Direito Eleitoral internacional: houve tudo na Venezuela, menos eleição
9 de agosto de 2024, 6h04
Há uma percepção clara da comunidade internacional sobre a ausência de legitimidade da eleição da Venezuela; não por acaso. É importante compreender o papel das instituições em um contexto de “recessão democrática”, para usar a expressão popularizada por Larry Diamond.

As crises políticas, quando graves o suficiente, revelam a própria função das instituições, pouco percebida em tempos de normalidade. Para dizer de outra forma, dá-se pouco valor às instituições quando a democracia funciona bem.
Estado democrático de Direito e sua ligação com a proteção dos direitos humanos, direito eleitoral e Justiça Eleitoral estão dentre esses mecanismos e engrenagens que contêm a violência e permitem o convívio social, em um diálogo presente de fontes normativas nacionais e internacionais.
Em razão disso, há um consenso segundo o qual as inelegibilidades (impedimento de participação nas eleições), por exemplo, devem estar contidas em um espaço de absoluta excepcionalidade. É assim para a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos e para a Comissão de Veneza.
Não raro, as hipóteses de inelegibilidades são “ampliadas” para impedir opositores . É o que se vê na Venezuela. A fraude na eleição começou com a ilegítima exclusão dos nomes relevantes da oposição. O cenário de “recessão democrática” estava apresentado muito antes da fase de votação.
Foi nesse cenário que governos estrangeiros buscaram no Acordo de Barbados (Acordo Parcial sobre a promoção dos Direitos Políticos e Garantias Eleitorais para Todos) com a Venezuela para criar as condições mínimas para as eleições presidenciais de 2024. A ideia era garantir a realização de processos internos da seleção de candidatos para a eleição, um amplo processo de registro eleitoral, existência de observação eleitoral internacional, em contraposição à liberação do governista Alex Saab e flexibilização das sanções internacionais contra o regime de Maduro. Apesar da iniciativa, a Venezuela foi hostil em relação aos observadores internacionais. Outro sinal claro do que viria a acontecer.
A opacidade das instituições eleitorais é um risco para a sobrevivência de um país e a integridade eleitoral não é tema estritamente local. A Venezuela é o melhor exemplo. Hoje o mundo conectado em rede e unido pelo ideário de respeitos aos direitos humanos, dentre os quais os direitos políticos assumem uma especial fundamentalidade (outra lição mitigada), não poupará os esforços do power of embarrassment do direito internacional dos direitos humanos para coonestar lideranças e países que voltem suas costas para as práticas democráticas.
Sob esse aspecto, o caso venezuelano é didático como objeto de estudo, porque se presenciou:
1. distribuição generosa de inelegibilidades para opositores como a decisão judicial para Maria Corina Machado (após sua vitória da Primária de 2023 com 90% dos votos ) e Corina Yoris do pleito, dentre outros, como Tomás Guanipa, Carlos Ocariz, José Fernandez, Juan Carlos Caldera;
2. falta de independência do organismo eleitoral com dissolução e nomeação de seus integrantes pelo governo logo após a vitória da Primária de 2023 e alterações repentinas no calendário eleitoral;
3. proibição das missões de observação internacional independentes, com a admissão apenas da ONU e Carter Center;
4. proibição de fiscalização da eleição e contagem pelos partidos de oposição;
5. graves obstáculos para a registro e atualização dos 5 milhões de eleitores no estrangeiro e de cerca de 1 milhão de venezuelanos em território nacional que não puderam atualizar seus domicílios e alterar seus centros de votação, como denunciado na fase pré-eleitoral pela Transparencia Electoral e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos;
6. detenções arbitrárias de apoiadores da oposição e da população em geral, diminuição do espaço cívico, conforme relato do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, Volker Turk, em informe de junho de 2024 ;
7. falta de publicação das atas;
8. desrespeito aos padrões mínimos de respeito aos direitos políticos e às noções mais básicas de integridade eleitoral;
9. exclusão arbitrária da participação dos partidos políticos e intervenção na direção de agremiações por decisão do Conselho Nacional Eleitoral;
10. ambiente de restrição à liberdade de atores políticos, organizações da sociedade civil e mídia, abuso do poder político pelo governo de Maduro, entre muitas outras irregularidades atestadas pelo Carter Center.
Brasil
O desatino nas eleições na Venezuela só reafirma a excelência da Justiça Eleitoral brasileira e a qualidade de nosso sistema eleitoral — modelo de gestão, integridade e tecnologia, sob escrutínio de partidos e da sociedade civil.
A mobilização internacional e os esforços da Plataforma Unitária Democrática (PUD) e o comando da campanha de Edmundo Gonzales fizeram um esforço extraordinário para digitalizar mais de 81% das atas e colocá-las à disposição do mundo. Com essa porcentagem, Edmundo Gonzales atingiu 7.119.768 votos, enquanto Maduro obteve 3.225.819 (30%).
O silêncio do oficialismo venezuelano e a indisposição à transparência não deixam dúvida sobre a violação da realização de eleições “periódicas, livres, justas e baseadas no sufrágio universal e secreto como expressão da soberania do povo, o regime pluralista de partidos e organizações políticas, e a separação e independência dos poderes públicos” como exige a Carta Democrática Interamericana.
Em um ambiente de recessão democrática e ataque à institucionalidade eleitoral, o uso dos Tratados Internacionais e jurisprudência dos órgãos do Sistema Internacional de Direitos Humanos é porto seguro para os organismos eleitorais. Cumpre também ressaltar que cabe aos juízes eleitorais brasileiros o exercício de sua função precípua de juízes interamericanos, tal como determina o Conselho Nacional de Justiça e a melhor doutrina nacional.
A fraude está caracterizada e tem sido apresentada ao mundo sem retoques por diversas fontes fidedignas. No Brasil, a Transparencia Electoral, por intermédio de seu Diretor, Leandro Querido, virá para apresentar seus informes.
A eleição da Venezuela demonstra que uma ideia de uma soberania alargada dos Estados, em que tudo é assunto interno e paroquial, não mais subsiste. As eleições estão integradas ao Sistema Internacional de Direitos Humanos em que os Tratados Internacionais sobre o tema se integram como elemento normativo nacional. Para insistir, o assunto da Venezuela não é algo que possa ser tratado como “interno”; não é. E o Brasil tem um papel fundamental para cobrar respeito aos Tratados Internacionais e garantir que o real resultado da eleição prevaleça. A conivência com a fraude eleitoral é inaceitável.
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