Opinião

Dispute boards na forma como o país lida com disputas contratuais

Autores

  • Amanda Athayde

    é professora doutora adjunta de Direito Empresarial de Concorrência Comércio Internacional e Compliance na Universidade de Brasília (UnB) consultora no Pinheiro Neto Advogados nas práticas de Concorrencial Compliance e Comércio Internacional doutora em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP) ex-subsecretária de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM) da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Economia ex-chefe de Gabinete do Ofício do MPF junto ao Cade e do Gabinete da Superintendência-Geral do Cade coordenadora do Programa de Leniência Antitruste ex-analista de Comércio Exterior do Ministério de Desenvolvimento Indústria e Comércio (MDIC) cofundadora da rede Women in Antitrust (WIA) e idealizadora e entrevistadora do podcast Direito Empresarial Café com Leite.

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  • Cynthia Ruas

    é especialista em Regulação da ANTT - Direito chefe de gabinete e superintendente Ssubstituta da Superintendência de Concessão da Infraestrutura ex-coordenadora Substituta de Defesa da Concorrência Coordenadora de Relações Internacionais da ANTT advogada e pós-graduada em Direito do Estado e MBA em Economia Comportamental.

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  • Maria Augusta Rost

    é sócia do escritório Barretto & Rost Advogados professora de Direito Administrativo e mestre em Direito do Estado pela UnB.

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6 de agosto de 2024, 18h25

Muito se tem discutido sobre a importância do consensualismo no Brasil. Não se trata, necessariamente, de tema novo. Já há previsões na legislação brasileira prevendo a possibilidade de acordos com a administração pública desde o Decreto 94.764/87 [1], seguido da Lei 8.078/90, que alterou a Lei 7.347/85, sobre ação civil pública [2] [3].

Divulgação

Fato é que essa lógica consensual ficou ainda mais contundente com a mudança trazida pela Lei 13.655/2018, que alterou o Decreto-Lei 4.657/42 — Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) —, e que instituiu, em seu artigo 26, permissivo genérico dedicado a acordos [4]. É nesse contexto de afirmação dos instrumentos consensuais que se insere a visualização do consensualismo como um poder-dever do administrador público [5]. Essa compreensão tem potencial de modificar significativamente as nossas bases tradicionalmente contenciosas.

Em oposição ao contencioso — tradicionalmente judicial —, normalmente se vislumbra métodos de resolução de disputas como negociação, conciliação, mediação ou mesmo arbitragem. Este artigo avança, para tratar do consensualismo em uma vertente ainda mais nova e potente, na nossa visão: os dispute boards (DBs). Em especial explora, em termos quantitativos, a experiência recente da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) no uso do DB, a fim de se extrair possíveis sinalizações para o futuro.

Propõe-se aqui explorar e analisar os dispute boards como um novo instrumento de resolução de disputas no contexto brasileiro, avaliando sua eficácia comparativa com outros métodos consensuais e tradicionais, bem como seus impactos potenciais na administração pública e na condução de contratos de grande vulto.

O que são os dispute boards?

Os DBs podem ser entendidos como comitês de acompanhamento da execução de contratos, em regra, complexos, de alto vulto e de longa duração. Sua atuação é justificada sempre que os custos de transação [6] para a sua instituição e manutenção forem menores do que o prejuízo decorrente da paralisação dos projetos.

De que forma os DBs se contrapõem ou complementam os outros métodos de resolução de disputas? A nosso ver, não há dúvidas de que os membros dos DBs poderão se utilizar da negociação e da conciliação para levar os contratantes a um caminho de consenso. A preservação de um ambiente contratual saudável é justamente um dos objetivos intermediários dos DBs. Também as técnicas de mediação podem e devem ser observadas pelos comitês, mas não se deve esperar um procedimento de mediação por um DB.

E a razão para tanto é simples. Em inúmeros casos, a mediação depende de reuniões privadas entre o mediador e os contratantes. Nesse momento, as partes podem expor suas vulnerabilidades, o que auxilia sobremaneira na condução da mediação. Ocorre que é vedado, via de regra, aos membros de um DB, realizarem reuniões privadas. Essa técnica colocaria em xeque a neutralidade, a imparcialidade e a independência dos membros do DB. Logo, afirma-se a possibilidade do uso de técnicas de mediação, mas não do método em si.

Por sua vez, a principal distinção com relação à arbitragem é que as decisões dos DBs, mesmo quando de cumprimento obrigatório pelas partes, podem ser revistas por árbitros ou por juízes togados. Em outras palavras, os efeitos decorrentes das decisões adotadas pelos DBs são diferentes daquelas proferidas pelo Poder Judiciário ou por tribunais arbitrais, já que estas fazem coisa julgada.

Nota-se, assim, que os DBs são instrumentais. Como o próprio nome diz, são instrumentos para que a execução do contrato seja preservada durante seu curso, sem interrupções de obras, com a resolução ágil de disputas, deixando para a arbitragem e/ou para o judiciário apenas questões residuais.

Os DBs têm o potencial de serem instrumentais à preservação de um bom relacionamento entre as partes contratantes durante a execução do contrato. As partes poderão, durante a execução do contrato, criar rotinas de discussão de temas relevantes no bojo dos DBs, o que incentiva a troca de informações e reduz a assimetria informacional entre as partes.

Espera-se, com isso, reduzir a litigiosidade, na medida em que a obra tenderá a continuar seu fluxo de execução, por meio de decisões rápidas dos membros do DB. Ou seja, ainda que as partes não concordem com a decisão do DB, a obra continua e o tema será discutido posteriormente, no judiciário ou em arbitragem, em sede de perdas e danos. Interessante perceber, inclusive, que o DB pode, em tese, ser mantido até mesmo pós-obra, para evitar que os temas sejam levados ao Judiciário ou à arbitragem.

O termo de instauração é o documento utilizado para formalizar a instauração do DB, tipicamente previsto em uma cláusula contratual. Usualmente, os DBs são compostos por três experts indicados de acordo com as regras adotadas pelas partes no contrato. A especialização desses profissionais é um grande diferencial na realização do objetivo dos comitês, prevenir ou resolver disputas, ou ambos. Nada impede, entretanto, que em projetos menores o DB tenha apenas um membro, visando a redução de custos. Recomenda-se, em qualquer caso, que o presidente tenha conhecimentos jurídicos suficientes para evitar equívocos na condução do procedimento.

Histórico e implementação e previsão legal

Spacca

Em termos históricos, ainda na década de 1970, os DBs começaram a ser utilizados em grandes obras nos Estados Unidos, justamente em atenção aos custos de transação de obras paralisadas. A ideia deu tão certo que em 1995, o Banco Mundial incluiu a exigência da previsão de DBs nos contratos cujo financiamento fosse maior do que US$ 10 milhões [7].

No âmbito privado, a criação de um DB em um determinado contrato e as regras para o seu funcionamento depende unicamente da vontade das partes. Basta um acordo entre as partes e a inserção de uma cláusula em um contrato para que esse importante instrumento de resolução de disputas possa ser implementado.

Para sua adequada execução, é recomendável que essas cláusulas sejam bem redigidas e que indiquem claramente os requisitos para a instauração e a forma de atuação do DB, seja por meio de regulamento próprio, seja pela adoção de regras institucionais. Certo que, no Brasil, inúmeras instituições responsáveis pela administração de disputas extrajudiciais já possuem regulamentos que auxiliam na atuação desses boards.

Já no âmbito público, há autorização legal para tal instituto nas Leis nº 14.133/2021 [8] e 8.987/1995 [9]. Apesar disso, no âmbito dos contratos celebrados com a administração, parte dos gestores e controladores públicos ainda entendem pela necessidade de regulamentação do instituto dos DBs, antes de sua implementação. Registre-se, ainda, que o Superior Tribunal de Justiça também tem se manifestado favoravelmente ao instrumento [10], e que, de acordo com as estatísticas mais recentes, pouco mais de 3% das decisões dos DBs são revertidas.

Considerações finais

Diante do exposto, nota-se, ao longo dos últimos anos, um reforço ao consensualismo no Brasil por meio dos DBs. Se já era clara a possibilidade de celebração de acordos com a administração pública como acordos de leniência, termos de compromisso, acordos de não persecução, entre outros, no Brasil [11], ainda não era claro de que modo seria possível trabalhar para evitar que processos administrativos ou judiciais viessem a surgir. Ademais, se já era clara a admissibilidade da arbitragem com a administração pública [12] [13], ainda não estava clara de que forma os DBs poderiam ser instrumentos que contribuam para arbitragens mais céleres e com escopos mais restritos e objetivos.

Em suma, os DBs representam uma evolução na forma como o Brasil lida com disputas contratuais, oferecendo um caminho promissor para a resolução de controvérsias de maneira eficiente e técnica. A adoção e aprimoramento contínuo desse mecanismo podem desempenhar um papel crucial na realização de projetos de infraestrutura e no desenvolvimento econômico do país.

* a opinião dos autores são pessoais e não necessariamente representam a percepção das instituições às quais estejam vinculados.

 


[1] Decreto 94.764/87. “Art. 45. As multas poderão ter a sua exigibilidade suspensa quando o infrator, por termo de compromisso aprovado pela autoridade ambiental que aplicou a penalidade, se obrigar à adoção de medidas específicas para cessar e corrigir a degradação ambiental.

Parágrafo único. Cumpridas as obrigações assumidas pelo infrator, a multa terá uma redução de até 90% (noventa por cento) do seu valor original”.

[2] Lei 8.078/90, que alterou a Lei 7.347/85, sobre Ação Civil Pública Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: […] § 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial. (Incluído pela Lei nª 8.078, de 11.9.1990)

[3] Para maiores detalhes sobre a evolução histórica de previsões de consensualismo no Brasil, recomenda-se: PALMA, Juliana. Atuação administrativa consensual – estudos dos acordos substitutivos no processo administrativo sancionador. Dissertação de mestrado, USP. 2010. PALMA, Juliana. Atividade normativa da administração pública: estudo do processo administrativo normativo. Tese de doutorado, USP, 2014.

[4] Decreto-Lei 4.657/42. Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.  § 1º O compromisso referido no caput deste artigo: I – buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais; II – (VETADO); III – não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral;   IV – deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.

[5] Este foi justamente o título do primeiro painel do Seminário sobre Consensualismo na Administração Pública, organizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 4.6.2024.

[6] Sobre custos de transação, recomenda-se COASE, R. H. The Nature of the Firm. Economica n. 4, november, 1937. Para apresentação em áudio, recomenda-se o episódio #56 do Podcast Direito Empresarial Café com Leite, da Professora Amanda Athayde, em entrevista com Bruno Salama. https://podcast.direitoempresarialcafecomleite.com/?s=coase

[7] Para maiores detalhes sobre o uso de Dispute Boards pelo Banco Mundial: ttps://ppp.worldbank.org/public-private-partnership/sites/ppp.worldbank.org/files/documents/Dispute%20Board%20Federation-%20Dispute%20Boards%20in%20Practice%20by%20Cyril%20Chern.pdf

[8] Lei nº 14.133/2021. CAPÍTULO XII. DOS MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS. Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.

[9] Lei nº 8.987/1995. Art. 23. São cláusulas essenciais do contrato de concessão as relativas: XV – ao foro e ao modo amigável de solução das divergências contratuais.

[10] STJ. REsp 1569422/RJ. Terceira Turma. Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Julgado em: 26/04/2016. Publicado em: 20/05/2016 e STJ. REsp 1733370/GO. Terceira Turma. Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Julgado em: 26/06/2018. Publicado em: 31/08/2018.

[11] ATHAYDE, Amanda. Manual dos Acordos de Leniência no Brasil – Teoria e Prática (CADE, BC, CVM, TCU, CGU, AGU e MP). 2ª Ed. 2021.

[12] Lei 9.307/1996. Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. § 1o A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.  § 2o A autoridade ou o órgão competente da administração pública direta para a celebração de convenção de arbitragem é a mesma para a realização de acordos ou transações. Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de eqüidade, a critério das partes. § 1º Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. § 2º Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio. § 3o A arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade.

[13] ATHAYDE, Amanda. Idioma, Sede e Lei Material estrangeiros na Arbitragem com a Administração Pública. Revista Brasileira de Arbitragem, v. 29, p. 74-107, 2011.

Autores

  • é advogada, professora doutora da Universidade de Brasília (UnB), especialista nas áreas de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, Comércio Internacional, Defesa Comercial e Interesse Público, Compliance, Anticorrupção, Acordos de Leniência e Negociação de Sanções, consultora no Pinheiro Neto Advogados, doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em Administração de Empresas com habilitação em Comércio Exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I – Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros, co-fundadora da rede Women in Antitrust (WIA), idealizadora e entrevistadora do podcast Direito Empresarial Café com Leite.

  • é especialista em Regulação da ANTT - Direito, chefe de gabinete e superintendente Ssubstituta da Superintendência de Concessão da Infraestrutura, ex-coordenadora Substituta de Defesa da Concorrência, Coordenadora de Relações Internacionais da ANTT, advogada e pós-graduada em Direito do Estado e MBA em Economia Comportamental.

  • é advogada, sócia fundadora do escritório Fenelon, Barretto e Rost Advogados, autora da obra Arbitragem como Política Pública, mestre em Direito do Estado pela Universidade de Brasília, MBA em Regulação e Economia pela FGV, especialista em Processo Civil nos Tribunais Superiores pelo Centro Universitário de Brasília, membro do Comitê Brasileiro de Arbitragem: CBAr, listada como árbitra em diversas Câmaras, professora voluntária da disciplina de arbitragem na UnB, membro da Womens Leadership Network Program da Universidade de Columbia (EUA).

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