Da livre concorrência, dos cartéis e do acordo de leniência
7 de agosto de 2024, 9h22
A ordem econômica possui dignidade constitucional de direito fundamental não apenas nos artigos 170 a 181 da Lei Fundamental, mas por todo o seu texto, representando, expressando e parametrizando a alma da Constituição, devendo ser observada pelos agentes econômicos no desenvolvimento da atividade econômica para se assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social [1]. Diante dessa importância é que constam do texto constitucional diversos princípios gerais da atividade econômica, a se destacar o princípio da livre concorrência.
Fabiano del Masso assinala que a ordem econômica prevista na Constituição requer um mercado competitivo. Na disciplina de proteção do mercado, surge um bem jurídico que praticamente com ele se confunde: a concorrência [2]. É onde repousa o princípio da livre concorrência, a impor ao Estado brasileiro o abrigo de uma ordem econômica fundada na competição de mercado, a permitir e garantir o direito de participação ilimitada de agentes, característica de uma economia de mercado representativa do modelo capitalista, possibilitando, em tese, a eficiência do livre mercado em razão da competitividade e que pressupõe, fundamentalmente, atividades empresariais [3].
A livre concorrência, portanto, é constituída não somente pela livre manifestação da atividade econômica, mas também pela repressão legislativa de qualquer abuso do poder econômico que vise (disciplinando o exercício do poder econômico), dentre outras situações, a eliminação da concorrência com a dominação do mercado por meio da formação de cartéis.
Uma das consequências (prejuízos) de um mercado sem concorrência pela formação de cartel, dentre outras, é 1. a perda da liberdade econômica pela anticompetição; 2. a imposição de preços; 3. a imposição de produtos; 4. a despreocupação com os custos de produção; 5. a falta de investimentos em melhora do produto [4].
Conforme apontava o mestre de todos nós, José Afonso da Silva, a declaração de que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos a existência digna, só por si, não tem significado substancial, já que a análise dos princípios que informam essa mesma ordem não garante a efetividade daquele fim [5]. Por essa razão, o legislador constituinte também definiu como imperativo a repressão às pessoas jurídicas e de seus dirigentes pelos ilícitos praticados contra a ordem econômica, financeira e contra a economia popular.
O problema que eles trazem para a sociedade e para as autoridades executivas do poder punitivo são bastante diferentes. O poder econômico, reconhecida sua existência no artigo 173, §4º da Constituição, é um dado de fato inerente ao livre mercado, isto é, os agentes econômicos são naturalmente e necessariamente desiguais uns dos outros, e o que a Constituição e o Direito em geral têm alcance de fazer é reprimir certas modalidades de iniciativa que ameacem ou possam ameaçar as estruturas do livre mercado [6].
Merece destaque a explicação de Luiz Regis Prado acerca do exercício do poder econômico e a distinção de sua abusividade: “[O] exercício do poder econômico que não tenha e não possa ter o efeito de dominância de mercado, de eliminação da concorrência ou aumento arbitrário de lucros não será considerado abusivo e, por conseguinte, não será objeto de repressão legal. Somente quando a própria competição está em risco, configurando exercício abusivo, é que haverá repressão” [7].
Cartel
Nesse contexto, pode-se definir a atividade de cartel como qualquer acordo ou prática concertada entre concorrentes para fixar preços, dividir mercados, estabelecer cotas, restringir produção, adotar posturas pré-combinadas em licitação pública ou restringir ou eliminar a concorrência de qualquer outra forma [8]. Há, portanto, um ou vários acordos anticompetitivos (tácitos ou expressos, porém clandestinos ou dissimulados) entre empresas de um mesmo ramo de atividade, violando ou colocando em risco o bem jurídico tutelado (acordo entre rivais).
O delito de cartel está tipificado como crime contra a ordem econômica no artigo 4º, II, da Lei Federal 8.137/1990 (Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo), com penas de reclusão, de 2 a 5 anos e multa.
Além da seara criminal, em âmbito administrativo, a Lei Federal 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência), também conhecida como Lei Antitruste), prevê que empresas participantes de cartel estão sujeitas a penalidades administrativas aplicadas pelo Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), entre elas multas que variam de 0,1% a 20% do valor do faturamento bruto no ramo de atividade em que ocorreu a infração.
No âmbito civil, há previsão de responsabilidade por danos morais e patrimoniais decorrentes de infração à ordem econômica pela via da ação civil pública (Lei Federal 7.347/1985 – Lei de Ação Civil Pública).
Dentro da perspectiva das bases constitucionais da ordem econômica, a prática de cartel é vista pelo legislador como uma conduta grave, tanto é que é responsabilizada em três distintas esferas jurídicas, ensejando, portanto, simultaneamente a responsabilização do agente econômico no plano criminal, administrativo e civil, excluindo o bis in idem (artigo 35 da Lei Federal 12.529/2011).
Cooperação
Pode-se muito bem dizer que pauta do dia é a busca e a promoção de cooperação entre as agências estatais, seja no âmbito interno quanto no âmbito externo (cooperação internacional) aprimorando a troca de informações, muitas delas para auxiliar em uma persecução criminal. Desse modo, é possível – e muito bem-vinda – a comunicação entre as esferas criminal, administrativa e cível, como é o caso da celebração de acordo de leniência pelo agente econômico previsto no artigo 86 da Lei Federal 12.529/2011 (celebrado administrativamente) e que interfere diretamente na tramitação da persecução penal (no âmbito criminal, portanto), conforme entabulado no artigo 87 da mesma Lei:
“[N]os crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, a celebração de acordo de leniência, nos termos desta Lei, determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência” [9].
Leniência
Sem possibilidades de ingressarmos em maiores debates sobre a eficácia nacional do combate aos cartéis, nos cumpre destacar que o programa de acordo de leniência, inserido na legislação concorrencial em 2003 e aprimorado com a Lei Federal 12.529/2011, permite a celebração de acordo entre Estado e leniente (colaborador) com a obtenção de benefícios ao agente econômico como, por exemplo, de imunidade processual ou a diminuição da sanção penal (de um a dois terços) quanto a eventuais crimes contra a ordem econômica, confessando a participação na conduta e indicando quais foram os agentes econômicos envolvidos na prática anticompetititva do cartel, enfim, atitudes do colaborador na investigação oficial que incidiram em premiação. A repercussão da celebração do acordo — na esfera administrativa — permite a proteção na esfera criminal.
Há, portanto, necessidade de esforço das autoridades signatárias do acordo (Cade, Ministérios Públicos etc.) em valorizar a leniência, com o fim de promovê-la como uma ferramenta (meio) de obtenção de provas. A maior premissa é não colocar o informante leniente, portanto, colaborador e revelador do cartel, em posição pior aos outros players que serão investigados mediante a colaboração realizada e cujo prêmio é reservado a quem chega primeiro à autoridade.
No geral, as leis relacionadas à criminalidade econômica se complementam e devem trazer maior segurança aos jurisdicionados como o caso do player do mercado que pretende revelar comportamentos ilícitos e antiéticos, como um mecanismo comum para trazer maior garantia ao agente econômico que pretende cooperar (esferas de competência).
Nesse sentido, acordos de cooperação entre órgãos estatais são necessários para a preservação dos instrumentos de leniência (ou de colaboração premiada, se esfera criminal) e a falta ou déficit de comunicação e aproveitamento entre os órgãos ligados à repressão às infrações contra a ordem econômica pode representar o maior entrave na celebração do acordo de leniência pelo agente econômico.
Faz-se necessário, portanto, um arcabouço que represente praticidade e a interdisciplinaridade na matéria de cartéis e concorrência desleal, pois como já mencionado, tais atividades podem afetar as esferas de incidência (cível, administrativo e criminal). Deve-se dizer, decisões de tornar-se colaborador leniente no âmbito concorrencial (administrativo e cível) perante o Cade podem parecer ótimas, todavia, podem trazer um efeito negativo e irreparável na esfera criminal para o cliente se o caso não for bem avaliado e, na esfera de cooperação (órgãos de poder), houver falibilidade na participação e comunicação entre os entes estatais (aproveitamento dos valores pagos a título de multa), elevando sobremaneira a participação financeira do cliente nas condenações.
[1] A ordem econômica, como aponta José Afonso da Silva adquiriu dimensão jurídica a partir do momento em que as constituições passaram a discipliná-la como a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição alemã de Weimar. (SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 29. edição, revista e atualizada até a Emenda Constitucional n. 53, de 19.12.2006. São Paulo, Malheiros, 2007, p. 786).
[2] MASSO, Fabiano Del. Direito econômico esquematizado. Rio de Janeiro. Forense. São Paulo. MÉTODO, 2012, p. 66.
[3] Em sentido contrário à concorrência ser positiva e saudável para uma sociedade inserida em um Estado Democrático e Social de Direito ver: VON HAYEK, Friedrich A. Direito, legislação e liberdade: a democracia em um país verdadeiramente livre. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo. Faro editorial, 2023, p. 81 e ss.
[4] Idem, p. 67.
[5] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. ob. cit., p. 788.
[6] Nesse sentido ver: PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico: ordem econômica, relações de consumo, sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciário. Lavagem de capitais, crime organizado. 3 ed. rev., atual e ampl. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 39.
[7] Idem ibidem.
[8] BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Cartilha do Cade. 2016. Disponível em: http://www.cade.gov.br/ acesso-a-informacao/publicacoes-institucionais/cartilha-do-cade.pdf. Acesso em: 24 jul. 2024
[9] Sobre os limites e abrangências do acordo de leniência ver: ATHAYDE, Amanda; GRANDIS, rodrigo. Programa de leniência Antitruste e repercussões Criminais: Desafios e oportunidades recentes. in: CARVALHO, Vinicius Marques et al. A Lei 12.529/11 e a Nova Política de Defesa da Concorrência. São Paulo: singular, 2015, p. 292 e ss.
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