Opinião

Não existe investigação simples

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9 de agosto de 2024, 21h42

Imagine o seguinte caso, diz o professor de Processo Civil a uma turma de estudantes. A esposa faz ginástica na pequena varanda do apartamento onde mora com o marido. Os filhos não moram mais com o casal. O cônjuge interrompe a atividade toda manhã, gerando um conflito doméstico. Depois de meses, a esposa busca auxílio da Justiça. Com a imagem dessa pequena varanda em sua mente, o juiz precisa decidir o caso. Mas o pedido da esposa surpreende o juiz: ela não quer expulsar o marido de casa — são 40 anos dividindo a vida e o teto. Ela não quer uma separação de corpos ou algo do tipo. Só deseja que o juiz invente algum procedimento de controle contra os impulsos do varão (o termo usado na sentença), uma ordem oficial que não tenha que vir dela própria — jogada sábia, coisa inexistente na lei escrita. O pedido da esposa é julgado procedente.

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Esse caso algo picaresco aconteceu. Foi julgado pelo chamado Juizado Especial de pequenas causas. O objetivo do professor ao contar o caso foi elucidar um fato que passa despercebido ao estudante que acaba de ingressar na escola de direito: não existem causas pequenas. Pequenas causas é um nome infeliz, ressaltou o professor. Por banal que pareça, a causa nunca é pequena ou simples para quem procura o auxílio da Justiça.

Da mesma forma, não existem investigações simples, eu diria ao profissional que se depara com esse desafio na vida profissional, seja o gerente jurídico da empresa que solicita a providência investigativa, o advogado que acompanha as diligências, a consultoria engajada para prover o suporte técnico. Quando surgem alegações de irregularidades envolvendo uma empresa, é esperado que os seus administradores conduzam uma investigação que deve ser sempre minuciosa. Não importa o quão simplificado o contexto possa parecer à primeira vista.

Fomos procurados uma vez pelo diretor jurídico de uma empresa que havia assumido o seu cargo há pouco tempo. Ele contou que, ao rever o histórico de casos recebidos pelo canal de denúncias, identificou uma investigação interna contra o gerente da área de compras. A investigação havia sido arquivada por falta de provas, mas o novo diretor jurídico entendeu ser o caso de reavaliá-la.

Quando assumimos a investigação, descobrimos que o maior problema não foi a falta de prova, mas a falta de recursos utilizados na produção da prova, ou seja, as limitações — compreensíveis — do time interno de investigações no que diz respeito às ferramentas que poderiam ser usadas na apuração do fato. Assim, nossos trabalhos começaram com:

  • (i) coleta forense de dados armazenados em computadores, celulares, servidores, e-mails;
  • (ii) recuperação de dados deletados e remoção de arquivos sistêmicos, ou seja, arquivos que não seriam necessários para o time de investigação;
  • (iii) carregamento dos dados em nossa plataforma de revisão e busca de palavras-chaves.

Contratação de escritórios era o problema

Em paralelo, nossa equipe de contabilidade forense procedeu ao teste de algumas operações financeiras relacionadas à denúncia, cruzando os resultados da análise contábil com os contratos que em tese amparavam tais operações.

A maioria dos contratos dizia respeito a contratações de escritórios de advocacia. Mas foi uma troca de mensagens em particular — entre o gerente de compras e o advogado de um escritório que almejava ser sócio — que gerou o fio a ser puxado por nós na condução da investigação, revelando um esquema bem estruturado de kickback — quando o fornecedor (no caso, o escritório de advocacia) “chuta” de volta para o funcionário parte do dinheiro recebido irregularmente numa contratação.

A investigação, apoiada pelo novo diretor jurídico e corroborada pelo diretor presidente da empresa, levou à demissão do gerente investigado e de outros funcionários. Mais que isso: levou à demissão por justa causa do diretor responsável pela área, tendo sido comprovado também o seu envolvimento no esquema de fraude.

Spacca

Em casos assim, ou quando nossos serviços envolvem a “simples” coleta e análise de e- mails, ouvimos, às vezes, que a investigação foi “muito fácil”. Por mais simples que pareça ser, um mero e-mail ou uma mensagem de celular, desde que coletada e preservada com rigor forense, pode deflagrar esquemas complexos de fraude corporativa, quando não basta por si só a comprovar outras hipóteses de má conduta corporativa — assédio, suborno, corrupção, apropriação indébita, desvio de ativos, entre outras.

A imprescritibilidade do rigor forense na coleta e preservação da cadeia de custódia foi reforçada recentemente pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que decidiu, por unanimidade, que provas obtidas por meio de capturas de tela de mensagens no WhatsApp são inválidas em processo penal quando não forem adotados procedimentos para assegurar a idoneidade e a integridade dos dados extraídos. (AgRg no HC 828054 – RN (2023/0189615-0), Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, DJU 23.04.2024)

A investigação nunca é simples, sobretudo para quem sofre os efeitos do dano.

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