Opinião

A Quarta Revolução: o papel do Poder Judiciário na hiper-história

Autor

  • Adriana Barrea

    é juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo especialista em Direito Digital (Enfam) e especialista em Algoritmização e Digitalização da Justiça (Universit Dret Barcelona).

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6 de agosto de 2024, 20h44

A geração sobrevivente está experimentando uma transição da história para a hiper-história, na medida em que a sociedade da informação avança e se torna mais conectada com a internet das coisas, a plataformização dos serviços e o avanço das tecnologias.

Essa é visão de Luciano Floridi, professor de filosofia e ética da informação na Universidade de Oxford :

“This living generation is experiencing a transition from history to hyperhistory. Processing power will increase, ahitle becoming cheaper. Them amount of data vill reach unthinkable quantities. And the valeu of our network will grouw vertically. However, our storage capacity (space) and the speed of outr communications (time) are lagging behind. Hyperstory is a new era human development, but it does not transcend the spatio-temporal constraint that have always regulated our life on this planet. The question to be adressed next is: diven all the variables we have seen is this chapter, what sort of hiperhistorical environment are we building for ourselves and for the future generations? The short answer is: the infosphere” (FLORIDI, 2016, p. 24).

Assevera o professor que chegamos à 4ª Revolução Industrial, convivendo com a quantidade de dados cada vez mais crescente. E suas reflexões fazem todo o sentido. Devemos pensar sobre a quantidade de dados que atingirá a humanidade  nos próximos anos e em patamar antes impensável. A capacidade de processamento das máquinas ficará mais rápida e em menor custo. Testemunhamos a aproximação da computação quântica e da inteligência artificial generativa que são realidade em nosso cotidiano.

Entretanto, a capacidade de armazenamento das informações (a que Floridi denomina “espaço”) e a velocidade das comunicações externas (a que o professor nomina “tempo”), segundo ele, estão atrasadas.

A partir dessas premissas, vale ponderar: a anunciada hiper-história abre uma nova era do desenvolvimento humano, mas não transcende as restrições espaço-temporais que sempre regularam a nossa vida neste planeta. De modo que as questões envolvendo essas variáveis constituem o ambiente “hiper-histórico”, cuja responsabilidade de construção caberá a nós.

Papel do Judiciário

A indagação é que tipo de ambiente “hiper-histórico” estamos a construir para deixar às gerações futuras. Nessa ordem de ideias, este artigo pretende jogar as luzes sobre o papel do Poder Judiciário na construção da hiper-história na Quarta Revolução.

Primeiro, precisamos discutir como os humanos irão interagir com as máquinas, a processar grande quantidade de dados, recebendo informações em velocidade cada vez maior. Neste ponto, o Poder Judiciário será instado a resolver conflitos gerados em meio às plataformas digitais de serviços, com tecnologias de ponta, em que a digitalização e a algoritmização, tanto dos serviços privados quanto dos públicos, serão a realidade.

Com o fenômeno das plataformas digitais de serviços postos ao cidadão, tais como como a retirada da carteira de habilitação e de identidade, a concessão de benefícios sociais, informações sobre acesso ao Sistema Único de Saúde, dentre outros, além da missão institucional da pacificação social, o Poder Judiciário tem assumido o papel de prestador de serviço público e o jurisdicionado, como o usuário do sistema, ambos contribuindo para o processo de transformação digital.

Sugestões

Assim, diante da regulamentação sobre  o uso da inteligência artificial, que está em tramitação (Projeto de Lei 2.338/2023), pensar em estratégias gerais para a criação de bases sólidas ao uso dos sistemas tecnológicos será um bom caminho.

Spacca

Sugerem-se três a serem aplicadas na administração pública:

1) A criação de códigos de conduta, importantes instrumentos, pois neles ficarão contidos os compromissos de formação das equipes, que serão capacitadas nas searas da ética, da elaboração de diretrizes sobre a missão e os valores das corporações, bem como de seus propósitos na era digital. Com tais práticas, o caminho para a inovação e a excelência na prestação dos serviços será mais robusto e consistente, o que gerará mais confiança dos usuários nos sistemas desenvolvidos.

2) No tocante à transparência e à explicabilidade das decisões tomadas com o auxílio das máquinas, apostar na inteligência artificial como suporte para decisões equivale a entregar às máquinas tarefas que antes eram realizadas por humanos.

“Quando a IA é usada para tomar decisões e para fazer algo para nós, encontramos um problema que é compartilhado por todas as tecnologias de automação, mas que se otrna ainda mais importante quando a IA nos habilita a delegar muito mais para as máquinas do que estávamos acostumados: atribuição de responsabilidade” (COECKELBERGH, 2023, p. 103).

Entretanto, toda ação tem a sua consequência. A questão é, ao entregar as tarefas aos robôs, caso algo saia do controle, a quem deverá se atribuída a responsabilidade por arcar com os custos.

Aliás, devemos refletir como garantir que as decisões tomadas percorram o caminho apto para que sejam explicáveis, rastreáveis e passíveis de auditabilidade. De modo que, ao serem criações de humanos, as máquinas e algoritmos – ainda agentes “arresponsáveis”, por ora, não respondem pelas consequências danosas.

“[…] Entretanto, ao delegar atribuições às máquinas, devemo ter em mente que, até o presente momento, estas não estão dotadas de “consciência, livre-arbítrio, emoções, aptidão para formar intenções e outras condições similiares” (COECKELBERGH, 2023, p. 104).

3) Por fim, a terceira sugestão diz respeito à requalificação e à preparação das equipes. Tanto no setor privado quanto no público, a preocupação com a substituição da força de trabalho humano pelas máquinas tem despontado. Segundo o Fórum Econômico Mundial, muitos postos de trabalho desaparecerão ou se tornarão obsoletos. Assim, importa ser considerada a busca por mais capacitação, na forma de reskilling ou de upskilling.

Futuro dos empregos

A pesquisa Future of Jobs, divulgada pelo Fórum Econômico Mundial, traz o debate sobre os avanços tecnológicos e seus impactos nos empregos.

Dentre as conclusões, a pesquisa foi projetada para o período de 2023 a 2027. Mais de 85% das organizações pesquisadas identificam o aumento da adoção de tecnologias novas e de ponta e a ampliação do acesso digital como as tendências com maior probabilidade de impulsionar a transformação em sua organização nos próximos cinco anos.

Há, ainda, preocupação das empresas em adotar em suas atividades padrões ambientais, sociais e de governança (ESG).

Se por um lado o avanço tecnológico, por meio do aumento da adoção de tecnologias novas, trouxe mais acesso digital e impulsionou o crescimento dos empregos, há três principiais fatores que vêm motivando a “destruição líquida” dos empregos: o crescimento econômico mais lento, a escassez de oferta e o aumento do custo de insumos e o aumento do custo de vida para os consumidores.

Rawpixel.com/Freepix

No âmbito da tecnologia, big data, computação em nuvem e IA, mais de 75% das empresas estão buscando adotar essas tecnologias nos próximos cinco anos. A digitalização do comércio e das transações foram de grande impacto e cerca de 86% das organizações pretendem aumentar o uso das plataformas e aplicativos digitais são as tecnologias com maior probabilidade de serem adotadas pelas organizações pesquisadas; 75% pretendem adotar o comércio eletrônico e o comércio digital.

No tocante às habilidades mais importantes esperadas dos profissionais, a pesquisa revela que empregadores prestigiam colaboradores com pensamento analítico e criativo (leia-se, habilidades cognitivas e, até o momento, não delegáveis às máquinas).

Além delas, habilidades como resiliência, flexibilidade e agilidade; motivação e autoconsciência; e curiosidade e aprendizagem ao longo da vida (leia-se, habilidades cognitivas) serão cada vez mais procuradas. É o fim da zona de conforto para os humanos.

Por fim, a terceira habilidade essencial é a alfabetização tecnológica; e 06 em cada 10 trabalhadores precisarão de treinamento antes de 2027, mas apenas metade dos trabalhadores tem acesso a oportunidades de treinamento adequadas hoje.

Somam-se a essa lista outras habilidades esperadas: liderança e influência social e estrategicamente enfatizadas pelos negócios: design e experiência do usuário, administração ambiental, marketing e mídia e redes e segurança cibernética.

Herança

Em conclusão, se pensarmos em máquinas a assumir cada vez mais as tarefas repetitivas, a evolução humana então dependerá da integração entre o desenvolvimento de habilidades puramente cognitivas pelos humanos com a atuação progressivamente célere e eficiente dos robôs. O objetivo final será a chegada à transformação digital com êxito.

Diante das tantas ferramentas tecnológicas a serviço da humanidade, o uso da inteligência artificial demandará preparo das equipes, além do espírito colaborativo dos profissionais e da visão estratégica dos gestores para enfrentarmos os desafios digitais que nos aguardam.

Perguntas para as quais buscaremos respostas durante algum tempo: a inteligência artificial poderá contribuir para a formação de bancos de argumentos jurídicos? Qual a configuração desse banco de dados, mutável, atualizado, on line? Quem avaliará os riscos e benefícios pelo uso das tecnologias, tais como pesquisas de satisfação aos usuários dos serviços públicos? Quem será responsável pelo controle de usuários nos sistemas de inteligência artificial, bem como o acompanhamento de eventuais ataques – spywares e demais mecanismos virtuais maliciosos?

Na hiper-história anunciada por Floridi, não podemos descartar se a sociedade digital testemunhará a chegada da superinteligência e em que medida precisaremos voltar à história da criação e da evolução humanas.

Nos ensinamentos de Dora Kaufman:

“[…] admitir uma superinteligência, até que ponto a interação homem-máquina, o convívio com as tecnologidas da inteligência permitir que revisitemos a história da humanidade e fiquemos atentos.”

Afinal, para a construção do “hiper histórico” pautado nos princípios éticos e na busca por uma sociedade mais justa, livre e solidária, olharmos para trás e avaliarmos — quanto e em que pontos avançamos — servirá de base para a construção do que pretendemos na integração com as máquinas. Ao que parece, o uso das tecnologias – tendo como centralidade o ser humano e o êxito na convivência com os robôs — poderá ser a principal herança às gerações futuras.

Aguardemos os próximos capítulos da “hiper-história”!

 


Referências 

COECKELBERGH, Mark. Ética na Inteligência Artificial. Título Original: AI Ethics; traduzido por Clarisse de Souza et al. São Paulo/Rio de Janeiro: Ubu Editora/Editora PUC-Rio, 2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça 4.0: Inteligência Artificial está presente na maioria dos tribunais brasileiros. 14 de junho de 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/justica-4-0-inteligencia-artificial-esta-presente-na-maioria-dos-tribunais-brasileiros/. Acesso em: 27 jul. 2024.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Revista CNJ: automação processual amplia eficiência de atendimentos em tribunal. 16 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/revista-cnj-automacao-processual-amplia-eficiencia-de-atendimentos-em-tribunal/. Acesso em: 27 jul. 2024.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2026. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/gestao-estrategica-e-planejamento/estrategia-nacional-do-poder-judiciario-2021-2026/. Acesso em: 16 jul. 2024.

FLORIDI, Luciano. The 4th Revolution. How the infosphere is reshaping human reality. Oxford Univerisity Press, 2016.

KAUFMAN, DORA. A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana? Barueri, 2019, Estação das Letras e Cores. SP. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-regulamenta-uso-de-inteligencia-artificial-no-judiciario/. Acesso em: 27 jul. 2024.

PINTO, Pedro Ivo Vasconcellos da Costa. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA SEGURANÇA INSTITUCIONAL DO PODER JUDICIÁRIO: ANÁLISE DE DADOS CRIMINAIS. Revista CNJ, v. 7, n. 2, jul./dez. 2023 | ISSN 2525-4500. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/ojs/revista-cnj/article/view/544/280. Acesso em: 27 jul. 2024.

WORLD ECONOMIC FORUM. Relatório sobre o Futuro dos Empregos 2023. Publicado: 30 de abril de 2023. Disponível em: https://www.weforum.org/publications/the-future-of-jobs-report-2023/digest/. Acesso em: 27 jul. 2024.

Autores

  • é juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, especialista em Direito Digital (Enfam) e especialista em Algoritmização e Digitalização da Justiça (Universit Dret Barcelona).

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