Opinião

Do manto tupinambá no Brasil e da proteção dos conhecimentos tradicionais

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8 de agosto de 2024, 11h23

Um manto tupinambá que fazia parte da coleção etnográfica do Museu Nacional da Dinamarca (Nationalmuseet) há três séculos retornou ao Brasil após solicitação do povo Tupinambá de Olivença. O artefato fará parte do acervo perdido no incêndio que destruiu o Museu Nacional, localizado no Rio de Janeiro, em 2018 [1]. Mas como essa importante e necessária repatriação cultural dialoga com a propriedade intelectual?

Conhecimentos tradicionais e expressões culturais tradicionais [2]

Todos os conhecimentos, habilidades, inovações ou práticas desenvolvidas em um contexto tradicional que são mantidas e transmitidas de geração em geração e que fazem parte do estilo de vida dos povos indígenas e comunidades locais [3], moldando sua identidade cultural ou espiritual, compõem o que chamamos de conhecimentos tradicionais (CT). A título de exemplo, podemos citar técnicas de agricultura, pesca, de gestão da água, conhecimentos sobre remédios tradicionais e biodiversidade.

Muitas das comunidades indígenas e locais possuem também formas únicas de expressão artística, o que pode incluir artesanato, música, dança, pintura, escultura, contos e outros elementos culturais e simbólicos que refletem sua identidade, história, crenças e valores. No contexto da propriedade intelectual, são comumente chamadas de expressões do folclore ou expressões culturais tradicionais (ECT).

O conhecimento tradicional e as expressões culturais tradicionais são geralmente considerados pelos sistemas convencionais de propriedade intelectual como parte do domínio público, e, portanto, livres para uso por qualquer pessoa. Povos indígenas, comunidades locais e muitos Estados argumentam que, no entanto, isso propicia seu uso indevido e exploração indesejada.

No âmbito do Direito Internacional Público, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007 [4] reconhece os direitos humanos iguais dos povos indígenas a todos os outros povos contra qualquer forma de discriminação e estabelece, em seu artigo 31 que:

“1. Os povos indígenas têm o direito de manter, controlar, proteger e desenvolver seu patrimônio cultural, seus conhecimentos tradicionais, suas expressões culturais tradicionais e as manifestações de suas ciências, tecnologias e culturas, compreendidos os recursos humanos e genéticos, as sementes, os medicamentos, o conhecimento das propriedades da fauna e da flora, as tradições orais, as literaturas, os desenhos, os esportes e jogos tradicionais e as artes visuais e interpretativas. Também têm o direito de manter, controlar, proteger e desenvolver sua propriedade intelectual sobre o mencionado patrimônio cultural, seus conhecimentos tradicionais e suas expressões culturais tradicionais.

2. Em conjunto com os povos indígenas, os Estados adotarão medidas eficazes para reconhecer e proteger o exercício desses direitos.”

Propriedade intelectual

A proteção da propriedade intelectual apresenta dois aspectos, um defensivo e outro positivo que, resumidamente, se relacionam, respectivamente, a 1) evitar o uso indevido, cópia, adaptação ou apropriação indébita da sua propriedade por terceiros sem autorização e 2) reconhecer e exercer direitos baseados na faculdade de usar, gozar e dispor dela.

Spacca

Nesse sentido, proteger os CT e ECT tem como objetivo impedir que pessoas de fora da comunidade adquiram direitos de propriedade intelectual sobre eles (aspecto defensivo) e habilitar as comunidades a promoverem os seus conhecimentos tradicionais, a controlarem as suas utilizações e a se beneficiarem com sua exploração comercial, se for o caso (aspecto positivo).

Embora para muitas comunidades os conhecimentos tradicionais (o que inclui o manejo de recursos genéticos) e as expressões culturais tradicionais façam parte de um patrimônio único e integrado, se considerarmos as normas vigentes do sistema de propriedade intelectual, esses ativos intangíveis suscitam questionamentos diversos, podendo exigir soluções distintas: inovações baseadas em CT podem se beneficiar da proteção de patentes, indicações geográficas ou serem protegidas como segredo comercial, enquanto ECT podem ser asseguradas por marcas ou direitos autorais, explicativamente.

A proteção também pode incluir formas não proprietárias, como direitos morais, esquemas de compensação equitativa e proteção contra concorrência desleal. No entanto, o conhecimento tradicional em si, frequentemente oral e/ou ritualístico, não é protegido pelos institutos convencionais de PI, razão pela qual vários Estados nacionais e comunidades indígenas advogam pela criação de regras específicas e adaptadas para esses tipos de conhecimento.

Manto tupinambá e seu regresso

Confeccionado com plumagem de Guará fixada em uma trama de fibras naturais utilizando uma técnica de costura ancestral dos povos originários do Brasil, o manto tupinambá pode ser visto objetivamente, por quem não faz parte da comunidade indígena, como uma obra de arte, uma forma de expressão artística. O que, considerando o ordenamento jurídico brasileiro, já é capaz de garantir direitos de propriedade intelectual, minimamente por direitos autoriais.

Se levarmos em consideração seu material — o Guará é uma ave com penas vermelhas, típica do litoral da Bahia — e o saber-fazer envolvido na técnica de costura aplicada, poderíamos pensar estar diante de uma possível proteção por indicação geográfica do tipo denominação de origem, uma vez que as características do manto se devem essencialmente ao meio geográfico, tanto por fatores naturais quanto humanos.

Mas, para além de sua impressionante estética e de suas qualidades únicas, existe uma outra camada, fundamental, que não está contemplada pelas formas tradicionais de proteção à PI. Para o povo tupinambá, o manto não é um mero objeto e, muito menos, visto como produto. Na realidade, ele é considerado uma figura encantada, uma memória transcendental capaz de conectá-los diretamente com seus ancestrais.

Segundo Glicéria Tupinambá, o manto tem espiritualidade e a própria possibilidade de retorno do item sagrado ao Brasil se deu através de uma escuta [5]. Nesta manifestação, o manto pediu ao Cacique Babau que fizesse uma carta solicitando seu regresso ao país. A vinda do manto representa o desfecho de uma negociação complexa envolvendo o Museu Nacional brasileiro, o Itamaraty, a Embaixada brasileira na Dinamarca e líderes indígenas brasileiros como a própria Glicéria Tupinambá, o cacique Babau e Jamopoty Tupinambá [6].

Paulo Pinto/Agência Brasil

De acordo com a nota divulgada pelo Conselho Indígena Tupinambá de Olivença (Cito) [7], havia sido acordado que o manto seria recebido no Brasil com uma cerimônia coordenada pelos próprios tupinambás, para o bem espiritual do povo e do próprio artefato, como seus anciãos orientavam. No entanto, o manto desembarcou no Brasil sob esquema de sigilo, sem aviso à comunidade tupinambá que, quando tomou conhecimento de sua chegada, também foi informada de que seria inviável organizar uma recepção antes da abertura ao público. A nota ainda declara:

“O manto retornou para nós, mas ainda não foi recepcionado pelo nosso povo de acordo com nossas tradições. Este manto de mais de trezentos anos é um ancião sagrado que carrega consigo a história e cultura de nosso povo, como foi transmitido para nós por Amotara, nossa anciã.”

Tomando como base o que a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi) entende como conhecimentos tradicionais e expressões culturais tradicionais, não cabe qualquer dúvida de que as tradições e rituais em questão se enquadram nessa categoria. Assim como não há dúvida de que a reivindicação da comunidade tupinambá é legítima e, em teoria, estaria resguardada pela proteção de CT e ECT.

Esse imbróglio, no entanto, explicita os limites das normas existentes sobre o tema e uma de suas possíveis consequências: a frustração de toda uma comunidade por não conseguir manifestar sua cultura, reforçar sua identidade, honrar sua memória e celebrar a repatriação do que é seu por lugar de origem e direito.

Considerações finais

Notoriamente, as questões relacionadas à propriedade intelectual dos povos indígenas e comunidades locais, embora possam tangenciar ou até mesmo intersectar as categorias estabelecidas de PI, muitas vezes apresentam dimensões que se sobrepõem a outras questões culturais, o que complexifica a proteção efetiva de seus CT e ECT.

A proteção dos conhecimentos tradicionais ainda é um grande desafio e está em constante evolução, tendo recebido cada vez mais atenção em fóruns internacionais. Em maio de 2024, por exemplo, os Estados membros da OMPI adotaram um tratado histórico, o primeiro a abordar a interface entre propriedade intelectual, recursos genéticos e conhecimento tradicional associado, e a incluir disposições especificamente para os Povos Indígenas e as comunidades locais [8].

Os museus e instituições culturais também desempenham um papel importante na preservação, salvaguarda e promoção de coleções de CT e ECT, como filmes, fotografias, gravações de som e manuscritos que documentam a vida das comunidades, suas expressões culturais e sistemas de conhecimento. Contudo, certamente ainda há muito a ser feito tanto como boas práticas nessas instituições, como em termos de arcabouço jurídico internacional para conseguirmos evitar que casos como o ocorrido com o manto tupinambá se repitam.

As comunidades indígenas e locais têm o direito de preservar e promover suas práticas culturais tradicionais como parte de sua identidade e a propriedade intelectual pode, sim, vir a ser uma ferramenta útil para esse fim. É necessário, no entanto, que o uso estratégico dos diferentes tipos de proteção à PI já existentes seja disseminado e que novos mecanismos, pensados com a participação efetiva de representantes desses grupos, propostos. Essas ações são urgentes para que nossos povos originários usufruam de seus direitos e para que o Brasil lide de maneira mais responsável com o longo passado colonial que ainda tem pela frente.

 


[1] ZIMMERMANN, Dayane. Manto Tupinambá chega ao Rio: integrante do grupo de trabalho do ministério dos povos indígenas para a recepção do manto alega que que o item não está sendo tratado com o cuidado cultural que lhe é devido. G1. Rio de Janeiro. 10 jul. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/07/10/manto-tupinamba-chega-ao-rio.ghtml. Acesso em: 12 jul. 2024.

[2] As informações contidas nessa seção estão disponíveis no site oficial da Organização Mundial da Propriedade Intelectual. WIPO. Genetic Resources, Traditional Knowledge and Traditional Cultural Expressions. Disponível em: https://www.wipo.int/tk/en/. Acesso em: 12 jul. 2024.

[3] “Povos Indígenas e comunidades locais” são termos amplamente utilizados por organizações e convenções internacionais para se referir a indivíduos e grupos que se autoidentificam como indígenas ou como membros de comunidades locais distintas. São, tipicamente, grupos étnicos que descendem e se identificam com os habitantes originais de uma determinada região, em contraste com grupos que se estabeleceram, ocuparam ou colonizaram a área mais recentemente.

[4] NAÇÕES UNIDAS. Declaração das Nações Unidas Sobre Os Direitos dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf. Acesso em: 12 jul. 2024.

[5] COSTA, João Vitor; RODRIGUES, Thayná. Ancião sagrado: manto Tupinambá, devolvido ao Brasil pela Dinamarca, ‘pediu’ para ser trazido de volta; entenda: herança dos povos que habitavam a costa do brasil na época do des. G1. Rio de Janeiro. 12 jul. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/07/12/anciao-sagrado-manto-tupinamba-que-foi-devolvido-ao-brasil-pela-dinamarca-pediu-para-ser-trazido-de-volta-entenda.ghtml. Acesso em: 12 jul. 2024.

[6] SCHWARCZ, Lilia. Depois de muito tempo, e uma negociação complexa, o manto tupinambá já está em terras brasileiras. Não é presente; é direito. Rio de Janeiro. 11 jul. 2024. Instagram: liliaschwarcz. Disponível em: https://www.instagram.com/liliaschwarcz/p/C9S4ccGPEej/. Acesso em: 12 jul. 2024.

[7] CONSELHO INDÍGENA TUPINAMBÁ DE OLIVENÇA (CITO). Pronunciamento do Povo Tupinambá de Olivença sobre o Retorno do Manto Sagrado. Olivença. 11 jul. 2024. Instagram: citotupinamba. Disponível em: https://www.instagram.com/citotupinamba/p/C9SGuo_OXKw/. Acesso em: 12 jul. 2024.

[8] WIPO TREATY ON INTELLECTUAL PROPERTY, GENETIC RESOURCES AND ASSOCIATED TRADITIONAL KNOWLEDGE, disponível em: https://www.wipo.int/edocs/mdocs/tk/en/gratk_dc/gratk_dc_7.pdf

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