
Bem por isso, Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha defendem que, na vigência do código anterior, era possível ao recorrente comprovar posteriormente a existência de feriado local. Essa prática era justificada pela inexistência de uma regra expressa que atribuísse tal ônus ao recorrente, cuja boa-fé merecia ser preservada. [1]
Diante desta omissão no CPC/73, o STJ adotou uma jurisprudência mais defensiva sobre o tema, passando a exigir a comprovação de feriado local no ato de interposição do recurso na instância de origem, vedando a comprovação posterior. Esse entendimento foi flexibilizado em 2005, no julgamento do AgRg nos EDcl no AgRg no Ag 659.381/RJ, sob relatoria do Ministro Teori Zavascki, que passou a permitir a prova posterior de causa suspensiva ou interruptiva.
Em 2006, a Corte Especial do STJ, no julgamento do AgRg no Ag 708.460/SP, consolidou a necessidade de comprovação no momento da interposição, com a exigência de documentação específica. Contudo, em 2012, o STF, ao julgar o AgRg no RE 626.358/MG, sob a relatoria do Ministro Cezar Peluso, aceitou que a comprovação da tempestividade pudesse ser feita posteriormente em casos de feriado local, partindo do princípio da boa-fé do recorrente.
Essa mudança influenciou o STJ a seguir a nova posição do STF, permitindo a comprovação posterior em sede de agravo regimental, como decidido no AgRg no AREsp 137.141/SE. Buscou a Corte evitar penalizações excessivas e promover maior segurança jurídica no sistema processual, assegurando que os recursos fossem analisados com base no mérito, e não barrados por questões meramente formais, refletindo uma aplicação mais justa e eficaz do direito processual.
Ocorre que, por força do artigo 1.003, § 6º da Lei nº 13.105/2015, a partir de 18 de março de 2016 (data de vigência do CPC) o vácuo normativo até então superado pela interpretação sistemática da jurisprudência foi preenchido, no plano legal, pelo novel artigo 1.003, § 6º, de sorte que o CPC passou a exigir, de forma expressa e categórica, a comprovação da ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso.
Para reforçar ainda mais a tese defensiva fixada no artigo 1.003, § 6º do CPC, as dicções dos artigos 1.029, § 3º, [2] e 1.036, § 2 º [3], reforçou a (equivocada) interpretação de que a intempestividade recursal é vício formal insanável, não aplicando-lhe a regra do artig 932, parágrafo único do CPC, reservado às hipóteses de correção de vício sanável.
Não é por outra razão que o artigo 1.003, § 6º, do CPC foi alvo de efusivas críticas doutrinárias por gerar uma interpretação heterodoxa do Código. O dispositivo crava uma postura rígida e inflexível quanto à comprovação da tempestividade recursal, em claro descompasso com as normas fundamentais do novo sistema processual, cujos princípios da primazia do mérito (artigo 4º), da boa-fé objetiva (artigo 5º) e da cooperação (artigo 6º) conduzem o intérprete à busca pelo conteúdo do litígio — e não pelo rigorismo formal.
Embora o CPC tenha sido modelado para ilidir o excesso de formalismo do CPC/73, o artigo 1.003, § 6º do CPC exige — na contramão do sistema — a prova do feriado local no ato de interposição do recurso, a demonstrar que o novo código se tornou mais formalista do que o anterior .[4] Em idêntica compreensão, Neves argumenta que o § 6º do artigo 1.003 do CPC contradiz princípios fundamentais do CPC/2015, como a primazia do mérito e a boa-fé, sugerindo que a comprovação de feriados locais deveria ser permitida posteriormente. [5]
Por idêntica compreensão, em agosto de 2017 foi editado o Enunciado nº 66 da I Jornada de Direito Processual Civil do CJF: “Admite-se a correção da falta de comprovação do feriado local ou da suspensão do expediente forense, posteriormente à interposição do recurso, com fundamento no art. 932, parágrafo único, do CPC”. [6]
Entendo assistir razão ao enunciado. Não há coerência entre a redação original do artigo 1.003, § 6º do CPC e o sistema processual vigente. Interpretar o atual CPC com ênfase excessiva nos requisitos formais de admissibilidade significa, ao fim e ao cabo, desconsiderar as normas processuais fundamentais mencionadas no artigo 1º do Código. Isso se torna especialmente problemático no contexto da comprovação de feriado local em grau recursal, quando considerado que o Brasil é um país continental, composto por 27 unidades federativas e 5.570 municípios.
Destarte, embora se reconheça a aguerrida tentativa da doutrina de lançar uma hermenêutica mais adequada à exegese do § 6º do artigo 1.003 do CPC, a queda de braço foi perdida, de modo que a jurisprudência do STJ rechaçou o saneamento da tempestividade recursal. A Corte adotou uma interpretação legalista do artigo 1.003, § 6º, considerando que o vício de intempestividade recursal é grave e insanável, consoante artigos 1.029, § 3º, e 1.036, § 2º do CPC.
Primeiramente, no bojo do Agint no AREsp 957.821/MS, relatado pela ministra Nancy Andrighi, a Corte Especial do STJ decidiu em 2017 que a intempestividade é tida pelo Código atual como vício grave e, portanto, insanável. Daí porque não se aplicaria à espécie o disposto no parágrafo único do art. 932 do CPC, reservado às hipóteses de vícios sanáveis. Em sua tese de julgamento, destacou a Corte Especial do STJ que:
“Seja em função de previsão expressa do atual Código de Processo Civil, seja em atenção à nova orientação do STF, a jurisprudência construída pelo STJ à luz do CPC/73 não subsiste 20 CPC/15: ou se comprova o feriado local no ato da interposição do respectivo recurso, ou se considera intempestivo os recursos operando-se, em consequência, a coisa julgada. ” [7]
Assim, a partir da nova posição adotada pelo STJ, não se aplicaria aos casos de comprovação de feriado local em grau recursal a regra de flexibilidade para vícios formais sanáveis do parágrafo único do artigo 932 do CPC. O professor Marinoni defende que o STJ adotou, com o novo CPC, uma postura severa quanto à observância dos prazos, tratando a intempestividade como um obstáculo intransponível. [8]
No julgamento do REsp 1.813.684/SP [9], a Corte Especial voltou a discutir a questão da comprovação de feriado forense. O ponto central era se a “segunda-feira de carnaval” necessitava de comprovação pelo recorrente, como uma certidão comprovando a falta de expediente forense.
A Corte concluiu que feriados forenses não previstos em lei federal não podem ser considerados notórios, exigindo assim a comprovação da suspensão do expediente no tribunal local. No entanto, a decisão teve seus efeitos modulados conforme o artigo 927, § 4°, do CPC, estabelecendo que essa compreensão defensiva da comprovação do feriado local só se aplicará aos recursos interpostos após a publicação do acórdão, é dizer, a partir de 19/11/2019.
O STJ, nada obstante, tem se mostrado receptível à flexibilização dos meios idôneos para comprovar o feriado local. Em 2022, a 3ª Turma da Corte decidiu que a comprovação do feriado local pressuporia a apresentação de cópia da lei ou do ato administrativo do Tribunal local. [10] No ano seguinte, a Corte Especial do STJ adequou-se à jurisprudência do STF (MS 536.114/AM/2019) para interpretar que a cópia do calendário anual de expediente forense, disponibilizada no site do Tribunal local, é documento hábil para comprovar o feriado local. [11]
Vício de tempestividade
A partir do referido precedente de 2017, o STJ, sempre que enfrentou demandas relacionadas à comprovação de feriado local em grau recursal, como a discussão sobre o documento idôneo para tal comprovação e o debate sobre a segunda-feira de Carnaval, ratificou o entendimento de que o vício de tempestividade é insanável.
A tese defensiva do STJ resultou na rejeição de recursos por falta de comprovação tempestiva de feriados locais, mesmo quando o mérito do caso merecia ser apreciado. Hermes Zaneti Jr. [12] afirma que o § 6º do artigo 1.003 acaba por limitar um dos males que que assolam a justiça brasileira de hoje, qual seja, a jurisprudência defensiva, e passa a exigir uma justiça centrada na ótica dos jurisdicionados, privilegiando os julgamentos de mérito.
E foi neste controverso cenário jurisprudencial que surgiu o Projeto de Lei nº 4.563/2021, de autoria do deputado Carlos Bezerra, como solução normativa para essa atecnia do § 6º do artigo 1.003, do CPC. Na proposição original, o PL previa a revogação completa do dispositivo. No entanto, durante o processo legislativo, o Senado, enquanto casa revisora, entendeu que a revogação não seria a melhor solução.
Por isso o PL foi emendado e devolvido à casa iniciadora com a atual redação, segundo a qual o recorrente deverá comprovar o feriado local no ato de interposição do recurso, contudo, se não o fizer, o tribunal determinará a correção do vício formal, ou poderá desconsiderá-lo caso a informação já conste do processo eletrônico.
Entendo que a emenda do Senado foi juridicamente acertada, porque a revogação do § 6º do artigo 1.003 do CPC acabaria por trazer insegurança jurídica quanto ao efetivo momento da comprovação do feriado local. Demais disso, a nova redação se adequa coerentemente à regra geral de saneamento dos vícios formais, em consentâneo com os princípios da primazia da realidade, da boa-fé objetiva, da confiança legítima, da isonomia e da cooperação entre os sujeitos processuais.
A partir da nova redação conferida pela Lei 14.939/24 ao artigo 1.003, § 6º do CPC, os Tribunais deverão determinar a correção do vício formal ou desconsiderar a omissão caso a informação do feriado já conste dos autos. Essa mudança alinha-se aos princípios da boa-fé, da isonomia, da cooperação e da segurança jurídica, promovendo uma justiça mais acessível e menos formalista, fundamental para um sistema judicial mais justo e eficiente. [13]
No que cinge ao momento de aplicação do novo entendimento, os artigos 14 e 1.046 do CPC veiculam norma de direito intertemporal segundo a qual, em regra, a nova lei processual se aplica imediatamente aos processos em curso.
À evidência, considerando que o CPC adotou a teoria do isolamento dos atos processuais — segundo a qual cada ato deve ser considerado separadamente dos demais para o fim de determinar qual a lei que o regerá (princípio do tempus regit actum) —, a nova regra flexível do § 6º aplicar-se-á imediatamente aos processos em curso, desde que pendente de intimação do recorrente, respeitando-se os efeitos já produzidos (Cunha, 2016). [14]
Neste particular, fixou o STJ que: “se a intimação se deu na vigência da lei nova, será ela que vai regular integralmente a prática do novo ato do processo, o que inclui o cabimento, a forma e o modo de contagem do prazo.” [15].Objetiva-se, assim, salvaguardar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, enfim, os efeitos já produzidos no processo em curso.
Com a nova lei, espera-se uma alteração imediata na jurisprudência dos tribunais. Se a redação inflexível do antigo artigo § 6º do artigo 1.003 não permitia ao julgador autorizar o saneamento da comprovação de feriado local, a nova redação deixa cristalino que o vício formal de tempestividade recursal não só pode, como deve, ser objeto de saneamento.
A nova redação do artigo 1.003, § 6º do CPC, introduzida pela Lei nº 14.939/24, representa um avanço significativo na harmonização do sistema processual brasileiro com os princípios da primazia do mérito, da boa-fé objetiva e da cooperação entre as partes. A flexibilização da comprovação de feriado local visa evitar que questões meramente formais impeçam a análise do mérito dos recursos, promovendo uma justiça mais acessível e eficiente.
Com a aplicação imediata aos processos em curso, conforme os princípios do direito processual intertemporal, espera-se uma adaptação rápida e efetiva dos tribunais às novas diretrizes, garantindo maior segurança jurídica e equidade nas decisões judiciais. Aguardemos, então, a reversão dos precedentes firmados sobre o tema, com a expectativa de que a jurisprudência se alinhe à nova normativa, permitindo o saneamento da tempestividade recursal quando necessário.
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[1] DIDIER JR., Fredie; DA CUNHA, Leonardo Carneiro. Curso de Direito Processual Civil. v. 3. 13. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 122.
[2] Art. 1.029, § 3º, CPC. O Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça poderá desconsiderar vício formal de recurso tempestivo ou determinar sua correção, desde que não o repute grave.
[3] Art. 1.036, § 2º, CPC. O recorrente deverá demonstrar a existência de repercussão geral para apreciação exclusiva pelo Supremo Tribunal Federal.
[4] USTÁRROZ. Daniel. A comprovação do feriado local no processo civil: art. 1.003, § 6º, CPC. Disponível em: https://spud.adv.br/2021/04/a-comprovacao-do-feriado-local-no-processo-civil-art-1-003-%C2%A7-6o-cpc/. Acesso em: 16 jul. 2024.
[5] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil – volume único. 8. ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016, p. 1528.
[6] Conselho da Justiça Federal. Jornada de Direito Processual Civil. Enunciado n. 66. Brasília: CJF, 2016.
[7] STJ. Corte Especial. AgInt no AREsp 957.821/MS.
[8] MARINONI, Luiz Guilherme. Novo Código de Processo Civil Comentado. 3. ed. São Paulo: RT, 2017, p. 470.
[9] STJ. Corte Especial. REsp nº 1.813.684/SP.
[10] STJ. 3ª Turma. AI no ED no REsp 1941.861.
[11] STJ. Corte Especial. Emb. Div. No REsp 1927.268.
[12] ZANETI JR., Hermes. Novo Código de Processo Civil comentado. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 1359.
[13] VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 79.
[14] CUNHA, Leonardo Carneiro da. Direito intertemporal e o novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
[15] STJ. AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 785.269 – SP (2015/0236257-0).
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