Opinião

Ilegalidade da cobrança de custas e taxas no cumprimento provisório de sentença em SP

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  • é advogado no GHBP Advogados professor universitário na faculdade Anhanguera mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduado em Direito Empresarial e Direito e Processo Civil pela Universidade União das Américas.

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  • é advogado sênior no GHBP Advogados e MBA em Direito Empresarial pela Escola Superior de Administração Marketing e Comunicação (ESAMC).

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6 de agosto de 2024, 6h08

O acesso à Justiça, consagrado no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição [1], constitui um direito fundamental indissociável do Estado democrático de Direito.

Para além da mera possibilidade de provocar o Poder Judiciário, a garantia constitucional abarca a efetivação do direito material da parte vitoriosa, demandando mecanismos céleres e eficazes que assegurem o cumprimento das decisões judiciais.

Nesse contexto, o cumprimento provisório de sentença, previsto no artigo 520 do Código de Processo Civil de 2015, desponta como instrumento primordial para a concretização do acesso à Justiça, permitindo a busca pela satisfação do direito reconhecido judicialmente, mesmo quando pendente de recurso desprovido de efeito suspensivo.

Entretanto, a recente alteração legislativa promovida pela Lei Estadual nº 17.785/2023 [2], que inseriu o inciso IV ao artigo 4º da Lei Estadual nº 11.608/2003 [3], levanta sérias preocupações no que tange à cobrança de custas processuais. Ao estabelecer a exigência de pagamento de 2% sobre o valor do crédito a ser satisfeito na fase de cumprimento de sentença, a nova lei abre margem para interpretações que podem resultar na cobrança antecipada dessas custas já na fase de cumprimento provisório de sentença. Tal interpretação, contudo, seria um equívoco e se mostraria incompatível com o sistema jurídico pátrio, como será demonstrado ao longo deste artigo.

A imposição de ônus financeiro ao cumprimento provisório de sentença, além de desprovida de amparo legal, representaria uma barreira ao acesso à Justiça, colocando em xeque a própria finalidade do instituto, que é justamente garantir a efetividade da tutela jurisdicional de forma célere.

Natureza tributária das custas judiciais e princípio da legalidade

É fundamental, de início, delinear a natureza jurídica das custas judiciais. A doutrina [4] e a jurisprudência convergem para o entendimento de que tais exações ostentam natureza tributária, enquadrando-se na espécie “taxa”, tributo vinculado à prestação de um serviço público específico e divisível. A taxa judiciária, nesse sentido, remunera os serviços prestados pelo Estado para viabilizar o exercício da função jurisdicional, assegurando aos cidadãos o acesso à Justiça.

Por consequência de sua natureza tributária, as custas judiciais submetem-se aos princípios constitucionais que regem o Sistema Tributário Nacional. Dentre tais princípios, impõe-se destacar o princípio da legalidade tributária, previsto no artigo 150, I, da Constituição [5], e nos artigos 3º [6] e 97 [7] do Código Tributário Nacional.

O princípio da legalidade impede que o Estado exija ou majore tributos sem expressa previsão legal, garantindo a segurança jurídica como pilar fundamental do sistema tributário.

Ausência de previsão legal para exigibilidade de custas no cumprimento provisório de sentença

A alteração legislativa introduzida pela Lei Estadual nº 17.785/2023, ao estipular o pagamento de custas processuais no momento da instauração da fase de cumprimento de sentença, não contemplou a sua exigibilidade no cumprimento provisório.

O dispositivo legal, interpretado em consonância com o princípio da legalidade tributária, indica que a exigência de pagamento se limita ao cumprimento definitivo de sentença, não se aplicando ao cumprimento provisório, sendo certo que sua cobrança ofende o princípio da legalidade tributária.

Spacca

Reforça essa interpretação a distinção entre o cumprimento provisório e o definitivo, baseada em sua natureza jurídica. Enquanto o cumprimento definitivo se baseia em um título executivo judicial já formado, representado pela sentença transitada em julgado, o cumprimento provisório busca outorgar efetividade a uma decisão judicial ainda sujeita à revisão em grau de recurso.

A ausência de trânsito em julgado, característica do cumprimento provisório, impede a configuração do fato gerador da taxa judiciária, inviabilizando a sua cobrança nesse momento processual.

Cumprimento provisório de sentença e tutela provisória incidental: inexigibilidade de custas

O artigo 297, parágrafo único, do Código de Processo Civil [8] determina que o cumprimento provisório de sentença observe o procedimento estabelecido para o cumprimento definitivo, possibilitando a utilização dos mesmos mecanismos processuais de efetivação.

Todavia, a similitude procedimental não altera a natureza jurídica da decisão judicial a ser cumprida. No cumprimento provisório, a decisão ainda é provisória, sujeita a modificações em grau de recurso, enquadrando-se, portanto, como tutela provisória.

O artigo 295 do Código de Processo Civil [9], por sua vez, dispõe categoricamente que “a tutela provisória requerida em caráter incidental independe do pagamento de custas”. Tendo em vista a natureza jurídica da decisão judicial a ser cumprida provisoriamente, mostra-se incabível a exigência de pagamento de custas, sob pena de violação à norma processual, entendimento este que é perfeitamente aplicável ao cumprimento provisório de sentença.

Risco de bis in idem e afronta ao princípio do não confisco

A cobrança antecipada de custas no cumprimento provisório representaria um risco de bis in idem, além de ser infundada por ausência de previsão legal.

Caso a decisão judicial seja confirmada pelos tribunais superiores, a parte vitoriosa, ao dar início ao cumprimento definitivo da sentença, seria novamente compelida ao pagamento da taxa judiciária, conforme o disposto no artigo 4º, IV, da Lei Estadual nº 11.608/2003 [10].

A dupla exigência da mesma exação configuraria um desvio de finalidade, além de afrontar o princípio do não confisco, previsto no artigo 150, IV, da Constituição [11].

A oneração excessiva, desprovida de correspondência com qualquer contraprestação efetiva, esvazia a garantia constitucional do direito de propriedade, impondo um ônus desproporcional ao exercício do direito fundamental de acesso à Justiça.

Autonomia do Poder Judiciário e destinação constitucional das custas judiciais: um limite à uniformização

A Constituição, ao consagrar o princípio da separação dos poderes, no artigo 2º [12], assegura a independência e harmonia entre os Poderes da República. Para o exercício de sua função precípua — a jurisdição —, o Poder Judiciário goza de autonomia administrativa e financeira, prevista no artigo 99 da Carta Magna [13].

Reforçando a autonomia financeira do Poder Judiciário, o artigo 98, § 2º, da Constituição [14], determina que “as custas e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça”.

A destinação constitucional das custas judiciais garante recursos próprios ao Poder Judiciário para o custeio de suas atividades essenciais, sem depender exclusivamente da vontade do Poder Executivo, fortalecendo a sua independência.

A imposição de um regime uniforme de custas processuais, por meio de lei complementar federal, poderia, no entanto, colidir com a autonomia financeira dos Poderes Judiciários estaduais.

A Constituição, ao outorgar aos Estados a competência concorrente para legislar sobre custas dos serviços forenses, no artigo 24, IV [15], reconhece a necessidade de cada Estado definir a forma de custeio de sua estrutura judiciária.

A competência concorrente outorgada aos estados para legislar sobre a matéria, no entanto, não os exime da observância aos princípios constitucionais e tributários, entre os quais o da legalidade, da vedação ao confisco e, especialmente, da garantia de acesso à Justiça.

A criação de leis estaduais que estipulem a cobrança de custas judiciais, portanto, deve se dar em consonância com tais princípios, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade, a ser declarada pelo Poder Judiciário.

Jurisprudência do TJ-SP: passo em direção à Justiça

Atento aos princípios constitucionais e à necessidade de garantir o efetivo acesso à Justiça, o Tribunal de Justiça de São Paulo possui jurisprudência manifestando-se sobre a ilegalidade da cobrança de custas judiciais no cumprimento provisório de sentença.

No Agravo de Instrumento nº 2038750-03.2024.8.26.0000, julgado pela 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, reconheceu-se a ilegalidade da cobrança, fundamentando a decisão na ausência de previsão legal e na incompatibilidade com a natureza jurídica da tutela provisória, que, nos termos do artigo 295 do Código de Processo Civil, independe do pagamento de custas:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO – INCIDENTE DE CUMPRIMENTO DE TUTELA PROVISÓRIA – RECOLHIMENTO DE CUSTAS – Decisão agravada que determinou à exequente o recolhimento das custas iniciais da fase de cumprimento de sentença – Inadmissibilidade – Previsão de recolhimento de 2% sobre o valor do crédito a ser satisfeito, estabelecida no inc. IV, do art. 4º, da Lei Estadual nº 11.608/2003, acrescentado pela Lei Estadual nº 17.785/2023, que se refere à instauração da fase de cumprimento de sentença, enquanto no caso dos autos não se tem tal título, eis que se trata de cumprimento de tutela provisória, decorrente de antecipação de tutela – Necessidade de observância ao procedimento previsto para o cumprimento provisório de sentença, na forma do parágrafo único, do art. 297, do CPC, sem que haja, contudo, transformação da natureza da decisão feita cumprir, qual seja, antecipação de tutela – Inteligência do art. 295, do CPC, no sentido de independer de pagamento de custas a tutela provisória requerida em caráter incidental – Ausência de previsão legal para a exigência da taxa judiciária na hipótese dos autos, cuja imposição de recolhimento acarretaria violação ao princípio da legalidade tributária, previsto no art. 150, inc. I, da CR, e nos arts. 3º, e 97, inc. I e III, do CTN. Agravo provido.” (TJ-SP – Agravo de Instrumento: 2038750-03.2024.8.26.0000 São Paulo, Relator: João Batista Vilhena, Data de Julgamento: 18/06/2024, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/06/2024)”

Tal decisão, proferida em caso análogo, representa um importante precedente para afastar a exigência ilegal de custas na fase de cumprimento provisório, garantindo a efetividade do direito fundamental de acesso à Justiça e prestigiando a autonomia financeira do Poder Judiciário e demonstrando o respeito da corte paulista aos princípios que regem a matéria.

Diferenciação entre cumprimento de sentença e cumprimento provisório de sentença: impedimento à analogia

É crucial destacar a distinção fundamental entre o cumprimento de sentença, regulado a partir do artigo 513 do Código de Processo Civil [16], e o cumprimento provisório de sentença, previsto no artigo 520 [17] do mesmo diploma legal.

TJ-SP

A cobrança de custas no cumprimento de sentença, iniciado com o trânsito em julgado da decisão, encontra amparo na legislação processual. Contudo, a ausência de previsão legal específica para o cumprimento provisório impede a aplicação analógica da norma, em respeito ao princípio da legalidade tributária e ao artigo 108, §1º, do Código Tributário Nacional [18].

A tentativa de estender a cobrança de custas ao cumprimento provisório configuraria, portanto, uma inovação legislativa, vedada ao Poder Judiciário. Somente por meio de lei, emanada do Poder Legislativo, poder-se-ia instituir tal exigência, observados os limites constitucionais.

Conclusão

A cobrança de custas judiciais no cumprimento provisório de sentença representa um grave obstáculo ao acesso à Justiça, contrariando princípios fundamentais do sistema jurídico brasileiro.

A Lei Estadual nº 17.785/2023, ao modificar a Lei nº 11.608/2003, não prevê expressamente a exigibilidade de custas na fase de cumprimento provisório de sentença, limitando-se ao cumprimento definitivo.

A análise jurídica apresentada evidencia a ausência de base legal para tal cobrança, corroborada pelo princípio da legalidade tributária e pela jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo. O cumprimento provisório de sentença, por sua natureza, não constitui fato gerador de taxa judiciária, visto que a decisão ainda não transitou em julgado e se enquadra como tutela provisória incidental, que independe do pagamento de custas conforme o artigo 295 do Código de Processo Civil.

Além disso, a imposição de custas nessa fase processual incorre em bis in idem e afronta o princípio do não confisco, ao onerar excessivamente a parte que busca a efetividade de seus direitos, e coloca em risco a garantia constitucional de acesso à Justiça, exacerbando a desigualdade no sistema judiciário.

Portanto, a cobrança de custas no cumprimento provisório de sentença não apenas carece de amparo legal, mas também se opõe aos princípios constitucionais que visam a assegurar um sistema judicial justo e acessível a todos os cidadãos.

A jurisprudência do TJ-SP e a tese aqui defendida reforçam a necessidade de se afastar tal exigência, promovendo a efetividade da tutela jurisdicional de forma célere e justa, sem obstáculos financeiros indevidos.

A interpretação restritiva da lei, alinhada aos princípios constitucionais e ao entendimento jurisprudencial, deve prevalecer para garantir a justiça e a equidade no processo judicial.

 


[1] XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

[2] Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2023/lei-17785-03.10.2023.html. Acessado em 31 de julho de 2024 às 08hs.

[3] Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2003/lei-11608-29.12.2003.html. Acessado em 31 de julho de 2024 às 08:13hs.

[4] FILHO, Claudio; CAMPOS, Rogério. Título IV. Taxas In: FILHO, Claudio; CAMPOS, Rogério. Constituição e Código Tributário Comentados. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2020 e MEDINA, José. Seção I. Dos Princípios Gerais In: MEDINA, José. Constituição Federal Comentada. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2022.

[5] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;

[6]   Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

[7] O artigo 97 do Código Tributário Nacional (CTN) estabelece o princípio da legalidade tributária, determinando que somente a lei pode criar, aumentar ou extinguir tributos. Ele define que aspectos cruciais como a instituição, majoração, definição do fato gerador, fixação da alíquota e base de cálculo, penalidades e benefícios fiscais só podem ser alterados por meio de lei. O artigo ressalva a possibilidade de alteração de alíquotas e base de cálculo por outros atos normativos em casos específicos e equipara a majoração do tributo à modificação da base de cálculo que o torne mais oneroso, diferenciando-a da mera atualização monetária. Em suma, o artigo 97 garante segurança jurídica ao contribuinte, assegurando que a atividade tributária do Estado seja exercida dentro dos limites da lei.

[8] Art. 297. O juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela provisória.

Parágrafo único. A efetivação da tutela provisória observará as normas referentes ao cumprimento provisório da sentença, no que couber.

[9] Art. 295. A tutela provisória requerida em caráter incidental independe do pagamento de custas.

[10] Artigo 4° – O recolhimento da taxa judiciária será feito da seguinte forma: (…) IV – 2% (dois por cento) sobre o valor do crédito a ser satisfeito, por ocasião da instauração da fase de cumprimento de sentença. (NR)

[11] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) IV – utilizar tributo com efeito de confisco;

[12] Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

[13] Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira.

[14] § 2º As custas e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça.

[15] Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (…) IV – custas dos serviços forenses;

[16] Art. 513. O cumprimento da sentença será feito segundo as regras deste Título, observando-se, no que couber e conforme a natureza da obrigação, o disposto no Livro II da Parte Especial deste Código.

[17] Art. 520. O cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo será realizado da mesma forma que o cumprimento definitivo, sujeitando-se ao seguinte regime: (…)

[18] § 1º O emprêgo da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei (sic).

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  • é advogado no GHBP Advogados, professor universitário na faculdade Anhanguera, mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduado em Direito Empresarial e Direito e Processo Civil pela Universidade União das Américas.

  • é advogado sênior no GHBP Advogados e MBA em Direito Empresarial pela Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação (ESAMC).

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