Diário de Classe

Consultar a literatura é fazer a coisa certa

Autor

  • Bianca Roso

    é doutoranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos na linha de pesquisa: Hermenêutica Constituição e Concretização de Direitos bolsista Capes/Proex mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria-UFSM com bolsa Capes pesquisadora do grupo de pesquisa e extensão: Phronesis: Jurisdição e Humanidades e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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3 de agosto de 2024, 8h00

“A tontura da fome é pior que a do álcool. A tontura do álcool nos impede a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar no estômago […] Eu escrevia as peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: -É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro minha pele negra e meu cabelo rústico. […] Se é que existe reencarnações, eu quero voltar a ser preta.”

Carolina Maria de Jesus [1]

 

Carolina torna menos difícil a tarefa de escrever este texto em um momento que exige de nós tanta responsabilidade. Mulher, negra, moradora da comunidade do Canindé, mãe de três filhos criados sem pai presente, como tantas mulheres brasileiras, Carolina foi uma das maiores escritoras do Brasil. No entanto, suas obras raramente são estudadas na escola, sua história dificilmente é contada e sua resistência é silenciada.

Carolina é um exemplo da urgência de reflexões sobre o papel transformador da educação e das humanidades na consolidação de uma cultura dos direitos humanos, algo essencial em países cujo histórico é de débito democrático e constitucional, como é o caso do Brasil [2]. O professor Lenio Streck nos ensina que o Direito pode ser estudado a partir da literatura, pois ela pode humanizá-lo [3].

É por isso que acreditamos que, para combater a crise que assola o ensino jurídico, é necessário retomar seu lado humanístico e interdisciplinar, considerando o mundo prático, a faticidade e a busca pelo desvelamento dos fenômenos [4]. Essa é a única forma de desconstruir a concepção de Direito como mero instrumento, tido a partir de categorias, enunciados performativos, posturas acríticas e a-históricas.

Em outro texto escrito [5] e publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico, eu e Luisa Bernsts apostamos no estudo do Direito na/pela literatura justamente porque as narrativas literárias nos permitem apreender as tensões que marcam a dinâmica social do Direito e a (re)humanizá-lo. Ao lermos Carolina Maria de Jesus, passamos a compreender o desespero, a fome, a miséria e a falta de esperança. Carolina revela: “Estou sem ação com a vida”. A partir da própria experiência, em seu diário, fala do dia em que, faminta, catou linguiças no lixo de um frigorífico: “(…) tenho um apetite de Leão”, ela se justificou.

Democracia e humanidades

De certa maneira, seu texto fala sobre as mulheres e homens indígenas, camponesas, ribeirinhas, quilombolas e a realidade dura e triste de grande parte do povo brasileiro. E, assim, não se pode ignorar que o Brasil é o país que mais assassina defensores de direitos humanos, em especial ligados à luta pelo território e pela justiça ambiental. É também sobre as tantas transexuais assassinadas, no país recorde de assassinatos de pessoas transexuais e onde se mata e estupra “corretivamente” mulheres lésbicas. É sobre trabalhadoras domésticas, no país onde apenas em 2015 os direitos básicos, como férias remuneradas, foram estendidos a essas obreiras. É sobre as mães que têm sua alegria e a vida dos seus filhos interrompida, no país onde mais de 30 mil jovens são assassinados por ano e mais de 70% deles são negros e pobres. É sobre as mulheres assassinadas e sobreviventes de tentativa de feminicídio. O horizonte é sombriamente ameaçador e exige dos juristas uma ampliação significativa dos horizontes de análise e compreensão [6].

Quem já leu a obra de Martha Nussbaum Sem Fins Lucrativos: Por Que a Democracia Precisa das Humanidades?, por exemplo, é convidado a mergulhar em um manifesto com a “intenção de funcionar como um chamado para a ação” [7]. Onde a crise silenciosa da educação coloca em risco a própria democracia e as novas gerações. Desse modo, é preciso preservar os valores que as sociedades democráticas tomam em sua constituição como intransferíveis. Portanto, é imperioso o reconhecimento das potencialidades de pensamento empático e crítico, que a arte e a literatura são capazes de desenvolver. O professor Lenio já ilustrou que “a literatura pode salvar a nós – e salvar ao Direito – porque já adiantou de há muito a solução para problemas que enfrentamos hoje como se insolúveis fossem; porque já apontou de há muito que muitas de nossas soluções nada solucionam” [8].

Este texto, de certo modo, propõe sob o viés de Martha Nussbaum, Carolina Maria de Jesus e Lenio Streck o reconhecimento da educação e humanidades, enquanto um elemento propulsor do desenvolvimento de muitas capacidades indispensáveis para o desenvolvimento do ser humano, especialmente para os juristas, a fim de romper com esse cenário de crise imposto desde a formação do Estado nacional [9].

Se este texto inicia com uma homenagem à Carolina Maria de Jesus, nada mais justo e mais bonito do que terminar em sua memória. Carolina morreu pobre, assim como nasceu pobre. Como ela, mais de 11 milhões de pessoas que moram em favelas, têm seus direitos negados todos os dias. Mais de 50 anos depois da publicação dessa obra tão singular e rica para entender a realidade brasileira, elas ainda buscam pelo direito a uma cidade, que inclui o direito à moradia, à terra urbana, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte de qualidade e aos serviços públicos, ao trabalho, ao lazer. Como visto a “literatura está no cerne existencial do Direito. E não apenas para fazer erudição ou retórica” [10]. Na medida em que o ler constitui temporalmente os sentidos, “toda forma de leitura compreensiva é sempre também uma forma de re-produção e interpretação” [11].

 


[1] JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. 8 ed. São Paulo: Ática, 2000.

[2] TRINDADE, André Karam; KARAM, Henriete; ALCÂNTARA, Guilherme Gonçalves. O papel do autor nos estudos do direito na ou através da literatura. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, v. 14, n. 3, p. e 40148, 2019.

[3] STRECK, Lenio Luiz; KARAM, Henriete. A literatura ajuda a existencializar o direito. Anamorphosis: Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 4, n. 2, 2018.

[4] https://www.conjur.com.br/2023-out-14/diario-classe-literatura-salvar-juristas/

[5] https://www.conjur.com.br/2023-out-14/diario-classe-literatura-salvar-juristas/

[6] STRECK, Lenio. O que é fazer a coisa certa no Direito?. 1 ed. São Paulo: Editora Dialética, 2023, p. 27.

[7] NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. WWF Martins Fontes, 2010, p.162.

[8] STRECK, Lenio Luiz; KARAM, Henriete. A literatura ajuda a existencializar o direito. Anamorphosis: Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 4, n. 2, 2018, p. 625.

[9] Para mais informações, consultar: STRECK, Lenio. O que é fazer a coisa certa no Direito?. 1 ed. São Paulo: Editora Dialética, 2023.

[10] STRECK, Lenio Luiz; KARAM, Henriete. A literatura ajuda a existencializar o direito. Anamorphosis: Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 4, n. 2, 2018, p. 618.

[11] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, vol. I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 257

Autores

  • é doutoranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos, bolsista Capes/Proex, mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com bolsa Capes, pesquisadora do grupo de pesquisa e extensão Phronesis: Jurisdição e Humanidades e do Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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