Opinião

A crise dos microchips automotivos e o Código de Defesa do Consumidor

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7 de agosto de 2024, 19h38

Desde 2021, em razão da Covid-19 e de desavenças entre China e Taiwan, a indústria automobilística global sofre com a crise dos microchips e semicondutores, que são pequenos dispositivos eletrônicos que controlam a condução de corrente elétrica em vários itens eletrônicos, os quais são essenciais para o funcionamento de diversos sistemas de veículos, incluindo controle de motores, sistemas de navegação, airbags e sistemas de entretenimento.

Divulgação

Os impactos dessa crise provocam aumento no preço dos veículos, prejuízos bilionários e se estendem também ao setor de reposição de peças, afetando diretamente consumidores e fornecedores em todo o mundo.

Nesse sentido, o § 1º do artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) determina que os fornecedores de produtos duráveis devem sanar eventuais vícios de fabricação no prazo médio de 30 dias, podendo convencionar até 180 dias, nos termos do § 2º do mesmo dispositivo. Já o artigo 32 dispõe que: “os fabricantes e importadores deverão assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto”.

Diante disso, é importante que órgãos de proteção e defesa do consumidor e o Poder Judiciário estejam atentos à crise enfrentada. Considerando o disposto no artigo 4º, III, do CDC e em observância ao princípio da cooperação, é necessário decidir em consonância com a harmonização dos interesses dos participantes, compatibilizando a proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios da ordem econômica, com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores, especialmente diante de novos componentes tecnológicos, inclusive, a partir da evolução dos modelos de veículos, modelos estes que não existiam quando da promulgação do CDC há mais de 30 anos.

Responsabilidade das fabricantes

Por esse motivo, muitos tribunais têm reconhecido a inexistência de responsabilidade das fabricantes, como o TJ-DF ao afastar a responsabilidade da Renault por atraso na disponibilização de peças:

“(…) AUSÊNCIA DE PEÇAS DEVIDO À PANDEMIA E GUERRA RÚSSIA/UCRÂNIA. FORÇA MAIOR. (…). Inicialmente, é possível verificar por meio de notícias veiculadas no país, que em decorrência da pandemia de COVID-19, as montadoras de veículos, inclusive a RENAULT, fabricante do automóvel do recorrente, foi afetada pela falta de peças na cadeia de fornecedores. 7. No caso vertente, o atraso na entrega do veículo decorrente de falta de peças para reposição, em virtude da pandemia e de guerra externa declarada, por serem fatos imprevisíveis, imprevistos e não evitáveis, configuram motivo de força maior a elidir obrigação contratual ou legal, na medida em que a empresa recorrida não tem ingerência em relação às consequências geradas por esses acontecimentos. (…). TJ/DF – RI n. 0704254-22.2022.8.07.0005.”

O TJ-SP, por sua vez, reconheceu a inexistência de responsabilidade da montadora Ford no atraso do reparo, pontuando que a aplicação das hipóteses do § 1º do artigo 18 do CDC feriria o princípio da conservação e continuidade dos negócios jurídicos:

AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL, COM PEDIDO DE TROCA DO VEÍCULO E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS — Autor que pretende a rescisão de contrato de compra e venda veículo, vez que problema identificado ainda no curso da garantia de 3 anos não foi sanado no prazo legal de 30 dias — (…) — Contrato deve ser preservado — Interpretação sistemática do direito — Princípio da conservação e continuidade dos negócios jurídicos e boa-fé objetiva que devem ser prestigiados, em especial consideradas as excepcionais e singulares condições geradas pela pandemia de COVID-19, que gerou escassez de peças no setor automobilístico — RECURSO DESPROVIDO. (TJ/SP – Apelação Cível: 1013775-70.2021.8.26.0506).

Na mesma linha o TJ da Bahia, em processo envolvendo a montadora BMW o magistrado reconheceu que as determinações constantes do CDC para questões de fornecimento de peças e reparo se aplicam em situação de normalidade e não em situações excepcionais como a ocasionada pela pandemia [1].

Imperioso que, nos termos de recente decisão proferida pelo STJ [2], na qual a montadora Ford figurava como recorrida, seja realizada “a análise individualizada dos motivos que ensejaram a casuística superação do prazo constante do §1º do artigo 18 do CDC pelos fornecedores”, de forma que assim, nas palavras da ministra Nancy Andrighi “possibilitaria o controle de eventuais abusos na aplicação do dispositivo”.

Interdependência da cadeia produtiva

Spacca

Logo, é fundamental, diante da complexidade e a interdependência da cadeia produtiva global ao julgar casos relacionados a atrasos no fornecimento de peças, que os tribunais levem em conta o caso individual para análise das razões pelas quais, o prazo de 30 dias foi ultrapassado, lembrando que os tribunais são enfáticos ao admitir a possibilidade de extensão de prazo para até 180 dias, desde que acordado com o consumidor, nos termos do §2º, do artigo 18, CDC [3].

De acordo com o tribunal, “Existindo de previsão legal acerca da possibilidade de ampliação do prazo para que o fornecedor possa sanar o vício e que, na espécie, foi convencionada em separado cláusula dilatória do prazo para a conclusão dos serviços em até 180 (cento e oitenta) dias, à qual foi dada anuência expressa do consumidor, não se vislumbra abusividade na respectiva cláusula contratual apta a ensejar a declaração de sua nulidade. Apenas ao final do prazo de 180 (cento e oitenta) dias, caso não sanado o vício, é que o consumidor teria o direito de exigir, alternativamente e à sua escolha a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; ou o abatimento proporcional do preço” (….)

Apenas dessa forma é que será assegurado o direito de o fornecedor reparar o bem, evitando-se decisões que não observem a realidade global passados 30 anos e a harmonização das relações de consumo, de forma que as decisões judiciais reflitam a realidade do mercado atual e promover soluções que observem a cooperação entre todos os envolvidos, desde fabricantes/fornecedores até consumidores finais.

Portanto, a aplicação dos princípios da boa-fé, da cooperação, do equilíbrio nas relações de consumo, é essencial, ainda que diante de crises globais, sempre preservando os direitos dos consumidores, sem ignorar as limitações enfrentadas pelo mercado, sendo imprescindível a análise individualizada e o momento enfrentado, tal como o recente entendimento do STJ, para que não sejam proferidas decisões desproporcionais e desarrazoadas.

 


[1] Sentença proferida pelo D. Juiz Dr. Wander Cleuber Oliveira Lopes da 3ª Vara do Sistema dos Juizados Especiais Cíveis de Vitória da Conquista/BA. Processo nº 0000307-58.2021.8.05.0274.

[2] STJ – REsp n. 2.103.427/GO – Relatora Ministra Nancy Andrighi – Terceira Turma – Julgado em 18/06/2024.

[3] TJ/DF – 0723248-18.2019.8.07.0001, Relator: ALFEU MACHADO, Data de Julgamento: 29/07/2020, 6ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE: 14/08/2020.

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