PEC nº 44/2023: direito e prevenção a desastres
6 de agosto de 2024, 11h23
O direito dos desastres constitui um campo acadêmico jurídico novo envolvendo um conjunto interdisciplinar de pesquisa para propiciar a melhor tomada de decisão em relação aos desastres. Trata-se na verdade, de novo ramo do direito que busca oferecer regras legais e padrões interpretativos para antecipar riscos de desastres e orientar respostas emergenciais, compensações às vítimas e ao meio ambiente e a reconstrução ou deslocamento da comunidade atingida [1].

A característica do direito dos desastres, especialmente em que se evidenciam as mudanças climáticas, é o chamado “círculo de gestão de risco” [2], integrado pelas estratégias de mitigação, preparo e resposta para as situações de emergência, compensação e reconstrução, que pode ou não acarretar novo desastre, caso ausente a mitigação. Cada uma das fases da gestão de risco integra o direito dos desastres e sua regulação jurídica.
Antes do desastre, a mitigação dá início à gestão dos riscos. A mitigação envolve várias atividades, como construção de infraestruturas cinzas ou a recomposição das infraestruturas verdes [3], controle do uso do solo para separar as pessoas das áreas de risco ou preservar áreas de amortecimento. Esta fase também envolve o planejamento e a análise de cenários para a tomada de decisões.
A resposta de emergência impõe ao direito importante papel de orientação das medidas que serão adotadas, das organizações legitimadas e das delimitações de competências para atuação em resposta a um desastre. Em razão das mudanças climáticas que tornam mais frequentes e intensos os eventos climáticos acarretando desastres, espera-se que os órgãos governamentais, em especial o Poder Executivo, seja pressionado para atender a população afetada nas suas necessidades primordiais de vida, segurança e saúde, além de restabelecer serviços públicos perdidos. O plano de contingência é o instrumento necessário para delinear todo a resposta que se espera do poder público e que consta como obrigação legal dos diferentes entes federados Lei nº 12.608/2012.
Mecanismos de compensação funcionarão quando o risco não for mitigado antes do evento, e a ocorrência do desastre gera perdas de vida e patrimônio. A compensação pode-se dar através de seguro, assistência governamental e o próprio Direito, com o uso do instituto da responsabilidade civil.
A reconstrução deve implicar na mitigação para evitar novos desastres. Significa também a oportunidade de melhorar o desenho urbano criando nova estrutura social e legal para aumentar a resiliência.

Portanto, o direito dos desastres, tendo como ponto central o círculo da gestão de risco, não se preocupa apenas em disciplinar normas relativas às vítimas de danos físicos e patrimoniais. O enfrentamento de riscos catastróficos através de um conjunto de princípios normativos está no seu âmago [4]. E as mudanças climáticas não só intensificam os desastres como também os tornam globais, representando um novo desafio para todos os estágios do ciclo dos desastres.
Gestão de risco de desastre no Brasil
No Brasil, o ciclo de gestão de risco de desastre está previsto no artigo 3º da Lei nº 12.608/2012 — Lei da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil:
Art. 3º A PNPDEC abrange as ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação voltadas à proteção e defesa civil.
Igualmente, a lei descreve as competências que cabem a cada ente federado na gestão do ciclo de desastres, impondo ações efetivas para a prevenção, mitigação, preparação, resposta à emergência e recuperação. Nessa seara, o legislador preocupou-se em garantir alocação de recursos para as ações correspondentes a cada fase, em legislação anterior, Lei nº 12.304/2010, disciplinando o Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil (Funcap), criado por Decreto do ano de 1969 mas ainda inoperante.
Diante dos eventos climáticos que assolaram o Rio Grande do Sul em setembro e novembro de 2023, deputados gaúchos propuseram a PEC 44/2023 na Câmara dos Deputados para incluir o § 9º ao artigo 166, a fim de que os legisladores possam destinar emendas individuais para “[…] enfrentamento de catástrofes e emergências naturais[…]”.
Destaca-se esta proposta de suma importância e de iniciativa louvável dos legisladores proponentes, porquanto a ciência aponta a tendência da ocorrência de desastres climáticos cada vez mais intensa e mais frequente. A preocupação dos parlamentares em destinar recursos para esta pauta demonstra preocupação com as futuras gerações e o reconhecimento da crise climática atual.
Com as enchentes de maio deste ano no RS, foi criada a Comissão Especial para análise da PEC e emissão de parecer. A comissão entendeu de realizar audiências públicas para as quais convidou cientistas, juristas e pesquisadores do tema para o debate.
Originalmente, a proposta da PEC 44/2023 veio assim concebida:
Art. 166. […]
§ 9º – B “Do limite a que se refere o § 9º A deste artigo, deverá ser feita, a critério do deputado ou senador, a reserva de 5% (cinco por cento) do valor disponibilizado às suas emendas, para enfrentamento de catástrofes e emergências naturais, a ser destinado ao respectivo órgão federal competente, que deverá repassar imediatamente no momento do desastre, às respectivas unidades da federação no limite do valor reservado, devendo ser revertido aos parlamentares no quarto ano da Legislatura caso não tenham havido intercorrências que justifiquem a sua utilização.”
Participando-se das audiências públicas, sugeriu-se inicialmente a adequação da terminologia a “desastres”, em substituição às “catástrofes e emergências naturais”, consolidada na norma nacional, artigo 1º inciso V, da Lei nº 12.608/12 e internacional, Marco Sendai. Assim, tanto os desastres naturais como os desastres antropogênicos ficariam contemplados pelo dispositivo constitucional.
Outro ponto destacado foi a temporalidade e o momento do repasse, sugerindo-se a substituição de “enfrentamento” por “[…] para a prevenção, mitigação, preparo, resposta e reconstrução a desastres […]”, evidenciando as diversas fases do ciclo de gestão de desastres em que se poderão alocar recursos por emendas individuais dos parlamentares. Como dito acima, a implementação de ações de prevenção, seja pela construção de obras de engenharia ou recuperação de áreas verdes, demandam recursos, apresentando-se como mais eficiente e menos dispendioso.
Por fim, contribuiu-se para que fosse retirada a parte final da proposta de emenda a fim de garantir a perenidade da aplicação de recursos nas Políticas de Proteção e Defesa Civil, cujos orçamentos correm à míngua nos últimos anos, como demonstrado aos integrantes da Comissão. Cabe referir que a Lei nº 12.340/2010, no artigo 9º, prevê que o Funcap possa receber recursos de outras origens como é o caso das emendas parlamentares individuais.
Assim, resultou a redação sugerida ao § 9º a ser incluído no artigo 166 pela PEC 44/2023:
§ 9º-B. Do limite a que se refere o § 9º A deste artigo, deverá ser feita, a critério do deputado ou senador, a reserva de 5% (cinco por cento) do valor disponibilizado às suas emendas, para a prevenção, mitigação, preparo, resposta e reconstrução de desastres, a ser destinado ao respectivo órgão federal competente, que repassará imediatamente às respectivas unidades da federação indicadas pelo deputado ou senador, no limite do valor reservado.
Maior frequência de seca e estiagem
Os demais técnicos convidados para a discussão nas audiências públicas, acompanharam as sugestões, em especial o representante do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que enfatizou a expectativa de maior frequência e intensidade de seca e estiagem, e enxurradas e inundações no Brasil, impondo prevenção e adaptação climáticas urgentemente.
Na Comissão Especial constituída para análise da PEC, o relator [5] proferiu parecer favorável à emenda constitucional enfatizando a relevância da prevenção, justificando a partir de dados concretos que as perdas com um desastre são maiores do que o custo da prevenção. O parecer enfatiza a possibilidade de os parlamentares alocarem recursos para os municípios por meio das emendas parlamentares individuais destinadas às ações da Defesa Civil, cujas realidades são conhecidas dos legisladores, e acompanhar a implementação, cumprindo assim com a atribuição fiscalizatória, própria do Poder Legislativo.
Acresceu ainda, a possibilidade de emendas de bancada de parlamentares e emendas de comissões permanentes do Congresso igualmente alocarem recursos para as ações de preparação, mitigação e prevenção de desastres, no âmbito do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil. Restou suprimida da proposta original, a reversão dos recursos não empenhados ou utilizados ao parlamentar que garantiu a emenda. Não foi, portanto, aceita a sugestão de reversão dos recursos não utilizados ao Funcap, o que garantiria a perenidade e continuidade das políticas públicas de prevenção e preparação que se preconiza como importantes para evitar ou minimizar novos desastres.
Portanto, as sugestões apresentadas por esse autor, em audiência pública, foram adotadas em parte no substitutivo do relator. O termo “desastre”, comportando tanto os chamados “naturais” como os antropogênicos, estão contemplados como merecedores de recursos por emendas individuais, de bancada e de comissões do Congresso. Assim, o legislador segue com conceitos que já se encontram sedimentados em outras normativas correlatas, destacando-se a Lei Nacional de Proteção e Defesa Civil.
As fases da gestão do ciclo de desastres restam igualmente contempladas para recebimento dos recursos de emendas, em especial a prevenção, ao dispor a proposta da inclusão do §12-C:
§ 12-C Os recursos a que se refere o parágrafo anterior não empenhados até o final de cada exercício financeiro serão destinados ao Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil (Funcap).
Cabe por fim registrar que o substitutivo apresentado pelo relator ainda propôs a inclusão dos §§ 12-A e 12-B, determinando percentual de 10% dos recurso alocados em emendas das comissões permanentes do Congresso destinados ao Funcap e, nas transferências da União aos Estados, DF e Municípios, os recursos serão repassados independentemente da celebração de convênio ou outro instrumento, mostrando-se como um facilitador para que quem executa, efetivamente, as políticas de prevenção, preparação e resposta receber recursos.
Em plenário na Câmara dos Deputados [6], a proposta aprovada na Comissão Especial foi totalmente aprovada, sendo acrescentado o artigo 138 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para desvincular, para fins de aplicação em ações de preparação, mitigação e prevenção de desastres, no período de dez anos, 10% e para resposta e recuperação, 5%, os recursos dos fundos, programas e receitas tributárias listados na PEC. Na prática, essa autorização de desvinculação, deixa livre o ente público, para uso de receitas que hoje são “engessadas” — destinadas a despesas específicas —, aumentando a flexibilidade do uso em ações de enfrentamento aos desastres.
Da Câmara dos Deputados a PEC seguiu para o Senado para continuidade de sua tramitação.
Assim, vê-se neste projeto de emenda à Constituição, um exemplo da parceria formada entre o Poder Legislativo e a comunidade acadêmica, técnica e científica, que foi ouvida nas audiências públicas ocorridas, resultando numa produção legislativa, mais próxima da realidade e da necessidade apontada por quem estuda desastres há mais de duas décadas.
[1] FARBER, Daniel; VERCHICK, Robert; CHENJames; SUN, Lisa. Disaster Law and Policy. New York:Wolters Kluver, 2015; CARAVALHO, Délton Winter de. Desastres Ambientais e sua Regulação Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.
[2] FARBER, Daniel A. Navegando a interseção entre o Direito Ambiental e o Direito dos Desastres. In: FARBER, Daniel A.; CARVALHO, Délton Winter de. (org.). Estudos aprofundados em direito dos desastres: interfaces comparadas. Curitiba: Prisma, 2017. p. 28.
[3] Infraestruturas cinzas são aquelas construídas pelo homem como obras de engenharia civil que servem para evitar desastres e as infraestruturas verdes ou naturais são aquelas que conservam as funções ambientais e serviços ecossistêmicos aos espaços ambientais, prevenindo desastres. A respeito pode-se consultar: CARVALHO, Délton Winter de. Desastres Ambientais e sua Regulação Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 81-89.
[4] CHEN, James Ming. Modern disaster theory: evaluating disaster law as a portfolio of legal rules. Emory International Law Review, University of Louisville School of Law Legal Studies Research, Louisville, v. 25, Issue 3, p. 1122, Aug. 2011. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=1910669. Acesso em: 5 jul. 2024.
[5] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Parecer do Relator, Dep. Gilson Daniel (PODE-ES), pela aprovação, com substitutivo. Disponível em: https://www.camara.leg.br/evento-legislativo/73539. Acesso em: 5 jul. 2024.
[6] CÂMARA DOS DEPUTADOS.PEC 44/2023. Disponível em: amara.leg.br/busca-portal?contextoBusca=BuscaProposicoes&pagina=1&order=relevancia&abaEspecifica=true&filtros=%5B%7B”numero”%3A”44″%7D,%7B”ano”%3A”2023″%7D%5D&tipos=PEC. Acesso em: 23 jul. 2024.
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