Privilégios do MP-PR no Projudi: desafios na implementação de paridade de armas
6 de agosto de 2024, 15h26
Em 2016, a revista eletrônica Consultor Jurídico noticiou importante vitória da advocacia do Paraná, envolvendo o sistema Projudi no âmbito da Justiça Estadual do Paraná e a (dis)paridade de tratamento com o Ministério Público. Em decorrência de pedido que formulamos perante a OAB-PR, o órgão de classe estabeleceu contato institucional com o Tribunal de Justiça do estado, que implementou mudança para possibilitar que, tal como os membros do MP, os advogados pudessem acessar os processos independentemente da leitura da intimação expedida no processo eletrônico [1].

Esse ponto era alvo de discussão porque, para acessar os autos com intimação pendente, o advogado se via obrigado a ler a intimação e, consequentemente, iniciar o cômputo do prazo processual, enquanto os membros do Ministério Público detinham o privilégio de acessar sem realizar a leitura da intimação, o que permitia melhor controle do fluxo de trabalho.
A despeito das melhorias já implementadas no sistema, lamentavelmente é possível afirmar que o formato atual do Projudi possibilita a perpetuação de tratamento desigual entre advogados e promotores de Justiça. Não se desconhece que, pelas particularidades de estrutura e demanda, os membros do Ministério Público detêm prerrogativas legais relativamente à forma de intimação (artigo 41, IV, Lei 8.625/1993) e contagem de prazos processuais (artigo 180 CPC).
Pretende-se demonstrar, no entanto, a existência de verdadeiro privilégio incompatível com o princípio da paridade de armas [2], notadamente na seara criminal. Para ilustrar, aponta-se a seguinte situação: o advogado é intimado e se mantém inerte, ao término do prazo o sistema gerará automaticamente a movimentação processual de decurso de prazo. Todavia, o mesmo não acontece quando o Ministério Público adota idêntico comportamento, ou seja, o sistema não gera uma movimentação processual de decurso de prazo.
Por óbvio, a falta de registro da informação no sistema processual não ressuscita os prazos processuais, mas dificulta o controle das partes e dos serventuários, remanescendo sem resposta por que esse registro do decurso do prazo é certificado em relação ao advogado e permanece sem registro em situação idêntica com o Ministério Público. Ademais, a ausência de registro dificulta qualquer controle pela sociedade da atuação do membro do Parquet, além de não deixar anotações que possam servir inclusive de fundamento para atuação dos órgãos disciplinares, como ocorre em desfavor dos advogados que deixam de se manifestar nos autos.
Excesso de prazo
Soma-se a isso que, em sede de habeas corpus, em que se exige prova pré-constituída, em muito contribuiria à defesa a demonstração de eventual excesso de prazo imputável à acusação, que seria facilmente comprovada com informação de decurso do prazo do sistema Projudi. Por outro lado, ao registrar o decurso do prazo da defesa, pode-se afastar a ocorrência de constrangimento ilegal a pretexto de que eventual mora processual é imputável ao comportamento defensivo.

Não bastasse, o sistema Sistema Eletrônico de Execução Unificado (Seeu), também desenvolvido originariamente pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, para contemplar o processo de execução penal em todo o país (Resolução 280/2019-CNJ) [3], inexplicavelmente registra o decurso de prazo para o Ministério Público, a evidenciar o tratamento não isonômico do Projudi, conforme descrito acima.
Em 2022, o advogado David Soares Beienke tomou a iniciativa de questionar, perante o Departamento de Tecnologia da Informação e Comunicação e a Ouvidoria-Geral de Justiça, essa e outras diferenças que identificava entre o perfil “advogado” e “promotor de Justiça” no sistema Projudi. Seu requerimento foi cadastrado no SEI-TJ-PR nº 0045468-42.2022.8.16.6000, oportunidade na qual o corregedor-geral de Justiça decidiu que o advogado deveria se dirigir a seu órgão de classe para a realização de contatos institucionais em busca de melhorias no sistema Projudi, encaminhando o protocolo para a Ouvidoria-Geral de Justiça.
Desigualdades
De todo modo, pela prática diária na atuação com o sistema Projudi, no âmbito da Justiça Estadual do Paraná, é possível afirmar que a persistência de tratamento desigual ao menos em três temas: 1) falta de registro do decurso de prazo de forma automática pelo sistema; 2) possibilidade de o membro do Ministério Público devolver o processo com ciência da intimação sem renúncia de prazo; 3) impossibilidade de acesso do advogado às medidas cautelares inominadas ajuizadas em favor de seus próprios clientes.
Na atuação defensiva dos investigados/acusados em procedimentos persecutórios criminais é corriqueiro que processos criminais em sigilo absoluto — aos quais o promotor de Justiça e o juiz possuem acesso — permaneçam desconhecidos dos defensores mesmo após requerimento de habilitação em toda a árvore processual.
É claro que existem medidas cautelares (probatórias, pessoais e reais) que tramitam em segredo de Justiça para evitar a frustração da medida almejada. Ainda assim, após cumprida a medida contra determinada pessoa, tem ela direito de acessar e consultar os autos que embasaram a autorização de restrição à sua liberdade ou patrimônio (Súmula Vinculante 14 e artigo 7º, XIV, Lei 8.906/1994).
No entanto, no momento do oferecimento da resposta à acusação, é comum que os advogados sequer tenham conhecimento do número ou natureza dos procedimentos vinculados à determinada ação penal, simplesmente porque os feitos permanecem em sigilo absoluto. O quadro é agravado quando o magistrado defere o acesso, mas impõe à defesa o ônus de indicar de forma individualizada a quais processos pretende acesso, a demonstrar possível desconhecimento sobre as informações disponíveis ao perfil do advogado no sistema Projudi.
Processo eletrônico
Não se questiona que “a digitalização revoluciona o modo como nós atuamos. Sem exagero, pode-se falar literalmente em uma revolução das formas de trabalho jurídico, que pode ser resumida na expressão ‘do código de leis ao smartphone’” [4]. Por isso, é importante avançar com o uso do processo eletrônico em razão de todas as suas vantagens já comprovadamente demonstradas. Entretanto, não se pode descuidar de garantias mínimas dadas à advocacia criminal nos mais variados diplomas, dentre eles Constituição, Estatuto da Advocacia, Código de Processo Penal etc., como forma de se respeitar o devido processo legal em nome do cidadão.
Pode-se afirmar que apesar das inúmeras vantagens oriundas da digitalização dos processos, com inegável contribuição para a celeridade processual, persistem privilégios em favor do Ministério Público no sistema Projudi que são incompatíveis com a paridade de armas, sobretudo na seara criminal. Diante disso, considerando que não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, é de se questionar se existe diferença entre os perfis dos sujeitos processuais no Projudi, com permissões e restrições não previstas em lei, o que naturalmente geraria um indesejável desequilíbrio na tramitação dos processos.
[1] REDAÇÃO CONJUR. Contagem de prazo: OAB-PR critica privilégios do Ministério Público estadual em processo eletrônico. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-set-08/oab-pr-critica-privilegios-ministerio-publico-estadual-projudi/. Acesso em: 01 ago. 2024.
[2] VIEIRA, Renato Stanziola. Paridade de armas no processo penal: do conceito à aplicação do direito processual penal brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2013, p. 191 e ss.
[3] SEEU: Conheça o sistema que está sendo implantado em diversos Tribunais a partir de projeto desenvolvido pelo TJ-PR. https://www.tjpr.jus.br/noticias/-/asset_publisher/9jZB/content/id/48040515. Acesso em: 01 ago. 2024.
[4] HILGENDORF, Eric. Digitalização e direito. Organizador e tradutor Orlandino Gleizer. São Paulo: Marcial Pons, 2020, p. 28.
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