Território Aduaneiro

Decadência nos tratamentos jurídicos especiais

Autores

  • é sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax) doutor mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) é professor no Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional" e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

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  • é membro da Comissão de Política Fiscal e Proteção aos Contribuintes da OAB-RJ especialista em Direito Tributário pela FGV/Direito-RJ professor de Direito Tributário e Aduaneiro convidado na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e advogado especializado em Direito Aduaneiro.

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6 de agosto de 2024, 14h21

No nosso artigo anterior (aqui) trouxemos comentários sobre a decadência aduaneira, tanto aquela relativa ao ato de revisão das informações prestadas e enquadramentos jurídicos em declarações de importação ou exportação quanto da efetiva cobrança dos tributos incidentes. Nossa intenção era demonstrar que a legislação já mostra defasagem técnica nas situações padrão [1] e que eram incorretas as tentativas de revisão da apuração de tributos quando já transcorrido o prazo de revisão aduaneira.

Neste, elevaremos o nível de estresse sobre a sistemática decadencial da legislação aduaneira, avançando sobre os tratamentos jurídicos especiais, regras jurídicas de exceção que sob o aspecto aduaneiro podem alterar, dentre outros: (a) o momento do registro de declarações de importação ou exportação; (b) as obrigações acessórias a serem observadas; (c) o enquadramento jurídico da operação; (d) a incidência de tributos; e (e) a quantificação (v.g. alíquotas, base de cálculo ou isenções) ou vencimento de tributos  e que englobam os regimes aduaneiros especiais [2].

Características dos tratamentos jurídicos especiais

Em regra, esses tratamentos jurídicos especiais (a) possuem escopo de aplicação mais restrito, vinculado a alguma característica da operação, dos envolvidos, dos próprios bens, serviços ou intangíveis ou da utilização futura destes; e (b) podem exigir do administrado o cumprimento de obrigações acessórias, seja para solicitação, aplicação, controle e/ou demonstração de atendimento dos requisitos materiais. Esse condicionamento material e/ou procedimental à aplicação do tratamento jurídico especial gera uma camada adicional de atividade jurídica que é a verificação da presença destas condições.

Regras de decadência aduaneira

A regra de decadência aduaneira do artigo 54 do Decreto-Lei nº 37/66 claramente tentou abarcar essa atividade jurídica tanto explicitamente pelo uso, de certa forma atécnico, da expressão “benefício fiscal aplicado”, quanto implicitamente já que a utilização desse tratamento jurídico especial usualmente afeta a “regularidade do pagamento do imposto e demais gravames”. Assim, em regra a revisão da utilização de um tratamento jurídico especial deveria ser feita dentro do prazo de 5 (cinco) anos da importação.

Insuficiências da regra atual

Só que alguns desses tratamentos jurídicos especiais (a) possuem condições materiais ou procedimentais que se materializam e/ou devem ser comprovadas em momento distinto da efetivação da importação ou exportação, tanto antes quanto após e não há clareza na norma quanto aos requisitos serem avaliados em conjunto ou individualmente; e (b) produzem um efeito inicial e um efeito futuro, condicionado a requisitos materiais ou procedimentais ou ao próprio decurso de tempo, como acontece nas suspensões posteriormente convertidas em isenção/alíquota zero.

Posições dos Fiscos

Nesse cenário de aparente insuficiência da regra do artigo 54 do Decreto-Lei nº 37/66, os Fiscos Federal e Estaduais adotaram a posição de que as condições materiais e procedimentais para o Tratamento Jurídico Especial deveriam ser avaliadas em conjunto e firmaram o racional de que a correta aplicação das regras de decadência seria (a) considerando o artigo 54 do Decreto-Lei nº 37/66 quando as condições se materializassem ou tivessem que ser comprovadas em momento anterior; e (b) considerando apenas os prazos decadenciais da cobrança de tributos (artigos 150, §4º e 173, inciso I do CTN) quando as condições se materializassem ou tivessem que ser comprovadas em momento posterior ou quando existissem efeitos futuros, a partir (i) do fim do prazo de vigência do regime; (ii) da conversão de uma suspensão em alíquota zero/isenção; (iii) do marco temporal de materialização/comprovação do último dos requisitos legais; ou (iv) da operação de importação ou exportação (apenas residualmente).

Complexidade do tema e necessidade de debate e revisão normativa

A questão está longe de ser simples. Na verdade, é o tema mais complexo entre todos os existentes quanto à matéria de decadência aduaneira. Seria impossível trazer, dentro da constrição de espaço do presente artigo, a análise completa da legislação aplicável para uma conclusão jurídica sobre o tema.

Apesar disso, entendemos necessário trazer ainda que de maneira sintética os fundamentos que nos levam a entender que a metodologia acima, apesar de prevalente, é juridicamente incorreta, de maneira a fomentar um necessário debate e eventualmente a edição de uma norma concreta e ideal.

Integração sistêmica: normas revisionais tributária e administrativa

Como visto, a norma limitante da atividade revisional aduaneira do artigo 54 do Decreto-Lei nº 37/66 não estabeleceu um comando eficaz quanto a parte dos tratamentos jurídicos especiais, especialmente aqueles que produzem efeitos futuros ou condições que se materializam após a importação, o que faz com que os Fiscos usem os prazos de cobrança de tributos com marcos temporais bastante arrojados.

Só que o uso de tratamentos jurídicos especiais está nominalmente listado no escopo de aplicação da norma limitante de maneira que ela jamais poderia ser simplesmente ignorada sem maiores considerações em favor de prazos mais convenientes para a autoridade aduaneira. Sendo a norma válida, vigente e eficaz, o jurista deve suprir sua insuficiência visando viabilizar a aplicação de seu comando através de analogia sistêmica, costumes e princípios gerais de direito (artigo 4º da Lindb).

E assim fazendo, é possível encontrar um comando mais concreto e claro na norma limitante da revisão de tratamentos jurídicos especiais opcionais de natureza tributária, previstos no caput do art. 179 do Código Tributário Nacional como aqueles que decorrem “por despacho da autoridade” a partir de “requerimento com o qual o interessado faça prova do preenchimento das condições e do cumprimento dos requisitos previstos em lei ou contrato para sua concessão”.

Seus parágrafos prosseguem para pontuar (a) que nos tratamentos continuados com período de vigência, os efeitos cessam “a partir do primeiro dia do período para o qual o interessado deixar de promover a continuidade do reconhecimento da isenção”; e (b) que o despacho concessivo não gera direito adquirido, aplicando-se, com os devidos ajustes, a mesma sistemática das moratórias (artigo 155), que permite a revogação de ofício “sempre que se apure que o beneficiado não satisfazia ou deixou de satisfazer as condições ou não cumprira ou deixou de cumprir os requisitos para a concessão do favor”.

Possibilidade de revisão retroativa

Em relação à possibilidade de revisão retroativa, o artigo 155 do CTN estabelece que (a) nos casos de dolo ou simulação do beneficiado ou de terceiro em benefício deste, o “tempo decorrido entre a concessão da moratória e sua revogação não se computa para efeito da prescrição do direito à cobrança do crédito” e que o crédito deve ser cobrado acrescido de juros de mora e com imposição de penalidades; e (b) que nos demais casos isso só pode ocorrer antes de decaído o referido direito à cobrança a contar do fato gerador, que por sua vez deveria ocorrer sem qualquer imposição de penalidade.

Síntese das normas tributárias aplicáveis

Sintetizando as normas tributárias aplicáveis, o que se extrai é que (a) a revisão não pode ser feita retroativamente caso a conclusão pelo desatendimento aos requisitos do benefício decorra de mudança de critério jurídico (artigo 146 do CTN); (b) descabe a aplicação de penalidades quando não comprovado ato fraudulento pelo administrado ou em seu benefício; (c) a revogação com efeitos prospectivos é sempre possível, (d) a revogação retroativa só possui base legal em situações fraudulentas ou caso a concessão tenha ocorrido há menos tempo do que o lustro dos prazos decadenciais para cobrança; e (e) caso o óbice seja contemporâneo ao deferimento do tratamento com prazo certo (artigo 178 do CTN), a revogação para o período está condicionada à não extrapolação do prazo específico deste ato.

Normas administrativas

Essa sistemática ressoa com as previsões administrativas (a) do artigo 24 da Lindb, que veda a revisão com efeitos retroativos com base em mudança posterior de orientação jurídica; e (b) do artigo 54 da Lei nº 9.784/99, que fixa que “o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé” e que “no caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento” (ou seja, numa situação em que não há direito adquirido, a revogação produzirá efeitos prospectivos caso passados mais de cinco anos da concessão).

Como pode ser visto, nos outros ramos de direito a produção de efeitos retroativos ao ato revisional do uso de tratamentos jurídicos especiais, seja ele continuado ou vinculado a condições futuras está sempre vinculada à observância do prazo de cinco anos a contar da concessão originária.

Dessa forma, norma do artigo 54 do Decreto-Lei nº 37/66 deve ser integralizada pelo jurista de maneira a vedar revisões retroativas do uso de tratamentos jurídicos especiais em matéria aduaneira após o transcurso do prazo de cinco anos a contar da importação original.

Conclusão

Em síntese, a análise das regras de decadência aduaneira, especialmente no contexto dos Tratamentos Jurídicos Especiais, revela a necessidade urgente de um debate aprofundado e uma revisão normativa. As regras vigentes, como o artigo 54 do Decreto-Lei nº 37/66, mostram-se insuficientes e, muitas vezes, incompatíveis com a complexidade das operações aduaneiras modernas, que envolvem efeitos futuros e condições materiais ou procedimentais distintas.

A prevalente interpretação dos Fiscos, que aplica prazos decadenciais de forma extensiva, deve ser reconsiderada à luz de princípios gerais de direito e normas análogas, evitando revisões retroativas injustas. Dessa forma, propomos uma abordagem mais sistemática e precisa, integrando as normas tributárias e administrativas para assegurar a segurança jurídica e a eficiência do regime aduaneiro.

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[1] Que no caso de importações seria a nacionalização com plena e imediata tributação na entrada e no caso das exportações seria a saída física e jurídica dos bens do território brasileiro com contrapartida pecuniária.

[2] Embora a doutrina venha amadurecendo um conceito a partir da interpretação do sentido jurídico de cada um dos seus vocábulos e da previsão do art. 100 do Código Aduaneiro do Mercosul como “conjunto de regras jurídicas passíveis de aplicação em substituição ao tratamento jurídico padrão previsto na legislação para a operação relacionada ao comércio internacional de mercadorias, serviços e intangíveis/demais direitos”.

Autores

  • é sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax), doutor, mestre e especialista pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD). É presidente do IPDA (Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro) e da Comissão de Estudos Aduaneiros do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), professor no IBDT (Instituto Brasileiro de Direito Tributário), onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional", e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

  • é advogado. Bacharel em Direito pelaUFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Professor convidado em Direito Aduaneiro e Tributário no IBDT/SP, Apet/SP, FBT/SP e PUC/PE. Diretor de Contencioso Aduaneiro do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro (IPDA).

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