Opinião

Fintechzação: requisitos para CCBs assinadas eletronicamente

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3 de agosto de 2024, 9h23

“Toda empresa será uma fintech” é o título de um conhecido artigo de Angela Strange, sócia da gestora de venture capital americana Andreessen Horowitz, publicado em 2020, em que ela previu que “em um futuro não muito distante, (…) quase toda empresa terá parte relevante de sua receita decorrente de serviços financeiros”.

No Brasil, cujo mercado consumidor tem a cultura de tomar crédito e realizar o pagamento de compras de produtos e serviços de forma parcelada e com acréscimo de juros, o fenômeno de “fintechzação” das empresas previsto por Angela Strange já é realidade.

Especialmente em setores como varejo (redes de lojas de departamentos, farmácias, supermercados, postos de gasolina), e-commerce e empresas de distribuição e consumo de bebidas, que passaram a ofertar serviços financeiros a seus clientes e, segundo estudo da consultoria Deloitte, poderão gerar, juntos, uma receita adicional de R$ 24 bilhões em 2026.

O crédito ofertado ao consumidor por empresa não financeira é realizado, em geral, de duas formas: (a) na primeira, o mútuo é concedido por meio de uma instituição financeira do mesmo grupo econômico; ou (b) na segunda, o crédito é ofertado por instituição financeira terceira, no formato de “banco como serviço” (bank as a service ou BaaS), em que ela (e.g. banco ou fintech) presta o serviço de concessão do crédito ao cliente final e, imediatamente após, cede o crédito concedido para um investidor, geralmente fundos de investimento em direitos creditórios (FIDC).

CCBs

A formalização dessas operações de crédito se dá principalmente por meio de Cédulas de Crédito Bancário (CCBs), que, com o crescimento das contratações via canais digitais (e.g. smartphones, tablets e computadores), são assinadas e emitidas de forma eletrônica por consumidores pessoas físicas.

Um dos pontos jurídicos-chave a ser criteriosamente avaliado (risk assessment) pela instituição concedente do mútuo diz respeito às formalidades que devem ser observadas na emissão e assinatura eletrônica de CCBs por pessoas físicas, com base na lei e em recentes decisões do Judiciário.

Spacca

A CCB é um título de crédito emitido pelo tomador do crédito (devedor) em favor de instituição financeira, e consiste na promessa de pagamento do valor tomado, acrescido dos juros e demais encargos contratados.

A legislação da CCB (Lei nº 10.931/2004), conforme alterada pela Lei nº 13.986/2020 no seu artigo 29, autoriza a emissão de CCB assinada de forma eletrônica nos seguintes termos: “A Cédula de Crédito Bancário deve conter os seguintes requisitos essenciais: VI – a assinatura do emitente e, se for o caso, do terceiro garantidor da obrigação, ou de seus respectivos mandatários (…) §5º. A assinatura de que trata o inciso VI do caput deste artigo poderá ocorrer sob a forma eletrônica, desde que garantida a identificação inequívoca de seu signatário”.

Pela jurisprudência recente, o requisito de garantia da “identificação inequívoca de seu signatário” é chave para determinar a validade ou não do título emitido eletronicamente.

Conforme julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) (e.g. Apel. 1001179-95.2023.8.26.0114) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) (e.g. AREsp 2362818), a garantia de identificação inequívoca do emitente em contratações eletrônicas é satisfeita quando há utilização de múltiplos mecanismos de verificação da assinatura do tomador.

Requisitos para a regularidade do contrato

A contratação é, via de regra, considerada regular por tais julgados quando há, cumulativamente, (1) selfie autenticada por biometria facial do emitente, (2) digitalização do seu documento pessoal (RG, CNH), e (3) validação através de plataforma privada de assinatura, após autenticação via telefone celular (envio de token) ou assinatura criptografada, tal qual consta no documento de identificação apresentado.

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Na falta de algum dos requisitos acima, há decisões judiciais que aceitam outras formas de identificação, como adoção de parâmetros de geolocalização capazes de demonstrar a data, a hora e o local onde se encontrava o consumidor quando da assinatura eletrônica da CCB.

Com base na jurisprudência recente do TJ-SP, nos casos analisados em que não foi reconhecida a validade de CCB assinada eletronicamente (e.g. Apel. 1031193-34.2023.8.26.0576), entendeu-se que o credor não foi capaz de provar a existência de mecanismos combinados que permitissem a aferição da autenticidade da contratação.

No julgado referido acima, a identificação do emitente da CCB ocorreu por meio de selfie (autorretrato), que, no entendimento do tribunal, não foi suficiente para comprovar a inequívoca concordância e autenticidade da operação de crédito, principalmente quando a selfie não é parte de método de biometria facial.

Há diversas decisões judiciais semelhantes declarando a invalidade da contratação de crédito, nas quais a identificação do consumidor, emitente da CCB assinada de forma eletrônica, foi realizada somente via selfie, sem que houvesse a presença de outros meios de identificação, como a digitalização dos documentos pessoais e/ou a assinatura criptografada do contratante.

Cautela

Dada a previsão acertada de que, no futuro próximo, toda empresa não financeira será uma fintech, é fundamental que empresas brasileiras de setores como o varejista, e-commerce e demais, nas quais esse fenômeno já é realidade, prestem atenção aos requisitos para formalização eletrônica da contratação de crédito por consumidores, visando sua adequada identificação em atendimento aos parâmetros trazidos pela lei e recente jurisprudência.

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