Opinião

CDC, ANPP e dissonância cognitiva no processo penal inquisitório

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  • é advogado inscrito na OAB-SP pós-doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra doutor em Direito pela Fadisp mestre e especialista em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra/USP avaliador do Inep/MEC e autor de livros capítulos e artigos jurídicos.

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6 de agosto de 2024, 19h48

Se ao réu no processo penal fosse aplicado e observado o arcabouço jurídico protetivo disposto no Código de Defesa do Consumidor (CDC), com suas presunções e nulidades absolutas, exsurgiria um processo penal distanciado das agruras vivenciadas nas mais diversas instâncias do Poder Judiciário, muitas delas causadas pela vontade ímpar (não imparcial) de se fazer Justiça a todo custo.

Comparativamente, vislumbra-se uma consonância na formação do direito consumerista disposto no CDC, no sentido da proteção integral daquela relação (artigo 7º), reconhecendo a sua vulnerabilidade (inciso I, do artigo 4º), as eventuais falhas na prestação de serviços ou na venda de produtos, e a desproporcionalidade nas obrigações estabelecidas por cláusulas contratuais abusivas (inciso V, artigo 6. º), especialmente em contratos de adesão (artigo 54).

Nesse ramo do Direito impera a presunção de nulidade absoluta disposta no artigo 51, com a mais abrangente e objetiva inversão do ônus probatório ao fornecedor (inciso VIII, artigo 6º; artigos 12, 13 e 14). Quiçá se propõe uma redução de danos à imagem do consumidor, mesmo quando inadimplente, impedindo a sua exposição ao ridículo ou a sua subsunção a qualquer tipo de constrangimento ou ameaças (artigo 42), dentro de um verdadeiro catálogo protetivo de direitos fundamentais.

Dissonância cognitiva

Em sentido contrário, o processo penal brasileiro sofre com uma evidente dissonância cognitiva na sua construção, por consectário, no momento da sua aplicação ao caso concreto.

A Teoria da Dissonância Cognitiva de Leon Festinger é aplicada ao processo penal, sendo que seu preceito maior se satisfaz pela constante busca por coerência entre ideais e o comportamento social, impactando de forma negativa o processo-crime pelos vieses cognitivos e pré-julgamentos que derrogam de forma consciente ou inconsciente o dever de imparcialidade, atingindo o agir e a tomada de decisão do magistrado e do órgão de acusação que são influenciados pelos efeitos perseverança e correspondência comportamental identificados por Bernd Schünemann [1].

A dissonância cognitiva causa uma máxima distorção às garantias processuais penais, v.g., o fato de o réu na prática precisar provar a sua inocência, e ao não carrear aos autos o maior número de provas possíveis de sua inocência (desinvertendo o sistema), acabará cumprindo uma pena originada em partículas de provas que foram somadas na sentença penal condenatória dentro de uma ficção matemática que se afasta de um standard probatório mínimo.

O processo penal brasileiro como está arquitetado desconhece o verdadeiro sentido axiológico constitucional que deve irradiar o sistema acusatório, e na práxis jurídica desloca o princípio da presunção de inocência para um segundo plano em sua forma e matéria, esvaziando seu duplo significado que impõe as regras de tratamento e de julgamento do acusado.

Para Aury Lopes Júnior a presunção de inocência em sua “dimensão interna, é um dever de tratamento imposto – inicialmente – ao juiz, determinando que a carga da prova seja inteiramente do acusador […] e que a dúvida conduza inexoravelmente à absolvição (in dubio pro reo)[2].

De forma contrária, a proposta legislativa visando enrijecer o combate à criminalidade defendida pelo deputado federal Gen. Pazzuelo (PL 619/2024), evidencia novas cisões no mutilado Código de Processo Penal: possibilita que o magistrado tome de ofício uma decisão pela prisão preventiva; o prazo de até 24 horas depois da prisão para o preso ser apresentado ao juiz deixará de existir; faz ressurgir o protagonismo judicial na inquirição de testemunhas em que as perguntas serão realizadas pelo magistrado, permitindo sua ingerência sobre o conteúdo daquelas realizadas pelas partes; e a presunção de inocência vigorará até a confirmação da sentença condenatória ou de sua determinação em segunda instância, em evidente inconstitucionalidade.

Síndrome coletiva e ANPP

Somando-se ao contexto processual inquisitivo que se renova a todo instante, existe uma síndrome coletiva de distanciamento dos direitos do réu. Por isso, quando em breves episódios são reconhecidos por um julgamento delineado pela visão garantista [3], falácias rogadas aos quatro ventos são aptas a influenciar uma população acostumada a fake news, colocando em xeque a atuação do advogado criminalista que é confundido com aquele que mereceu sua defesa, e desqualificando a seriedade da decisão judicial.

A história se repete, não sendo diferente aquela que envolve o novo instrumento de negociação pré-processual, o acordo de não persecução penal (ANPP) criado pela Lei nº 13.964/2019, que no imaginário popular é mais uma forma de passar a mão na cabeça de criminosos, pois desconhecem a profundo seus pormenores, regras e procedimentos, sejam garantidas ou inquisitivos.

Spacca

O ANPP de certo modo pode transparecer o intuito de se evitar a persecução penal, viabilizando-se uma vontade de confissão por parte do autor da conduta criminosa, antecipando-lhe uma punição mais branda, um período sabático de aprovação, e a sua posterior reinclusão na direção certa, aquela determinada pelos padrões socialmente aceitos do “homem médio”, o que faz lembrar uma instigante definição de José de Faria Costa, segundo a qual o sistema é falacioso, ademais quando se olha para o passado [4].

No dia a dia da advocacia criminal a realidade é outra. A maioria dos acordos de não persecução penal não foram negociados com o Ministério Público, sequer redigidos por quatro mãos, mas propostos de forma enlatada, evidenciado um “contrato por adesão”, sem se coibir as cláusulas ou condições abusivas, tais como a prévia confissão e o seu uso posterior, se descumprido, como fonte probatória para a denúncia e a condenação criminal, evidenciando uma dissonância cognitiva espraiada por todo o sistema processual penal, especialmente quando da interpretação dos limites temporais para a sua proposta [5].

Existem vozes interpretativas que se levantam perante distintos areópagos pátrios lutando para o reconhecimento de abusividades e nulidades processuais, mas dependem do subjetivismo de adequação ao princípio “pas de nullité sans grief”, pelo qual demonstrado não haver prejuízo não se declara a nulidade processual nos termos do artigo 563 do Código de Processo Penal.

Enquanto isso ao contrato consumerista se presume a abusividade e a nulidade é reconhecida como absoluta e objetiva. Pena que a liberdade não pode ser tratada em contrato, aliás liberdade que já se foi quando assinado o Contrato Social, momento no qual foi extraída da esfera do ser humano e entregue ao Estado, o Leviatã de Hobbes, aquele mesmo que decidirá de ofício sobre sua perda ou manutenção.

Ah, se fosse aplicado o CDC ao processo penal e ao ANPP, a história seria contada através de outra vertente, quiçá pela do garantismo penal que não é hiperbólico, apenas mais objetivo, axiológico e despido da dissonância cognitiva.

 


[1] Maiores detalhes, LIMA, Ricardo Alves de. Juiz das garantias: entre a dissonância cognitiva e a presunção de inocência. Londrina: Thoth, 2024.

[2] LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 59.

[3] Cfr., FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica et al. 3. ed. São Paulo: RT, 2002.

[4] Paráfrase de exposição em Seminário de Estudos de Processo Penal no Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais realizado em 2005 na Universidade de Coimbra/Portugal.

[5] Desproporções que tendem a ser corrigidas pela via legislativa, evidenciando que pela interpretação jurisprudencial em que vêm sendo tratadas, especialmente pelos tribunais superiores, não traz de forma imediata as respostas necessárias. Nesta linha, o PL 6373/2021 que altera o artigo 28-A do CPP, e dispensa a confissão, estendendo o prazo limite do ANPP até o momento da antes da sentença judicial. Neste ponto divirjo, pois o ANPP deverá ser proposta até durante a Execução Penal, como já tratei em escritos anteriores.

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